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Cardiomiopatia periparto. Análise crítica da imunossupressão

Peripartum cardiomyopathy. A critical analysis of immunosupression

Resumos

É feita uma revisão da literatura a respeito da cardiomiopatia periparto, descrevendo o caso de paciente do sexo feminino, branca, 31 anos, primípara, que apresentou quadro de falência miocárdica 6h pós-cesárea, com boa resposta após tratamento imunossupressor.


The authors review the literature about peripartum cardiomyopathy and describe a case of a white woman, 31 years old, primipara, who developed myocardial failure six hours after caesarian operation, with good results after immunossupressive therapy.


Relato de Caso

Cardiomiopatia Periparto. Análise Crítica da Imunossupressão

Heron Rached, Roberto de Cleva, Ronaldo Pinheiro, Pedro Gregório Mekhitarian, Ricardo Mazzieri

São Paulo, SP

É feita uma revisão da literatura a respeito da cardiomiopatia periparto, descrevendo o caso de paciente do sexo feminino, branca, 31 anos, primípara, que apresentou quadro de falência miocárdica 6h pós-cesárea, com boa resposta após tratamento imunossupressor.

Peripartum Cardiomyopathy. A critical Analysis of Immunosupression

The authors review the literature about peripartum cardiomyopathy and describe a case of a white woman, 31 years old, primipara, who developed myocardial failure six hours after caesarian operation, with good results after immunossupressive therapy.

A cardiomiopatia periparto (CPPM) é uma doença de etiologia desconhecida, caracterizada por disfunção ventricular esquerda severa no final da gestação ou no puerpério 1-3, relatada pela primeira vez com quadro de insuficiência cardíaca idiopática com início após o parto, por Ritchie, em 1849. Uma vez que algumas pacientes desenvolvem a enfermidade no último mês da gestação, o termo atualmente empregado, miocardiopatia periparto, parece mais adequado. Os fatores de risco incluem história familiar, idade materna avançada, hipertensão arterial, deficiência de selênio, multiparidade, descendência africana e tocólise prolongada 3-7. O diagnóstico em geral baseia-se em: 1) desenvolvimento de insuficiência cardíaca no último trimestre da gestação ou até seis meses pós-parto; 2) exclusão de outras causas de insuficiência cardíaca congestiva, como infecções ou toxinas e 3) ausência de cardiopatia prévia (congênita ou adquirida) 1. O tratamento imunossupressor, baseado em possível etiologia auto-imune, tem sido objeto de estudos. Relatamos o caso de uma jovem portadora de CPPM que evoluiu com recuperação plena da função miocárdica após pulsoterapia com metilpredinisolona.

Relato do Caso

Mulher de 31 anos, branca, primigesta, procedente de São Paulo, tabagista importante (20 cigarros/dia/11anos), pré-natal sem intercorrências, sem cardiopatia prévia ou uso de drogas, submetida a parto cesárea. Seis horas após o procedimento cirúrgico, evoluiu com queixas de dispnéia e mal estar geral. A avaliação obstétrica inicial não detectou alterações significativas. Após 24h, a paciente apresentou piora do quadro de dispnéia, sudorese fria e cianose de extremidades. Feito diagnóstico de insuficiência respiratória aguda, optou-se pela transferência para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

O exame físico na admissão à UTI mostrou paciente em grave estado geral, agitada, dispnéica (++++/+4), sudoréica, com palidez cutâneo-mucosa, cianose de extremidades e jugulares túrgidas (++/+4) a 45°. A pressão arterial era 80/50mmHg e a freqüência cardíaca 140bpm. O exame físico revelou bulhas cardíacas abafadas, com ritmo de galope (B3) e à ausculta pulmonar estertores crepitantes nos 2/3 inferiores de ambos hemitóraces. A radiografia de tórax realizada à beira do leito mostrou congestão pulmonar e índice cardiotorácico de 0,6. A ecocardiografia revelou comprometimento miocárdico difuso de grau importante e discreta regurgitação valvar mitral (eco 1/fig. 1). Feito diagnóstico de choque cardiogênico, foi indicada monitorização hemodinâmica invasiva com cateter de artéria pulmonar. As variáveis hemodinâmicas confirmaram o diagnóstico de choque cardiogênico (SG 1/fig. 2). Orientados pelo quadro clínico e parâmetros hemodinâmicos, optou-se por tratamento convencional com digital, diuréticos e drogas vasoativas. Foi instituída ventilação mecânica modo assistida-controlada. Após 24h de tratamento guiado pela monitorização invasiva, a disfunção miocárdica mostrou-se refratária ao tratamento (SG 2/fig. 2). Após 48h da admissão na UTI a paciente evoluiu com quadro súbito de bradicardia, hipotensão e assistolia, sendo ressuscitada com sucesso. Uma hora após, as variáveis hemodinâmicas encontravam-se inalteradas em relação ao SG2. Face à gravidade do caso e refratariedade à terapêutica, resolvemos submeter a paciente à pulsoterapia com metilpredinisolona (1g/dia/3dias). Nas 48h pós-tratamento imunossupressor, observamos importante melhora das variáveis hemodinâmicas (SG 3/fig. 2), com estabilização (SG 4/fig. 2) e importante melhora do desempenho ventricular esquerdo, havendo redução do diâmetro das câmaras cardíacas (eco-2/fig. 1). Realizou-se seguimento ecocardiográfico seriado no 14° e 28° dia pós-tratamento imunossupressor, observando-se normalização da função miocárdica e dos diâmetros cavitários (eco3/eco4/fig. 1). A pesquisa de imunocomplexos circulantes e anticorpo anti-músculo cardíaco mostrou-se negativa.



Discussão

A CCPM é definida no contexto fisiopatológico, como miocardiopatia de padrão dilatado-congestivo, presente no último trimestre da gravidez ou, mais freqüentemente, nos seis primeiros meses pós-parto, em mulheres previamente saudáveis 1. Embora tenha sido descrita no século XIX, ainda hoje permanece com etiologia indefinida 8. É considerada doença de baixa prevalência em nosso meio (1:15.000 gestantes) 9 mas muito freqüente no continente africano (1:1.000 ) 10,11. A CCPM é mais freqüente em pacientes de cor negra, em gestantes de idade avançada (>35a) na gestação gemelar, em gestantes com alto consumo de sódio e baixo nível sócio-econômico 1.

As características hemodinâmicas, classicamente, descritas incluem aumento das pressões de enchimento com diminuição acentuada do débito cardíaco, embora alguns autores tenham encontrado circulação normal ou hiperdinâmica em percentual variável de pacientes 12.

A etiologia auto-imune permanece controversa, embora já tenham sido identificados anticorpos anti-miocárdicos no sangue do cordão umbilical, anticorpos anti-actina e anti-músculo liso em portadores de CPPM 13. A teoria auto-imune pressupõe liberação de actomiosinas e seus metabólitos pelo útero, havendo formação de anticorpos que apresentariam reação cruzada com o miocárdio materno, causando miocardite. Entretanto, Cnac e col 14 (através de dosagens séricas de IgG, IgA, IgM, complexos imunes circulantes e anticorpos anti-músculo cardíaco) e Rizeq e col 3 (baixa incidência de miocardite na biópsia endomiocárdica em 34 pacientes) não conseguiram demonstrar a etiologia auto-imune.

O diagnóstico baseia-se na presença de sinais e sintomas de insuficiência cardíaca em gestante no último trimestre da gravidez ou nos seis primeiros meses pós-parto, sem doença cardíaca prévia, na ausência de abuso de drogas (álcool, cocaína ou outros depressores miocárdicos), devendo ser afastados diabetes gestacional, eclâmpsia ou pré-eclâmpsia, endocardite, tireotoxicose e edema pulmonar não cardiogênico 1,15. Entretanto, deve-se ressaltar que o diagnóstico de miocardiopatia periparto pode ser feita mesmo na presença de outra cardiopatia, que justifique o quadro de insuficiência cardíaca, sendo necessária a realização de biópsia endomiocárdica 16. A radiografia de tórax tipicamente revela aumento da área cardíaca com padrão congestivo pulmonar. O eletrocardiograma pode mostrar arritmias, alterações difusas da repolarização ventricular, bloqueio de ramo ou sinais de sobrecarga ventricular esquerda. A ecocardiografia é peça fundamental para o diagnóstico da disfunção miocárdica, além de permitir avaliar a resposta terapêutica através da análise do delta D, fração de ejeção ventricular e diâmetros cavitários, embora tais alterações não sejam específicas. A biópsia endomiocárdica pode mostrar miocardite linfocitária 6,8, infiltrado linfo-histiocitário sem necrose celular ou hipertrofia isolada de fibras cardíacas 17,18. Quando a biópsia endomiocárdica é normal, a cintilografia miocárdica com índio-111 pode demonstrar a presença de miocardite 19 Não foram detectados até o presente momento agentes infecciosos em associação com CPPM.

O prognóstico está diretamente relacionado ao grau de disfunção miocárdica, diâmetro das câmaras cardíacas ( diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo >70mm) e complicações secundárias como arritmias, tromboembolismo, sepse, disfunção de múltiplos órgãos, e resposta terapêutica satisfatória (redução dos diâmetros das cavidades cardíaca e melhora no desempenho ventricular) a curto prazo (aproximadamente seis meses) 20-22. A dilatação e diminuição da contratilidade miocárdica devem-se, em parte, à formação excessiva de óxido nítrico 23.

Embora de eficácia duvidosa, uma vez que a etiologia auto-imune não foi adequadamente documentada, o tratamento imunossupressor poderá ser considerado quando o paciente mostrar-se refratário ao tratamento convencional (drogas inotrópicas, diuréticos e vasodilatadores). Considerando a existência de alta incidência de cura espontânea (50%) 24, as complicações e efeitos colaterais dos agentes imunosupressores, seu emprego pode ser considerado medida empírica em pacientes com rápida deterioração hemodinâmica e evolução desfavorável, como no nosso caso. Entre os agentes imunossupressores podem ser empregados os costicosteróides, azatioprina ou ciclosporina. Em casos refratários, deve-se considerar a indicação de transplante cardíaco 24,25.

Nosso relato descreve o caso de uma paciente na qual o emprego de imunosupressores possa ter sido benéfico, contribuindo para melhora clínica e hemodinâmica significativa após sua introdução. Observou-se melhora da função ventricular esquerda avaliada pela ecocardiografia, havendo normalização da fração de ejeção, encurtamento sistólico e diâmetros ventriculares em período de duas semanas.

Pela evolução satisfatória do caso e baseados em alguns relatos da literatura 3,26-30, acreditamos que o uso criterioso de drogas imunosupressoras pode representar opção terapêutica para reverter, parcial ou totalmente, enfermidade com elevada morbi-mortalidade, ou a evolução insidiosa para cronicidade.

Hospital da Beneficência Portuguesa - São Paulo

Correspondência: Heron Rached - Unidade Coronária - Rua Maestro Cardim, 769 - 01323-001 - São Paulo, SP

Recebido para publicação em 5/1/98

Aceito em 20/1/98

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Abr 1998

Histórico

  • Aceito
    20 Jan 1998
  • Recebido
    05 Jan 1998
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