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Ventriculectomia parcial esquerda. Resultados atuais, possíveis indicações e perspectivas futuras

Editorial

Ventriculectomia Parcial Esquerda. Resultados Atuais, Possíveis Indicações e Perspectivas Futuras

Reinaldo B. Bestetti, José Carlos F. Brasil, Rubio Bombonato

Ribeirão Preto, SP

Em 1995, Batista e col 1 descreveram nova técnica cirúrgica para o tratamento de portadores de insuficiência cardíaca congestiva (ICC) terminal, originalmente denominada ventriculectomia parcial. A técnica consiste basicamente na retirada de um fragmento da parede lateral do ventrículo esquerdo (VE), do ápice ventricular ao anel da válvula mitral, através dos músculos papilares, sob circulação extracorpórea, sem o uso de cardioplegia. Os resultados obtidos no pós-operatório imediato de 18 pacientes submetidos a esta nova técnica operatória mostraram aumento na fração de ejeção do VE (FEVE) de 100 a 300%.

Apesar de ostensivamente divulgada na imprensa leiga, tanto no Brasil como no exterior 2, poucas são as publicações científicas referentes à ventriculectomia parcial. Devido a isso, apenas alguns grupos no Brasil 2,3 e no exterior 5-7 têm, sistematicamente, realizado este procedimento cirúrgico para avaliar sua potencial eficácia como tratamento alternativo para pacientes selecionados com ICC terminal.

Embora os resultados iniciais sejam alentadores, existem incertezas com relação ao prognóstico a longo prazo do procedimento, não sendo ainda claras, conseqüentemente, as diretrizes para a realização da ventriculectomia parcial.

Em que pese o surgimento dos antagonistas da enzima de conversão do angiotensinogênio em angiotensina, que melhorou a sobrevida de pacientes com ICC, a mortalidade anual continua a ser alta (>40%) naqueles com ICC avançada, ou seja, grau IV da classificação funcional da New York Heart Association (NYHA) 8,9, FEVE <0,20 determinada pela ventriculografia isotópica 9,10, diâmetro diastólico do VE (DDVE) >75mm 11,12, caminhada em 6min <300m13, consumo máximo de oxigênio durante exercício aeróbico <13 mets 10,14, percentagem de encurtamento da fibra miocárdica <13% e FEVE <0,30 determinados ecocardiograficamente 15-17 e índice cardíaco <2,5l/min/m2 ou pressão capilar pulmonar >15mmHg 9,18. Nesses pacientes, o transplante cardíaco ortotópico pode ser a única opção para se melhorar a qualidade de vida e a sobrevida. Entretanto, o transplante cardíaco constitui tratamento caro e complexo, limitando sua realização a apenas alguns centros de nosso país. Assim, o surgimento de alternativa terapêutica para o tratamento de pacientes com ICC terminal é altamente desejável.

Resultados atuais da ventriculectomia parcial

Pós-operatório imediato (primeiros 30 dias) - Até o momento, ao que parece, existem dados científicos consistentes referentes a 84 pacientes submetidos à ventriculectomia parcial na literatura médica. Os dados relativos ao pós-operatório (PO) imediato são conhecidos em 73 (86%) pacientes. Bellotti e col 4 estudaram 11 pacientes 17±4 dias após a ventriculectomia parcial, verificando importante regressão na classe funcional (CF) da NYHA (3,6±0,5 x 1,4±0,7, p<0,001), e no DDVE (80±7 x 71±7 mm, p=0,002), aumento na percentagem de encurtamento da fibra miocárdica (11,5±1,8 x 19,8±3,9, p<0,001) e alteração na geometria do VE, que se tornou mais hipertrófico e menos esférico. Kirshner e col 6 observaram melhora na CF da NYHA (3,9 para 2,7, p=0,01), diminuição do DDVE (69 para 58mm, p=0,006) e aumento da FEVE (0,21 para 0,34, p=0,03) 26 dias após a ventriculectomia parcial. Starling e col 5 verificaram aumento da FEVE (0,15±0,07 x 0,37±0,11, p<0,0001) e diminuição do DDVE (80±11 x 59±6mm, p<0,0001) imediatamente após a cirurgia. Aumento médio da FEVE (0,17 para 0,31, p<0,01) e diminuição na CF da NYHA (3,7 para 2,6, p<0,01) também foram relatados por Takeshita e col 7 9±6 dias após a ventriculectomia parcial. Starling e col 5 detectaram aumento no índice cardíaco (2,0±0,6 x 2,6±0,6ml/min/m2, p=0,01) e diminuição na pressão atrial esquerda (24±12 x 13±4mmHg, p=0,0006) imediatamente após o procedimento cirúrgico. Estudo hemodinâmico realizado por Takeshita e col 7 9 dias em média após a ventriculectomia também mostrou aumento do índice cardíaco (4,35 para 5,48ml/min/m2 , p<0,01).

Assim, os dados disponíveis na literatura sugerem que a redução cirúrgica da cavidade ventricular acompanha-se de melhora na forma geométrica e no desempenho do VE, diminuição da congestão pulmonar secundária à disfunção sistólica e melhora na sintomatologia logo após o procedimento.

A mortalidade no PO imediato parece ser razoável. Batista e col 19 relataram a ocorrência de óbito em 13 (12%) pacientes nesse período, mas as características clínicas, principalmente a estabilidade hemodinâmica, não foram descritas em detalhes. Observamos 20 óbito em três pacientes operados em choque cardiogênico após o sucesso obtido com os sete primeiros pacientes. Contudo, deve-se enfatizar que não houve óbito nas séries em que os pacientes estavam estáveis, do ponto de vista hemodinâmico, quando da realização da cirurgia.

A morbidade no PO imediato da ventriculectomia também parece ser baixa. Bombonato e col 3 relataram a ocorrência de taquicardia ventricular, enquanto que Starling e col 21 descreveram dois episódios de falência ventricular, que necessitaram de assistência ventricular mecânica, em 2 (11%) pacientes submetidos à ventriculectomia. Contudo, esses pacientes talvez não tenham sido semelhantes aos outros descritos em outras séries, pois um deles teve infarto agudo do miocárdio (IAM) no período peri-operatório, e, o outro, IAM não detectado antes do procedimento cirúrgico.

Pós-operatório tardio (30 a 120 dias após o procedimento) - Resultados após o PO imediato são disponíveis em 12 (14%) pacientes. Bombonato e col 3 observaram em 7 casos melhora na FEVE (0,15±0,05 x 0,22±0,04, p=0,02), na CF da NYHA (4,0±0 x 1,71±0,48, p=0,009) e no DDVE (75,67± 11,98 x 64,67±11,41mm, p=0,02) 60 dias após a ventriculectomia. Achados semelhantes foram relatados por Takeshita e col 7, posteriormente: aumento na FEVE (17,4 para 30, p<0,05) e diminuição na CF da NYHA (3,7 para 2,2, p<0,05) em cinco pacientes 136±95 dias após o ato operatório. Portanto, verifica-se que a melhora no desempenho do VE induzido pela redução da cavidade ventricular, traduzida clinicamente pela melhora na CF observada no PO imediato, mantém-se dois a quatro meses após a cirurgia. É importante frisar que não houve morbidade nos dois trabalhos citados.

Longo prazo (>1 ano após o procedimento) - Apenas um grupo relatou, até o momento, sua experiência a longo prazo com sete (8%) pacientes submetidos à ventriculectomia 22. Dos sete pacientes operados, consecutivamente, cinco (71%) sobreviveram, sendo que um faleceu de hemorragia digestiva, e um outro, que havia abandonado o tratamento por conta própria, subitamente. Quatro dos sete (57%) pacientes foram internados para compensação de ICC e todos não estavam recebendo o tratamento preconizado pelo grupo, seja por conta própria, seja por orientação do médico de origem. Um (14%) caso, que não tinha trombos no ecocardiograma bidimensional, apresentou acidente vascular cerebral embólico.

Um ano após a ventriculectomia, os autores observaram melhora na CF (4,0±0 x 1,40±0.54, p=0,003), no DDVE (73,20±11,21 x 64,20±9,33mm, p=0,003) e na FEVE determinada ecocardiograficamente (0,29±0,07 x 0,48±0,10, p=0,02) nos pacientes sobreviventes. Admite-se, portanto, que a melhora na CF e no desempenho ventricular, observados logo após o procedimento, mantêm-se um ano após a ventriculectomia.

Possíveis indicações para a ventriculectomia

O procedimento deve ficar reservado para pacientes que estão ou que estiveram recentemente no grau IV da classificação da NYHA, pois, pacientes que atingiram, no máximo, o grau III têm baixa mortalidade anual (20%) 23 . Os pacientes em grau IV, que necessitam de suporte inotrópico, os que apresentam o pior prognóstico a curto prazo 24, porém estabilizados do ponto de vista hemodinâmico, têm sido operados com sucesso 3, mas o mesmo parece não acontecer com aqueles que apresentam instabilidade hemodinâmica 20. Conseqüentemente, o procedimento deve ser indicado para pacientes em grau IV, estabilizados hemodinamicamente.

A cardiopatia chagásica crônica, quando comparada a outras etiologias de ICC, apresenta pior prognóstico 25. Pacientes com ICC secundária a diferentes etiologias, incluindo a chagásica, têm sido operados com sucesso. Portanto, até que surjam evidências em contrário, a etiologia da ICC não deve ser levada em conta na indicação do procedimento cirúrgico.

Observa-se, um ano após a ventriculectomia, redução de aproximadamente 15% no DDVE. Em assim sendo, a ventriculectomia poderia ser realizada idealmente em pacientes com DDVE variando de 75 a 90mm, pois dimensões da cavidade ventricular <75mm associam-se a bom prognóstico, enquanto que valores >90mm ainda manteriam o DDVE em níveis associados a mau prognóstico 12.

A deambulação de um indivíduo com ICC em estágio avançado <300m durante 6min consecutivos (teste dos 6min) é importante índice prognóstico a curto prazo. Levando-se em consideração as facilidades para a realização do teste dos 6min, parece razoável a utilização deste teste na indicação do procedimento, de tal forma que indivíduos que percorram <300m poderiam ser submetidos à ventriculectomia.

Uma vez que os valores percentuais de encurtamento da fibra <13 e da FEVE<0,30 estão relacionados a alta taxa de mortalidade anual 15-17, esses indicadores prognósticos devem ser levados em conta na indicação do procedimento. Como os resultados a longo prazo mostram aumento de 50 a 60% nos valores de FEVE, obtidos pela ecocardiografia ou ventriculografia isotópica 22, percebe-se que portadores de FEVE extremamente baixos podem não se beneficiar do procedimento. Conseqüentemente, valores de FEVE<0,15 na ventriculografia isotópica e <0,19 na ecocardiografia talvez sejam limítrofes para a realização da ventriculectomia.

A tabela I resume as possíveis indicações para a realização da ventriculectomia parcial.

Perspectivas

Com base nos resultados obtidos até agora, pode-se dizer que a ventriculectomia parcial esquerda, em pacientes selecionados, parece ser útil no tratamento da ICC em estágio avançado. Em nosso meio, os pacientes que provavelmente mais possam ser beneficiados pelo procedimento são aqueles que apresentam DDVE entre 75 e 90mm, FEVE entre 0,19 e 0,30 ao ecocardiograma, deambulação em 6min <300m e grau IV da NYHA estabilizados hemodinamicamente. Portanto, quando não se vislumbra a possibilidade de realizar transplante cardíaco em pacientes com ICC terminal, tratados clinicamente de forma adequada, a ventriculectomia pode estar indicada. Entretanto, a fim de se ter certeza do benefício da ventriculectomia na sobrevida de pacientes com ICC em estágio avançado, os dados até agora disponíveis apontam para a necessidade da realização de estudo prospectivo, duplo-cego, comparando-se a ventriculectomia com o tratamento clínico otimizado.

Referências

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Hospital do Coração de Ribeirão Preto

Correspondência: Reinaldo B. Bestetti - Serviço de Saúde-PCARP - Av. Bandeirantes, 3900 - 14049-900 - Ribeirão Preto, SP

Recebido para publicação em 13/6/97

Aceito em 10/9/97

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2001
  • Data do Fascículo
    Nov 1997
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