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Terapêutica da forma crônica da doença de chagas. É eficaz o tratamento etiológico?

Ponto de Vista

Terapêutica da Forma Crônica da Doença de Chagas. É Eficaz o Tratamento Etiológico?

Barbara Maria Ianni, Charles Mady

São Paulo, SP

A doença de Chagas ainda é endêmica na América Latina. Calcula-se que 25% dos habitantes, cerca de 90 milhões de pessoas, estão expostas ao risco de contrair a doença, havendo 16 milhões de infectados 1. No Brasil, as estatísticas mostram que cinco a seis milhões de indivíduos estão infectados, havendo 6000 óbitos por ano relacionados à doença 2.

Esta doença não se expressa sempre da mesma forma. Desde sua descrição por Carlos Chagas, sabemos que, aproximadamente, 60% das pessoas infectadas estão na forma indeterminada, isto é, têm reações sorológicas positivas para a doença, são assintomáticas, e têm eletrocardiograma (ECG), radiografia de tórax e estudo contrastado de esôfago e cólon normais 3,4. Vinte e cinco a 35% dos pacientes têm comprometimento cardíaco, sendo que em apenas 10% há desenvolvimento de cardiopatia importante 5.

Como em todas as doenças desencadeadas por agentes infecciosos, foram feitas várias tentativas de tratamento etiológico, com uma série de drogas, com resultados, freqüentemente, desanimadores. Mesmo uma das drogas mais experimentadas, o nifurtimox, foi abandonado pelos efeitos colaterais importantes que apresentava, estando atualmente fora do mercado.

Quando surgiu o benzonidazol, houve nova onda de entusiasmo em relação ao tratamento etiológico, que, em muitos centros, persiste até hoje.

Sabemos que as drogas tripanozomicidas são supressoras de parasitemia e que, para agir no parasita em sua forma intracelular, as doses teriam que atingir níveis tóxicos, não devendo ser utilizadas na clínica 6. Além disso, por algum tempo o parasita foi relegado a segundo plano na etiopatogenia da doença, já que se acreditava que, após a fase aguda, o processo seguiria um curso imunológico. Hoje, as evidências mostram que o parasita continua presente no organismo do hospedeiro e, provavelmente, é sua presença que mantém as reações imunológicas que, comprovadamente, existem no paciente chagásico 7,8. Em todas as situações em que as defesas do organismo estão diminuídas, como durante imunossupressão, há reativação da doença.

Quanto ao uso de tripanozomicidas na fase aguda da doença, não há dúvidas quanto à sua indicação. Porém, quanto à fase crônica, as condutas não são unânimes.

A primeira dificuldade reside no que se poderia utilizar como critério de cura. Tradicionalmente, o xeno foi utilizado, apesar de ser um exame de baixa sensibilidade 9. Tentando superar isso, são escolhidos, para os estudos, pacientes chamados de alta parasitemia, com três xenodiagnósticos positivos em seguida. Mesmo assim, a variabilidade do teste pode persistir, como demonstrou Cançado 10 em seguimento longo de pacientes com xenos repetidos, mostrando que mesmo pacientes com parasitemia moderada podem temporariamente negativá-los sem nenhuma intervenção terapêutica.

Os trabalhos iniciais nos últimos 30 anos foram comparativos entre nifurtimox e benzonidazol. Boainaim mostrou que o benzonidazol era mais efetivo na negativação do xeno que o nifurtimox (93% x 44%), havendo ainda efeitos colaterais importantes, como a neurite, dependente da dose, e a dermatite, mais relacionada à sensibilidade à droga 11.

A superioridade do benzonidazol em relação ao nifurtimox na negativação do xeno foi também comprovada por Ferreira 12 em 100 pacientes na forma indeterminada e por Levi e col 13 em 49 pacientes crônicos, sendo 17 na forma indeterminada.

Uma segunda fase da terapêutica específica, relacionada ao aspecto imunológico, foi a inclusão das reações sorológicas nos critérios de cura, como no trabalho de Ferreira 14 com 20 pacientes na forma indeterminada tratados com benzonidazol, havendo pequena porcentagem de negativação da sorologia. O que se notou, então, foi uma dissociação entre as porcentagens de negativação do xeno (altas) e de negativação das reações sorológicas (baixas ou inexistentes). Esse fato ajudou a aumentar a polêmica sobre o assunto.

Uma terceira fase incluiu grupos controles e aspectos clínicos. Macedo e col, seguindo por sete anos 180 pacientes na forma indeterminada, tratados com nifurtimox ou benzonidazol e 89 tomando placebo, observaram que, em relação a alterações eletrocardiográficas, 6,7% do grupo tratado e 8,8% no grupo placebo apresentaram mudanças no ECG, sem diferença estatisticamente significativa 15. O mesmo não observaram Viotti e col 16, em estudo com benzonidazol e seguimento de oito anos de 201 pacientes, 70 tomando placebo; observando diferença estatisticamente significativa entre os grupos, com melhor evolução no grupo tratado quanto às alterações eletrocardiográficas e à mudança de grupo clínico, mais evidente nos pacientes com idade <50 anos. Fragata Fº 17, seguindo por sete anos 71 pacientes tratados com benzonidazol e comparando-os com 49 controles observou também que havia deterioração clínica mais freqüente no grupo controle (14%) que no grupo tratado (7%), porém os efeitos colaterais apareceram freqüentemente, sendo que apenas 30% dos pacientes permaneceram assintomáticos. Em um outro trabalho de observação do uso do benzonidazol com grupo controle, Miranda e col 18 constataram, após seguimento de até 16 anos, que os pacientes tratados tinham maior porcentagem de estabilização do quadro clínico (89,5% x 10,5%) e que 45% tiveram efeitos colaterais, que obrigaram a suspensão da medicação em 10% dos casos, números muito mais promissores que outros trabalhos semelhantes, mesmo usando doses usuais.

Nosso grupo também teve uma experiência com o uso de benzonidazol, em 33 pacientes na forma indeterminada, sendo 18 no grupo controle. Dois pacientes tiveram alterações eletrocardiográficas após nove anos de seguimento, ambos do grupo que tomou a droga e 1/3 do grupo tratado apresentou efeitos colaterais importantes, o suficiente para a suspensão do tratamento 19. Este é um aspecto nem sempre abordado com clareza nos trabalhos publicados.

Na faixa etária pediátrica, o trabalho de Andrade e col 20 mostrou boa tolerância ao benzonidazol (menos de 5% de efeitos colaterais entre 64 pacientes tratados) com seroconversão de 63,7% com a droga, além de diminuição de títulos após o tratamento e de menor porcentagem de aparecimento de alterações eletrocardiográficas durante três anos de seguimento. Como se pode observar, a literatura não é concordante quanto aos resultados terapêuticos com essa droga.

Outras drogas já foram testadas recentemente, dentre elas o alopurinol. Meirovich e col 21, na Argentina, compararam nifurtimox, benzonidazol, alopurinol em dois esquemas terapêuticos e placebo e concluíram que a eficácia era semelhante na maior dose utilizada da droga (7 a 10 mg/kg/dia por 60 dias) em relação ao nifurtimox e ao benzonidazol, sem aparecimento de efeitos colaterais importantes, que existiam em até 50% dos pacientes usando as outras drogas, freqüentemente, obrigando a suspensão do tratamento 21. Porém esses dados não puderam ser reproduzidos no Brasil, talvez pela diferença de cepa 22. Boainaim e col 23 observaram, em 11 pacientes, que apenas um negativou o xeno após o tratamento.

Também recentemente foi experimentado o ketoconazol, com resultados desanimadores, como demonstrou Brener e col 24 em oito pacientes. O mesmo aconteceu com o itraconazol, utilizado por Fragata Fº e col 25 em 12 pacientes, com repositivação do xeno em 100% dos casos após dois anos de seguimento.

No Brasil, uma normatização de 1996 do Ministério da Saúde recomenda o tratamento na fase crônica para as crianças e os adultos jovens na forma indeterminada, sendo que, nos outros casos, a conduta deveria ser individualizada 26. Como tivemos oportunidade de recentemente demonstrar, os pacientes na forma indeterminada têm boa evolução, desenvolvendo alterações eletrocardiográficas em pequena porcentagem dos casos, sem correspondente alteração de fração de ejeção de ventrículo esquerdo, independente de qualquer intervenção 27. E, conforme comentamos, os resultados terapêuticos são absolutamente discordantes, não nos gerando uma segurança baseada em dados objetivos da literatura para sua utilização. Será que devemos mesmo tratar esse grupo de pacientes?

Pelo exposto, continuamos no mesmo impasse: tratar ou não tratar? Como podemos tomar a decisão de usar uma droga potencialmente tóxica, de manejo não tão fácil, num grande número de pacientes?

Continuamos sem resposta para essa questões. Além do esforço da pesquisa básica em relação a novas drogas, nós, clínicos, temos a responsabilidade de definir melhores critérios de cura ou pelo menos controle da doença, e de acompanhar a longo prazo os pacientes chagásicos, antes de ficarmos completamente convencidos de ter tomado a decisão acertada.

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP

Correspondência: Barbara Maria Ianni - Incor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar 44 - 05403-000 - São Paulo, SP

Recebido para publicação em 1/9/97

Aceito em 13/11/97

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Jan 1998

Histórico

  • Aceito
    13 Nov 1997
  • Recebido
    01 Set 1997
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