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Caso 1/2002 - Descompensação de insuficiência cardíaca e ascite em mulher de 51 anos portadora de prótese biológica em posição mitral (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP, São Paulo)

Correlação Anatomoclínica

Correlação Anatomoclínica

Caso 1/2002 - Descompensação de insuficiência cardíaca e ascite em mulher de 51 anos portadora de prótese biológica em posição mitral (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP, São Paulo)

Guilherme Urpia Monte, Renata Bacic Palhares, Eduardo Vieira da Motta

São Paulo, SP

Mulher de 51 anos foi internada para tratamento cirúrgico de disfunção de prótese biológica em posição mitral.

A paciente também era portadora de convulsões tônico-clônicas generalizadas, iniciadas aos 18 anos de idade, controladas com difenilhidantoína, e hipoacusia acentuada, sem etiologia identificada.

Aos 23 anos de idade (1971), necessitou internação por dispnéia e edema generalizado, iniciando tratamento medicamentoso, permanecendo pouco sintomática por aproximadamente 10 anos. Aos 32 anos (1981), houve nova descompensação cardíaca, que foi atribuída à interrupção do uso de furosemida e digoxina. Procurou atendimento médico, com dispnéia aos esforços habituais, dispnéia noturna e edema de membros inferiores. Foram feitos os diagnósticos de cardiopatia reumática crônica, dupla lesão mitral, insuficiência da valva tricúspide e fibrilação atrial.

O eletrocardiograma revelou fibrilação atrial e sobrecarga de ventrículo direito (fig. 1).


Foi indicado o tratamento cirúrgico da disfunção valvar mitral e realizado o implante de prótese de pericárdio bovino 26 em posição mitral (8/3/82).

Depois da operação, a paciente evoluiu sem sintomas. Dois ecocardiogramas nesse período (janeiro/85 e março/89) não demonstraram alterações nas dimensões das câmaras cardíacas ou disfunção da prótese. O último exame foi considerado sugestivo de hipertensão pulmonar (tab. I).

Aos 40 anos de idade, apresentou novamente dispnéia e edema de membros inferiores e procurou atendimento médico (4/4/89). O exame físico revelou mucosas descoradas. A ausculta do coração revelou 3ª bulha em área mitral e sopro sistólico mitral. A taxa de hemoglobina foi 5,5 g/dL; hematócrito 23% e a taxa de leucócitos 3700 por mm³ . Foi feito o diagnóstico de anemia de etiologia a ser esclarecida.

O eletrocardiograma (outubro/89) revelou flutter atrial e sobrecarga de átrios direito e esquerdo e de ventrículo direito (fig. 2). O ecocardiograma (feveiro/90) revelou insuficiência tricúspide moderada e discreta disfunção da prótese (tab. I).


Na ocasião, a paciente foi hospitalizada em outro Serviço e recebeu tratamento que incluiu transfusões de sangue. Recebeu alta hospitalar com ajuste de medicação, evoluindo pouco sintomática.

Aos 50 anos, procurou novamente atendimento médico por dispnéia aos mínimos esforços e de decúbito e edema de membros inferiores. O ecocardiograma (7/12/99) revelou átrio esquerdo e ventrículo direito muito aumentados, além de sinais de rotura da prótese, com insuficiência acentuada (tab. I).

O exame físico (29/12/99) revelou pressão arterial 100/40mmHg e freqüência de pulso de 100bpm. Havia aumento acentuado da pressão venosa jugular. Foram detectados estertores em bases pulmonares e no exame do coração, sopros sistólico e diastólico na área mitral e sopro sistólico na área tricúspide. O exame do abdome mostrou ascite volumosa. O fígado foi palpado a 8cm do rebordo costal direito e o baço a 5cm do rebordo costal esquerdo. Os membros inferiores apresentavam edema +++ .

A paciente foi hospitalizada e recebeu indicação de troca da prótese e tratamento cirúrgico da insuficiência tricúspide.

Na avaliação laboratorial, foram detectadas hemoglobina 8,7g/dL, hematócrito 26%, leucócitos 2800/mm3 80000 plaquetas/mm3. As reações sorológicas para hepatite A, B e C foram negativas.

O exame ultra-sonográfico do abdome revelou imagem considerada sugestiva de mioma uterino. A tomografia computadorizada do abdome (26/2/00) detectou ascite volumosa, diminuição de volume e contorno lobulado do fígado, esplenomegalia com imagens sugestivas de infartos esplênicos e sinais de hipertensão portal. O rim direito era de dimensões reduzidas.

Tendo em vista a sua condição clínica, a paciente foi transferida para hospital de retaguarda para completar o preparo pré-operatório. Foi submetida a tratamento dentário com profilaxia antibiótica com amoxicilina.

A cineangiocoronariografia não mostrou obstruções em artérias coronárias (3/3/00; 130364).

A paciente foi submetida a intervenção cirúrgica (3/4/00), sendo realizadas a troca da prótese por bioprótese de pericárdio bovino 31 e plástica de De Vega na valva tricúspide.

O exame histológico da prótese explantada (3/4/00) revelou prótese com diâmetro interno de 3,1cm, espessada, com calcificação e laceração dos folhetos e infiltrado linfo-histiocitário moderado. O fragmento de endocárdio que acompanhava a prótese revelou espessamento difuso e calcificação.

No período pós-operatório imediato, houve confusão mental e insuficiência respiratória, sendo necessária reintubação orotraqueal. Sofreu uma parada cardiorrespiratória e convulsões. A broncoscopia no 8o dia pós-operatório (11/4/00) revelou traqueíte intensa. Foi realizada traqueostomia no 11º dia de pós-operatório.

A paracentese do líquido ascítico (18/4/00) revelou líquido sero-sanguinolento. O exame citológico revelou presença de moderada qualidade de neutrófilos, discreta de linfócitos, e moderada de histiócitos, moderada de células mesoteliais, ausência de células epiteliais, neoplásicas e microorganismos.

Na evolução houve deterioração hemodinâmica e insuficiência renal, exigindo diálise peritoneal. Foram diagnosticadas paresia de membro superior esquerdo, plegia de membro superior direito e paraparesia, que involuíram significativamente. A paciente teve alta da unidade de recuperação pós-operatória no 52º dia pós-operatório (25/5/00).

A avaliação laboratorial (29/5/00) revelou hemoglobina de 9,3g/dL, hematócrito 28%, leucócitos 6200 por mm3, plaquetas 214000 por mm3, glicemia 82mg/dL, uréia 72mg/dL, creatinina 1,1mg/dL, ferro sérico 57 m/dL, capacidade de fixação do ferro 227 m/dL, saturação de ferro 25%; ferritina 827 ng/mL, TSH 9,3 mU/ml, T4 1 ng/dL.

Outras complicações foram úlceras de pressão em tornozelos e região sacral, esta última necessitando fechamento cirúrgico (7/7/00) por rotação de retalho de região glútea.

Persistiram a dispnéia e ascite e no 123º dia após a operação apresentou choque e insuficiência renal anúrica. A radiografia de tórax revelou condensação em 1/3 médio de hemitórax esquerdo. O lavado brônquico foi negativo para bactérias e fungos. No 130º dia após a cirurgia apresentou parada cardiorrespiratória em assistolia, vindo a falecer (17/8/00).

Discussão

Aspectos clínicos - Trata-se de uma paciente do sexo feminino, com diagnóstico prévio de cardiopatia reumática crônica, com envolvimento da valva mitral (dupla disfunção). Não há descrição, na história, de episódio prévio de febre reumática, o que não invalida o diagnóstico 1. Os sintomas durante o surto de febre reumática podem ser muito leves ou atípicos, dificultando o seu reconhecimento. Além disso, a presença de estenose mitral é altamente sugestiva da etiologia reumática, uma vez que 99% das válvulas mitrais excisadas por estenose têm envolvimento reumático 2.

Ela permaneceu assintomática até os 23 anos de idade, quando começou a apresentar sintomas de insuficiência cardíaca congestiva, dispnéia e edema. Na ocasião foi iniciado tratamento medicamentoso, ficando pouco sintomática por cerca de 10 anos, quando teve piora dos sintomas, chegando à classe funcional III de insuficiência cardíaca congestiva (New York Heart Association). Foram então diagnosticadas a dupla disfunção mitral, insuficiência tricúspide e fibrilação atrial. Essa evolução é compatível com a história natural da estenose mitral reumática. O surto inicial de febre reumática costuma ocorrer entre os 5 e 15 anos de idade, seguido de um período assintomático que varia, em média, de 15 a 20 anos, para então surgirem os primeiros sintomas de insuficiência cardíaca congestiva; depois os pacientes passam da classe funcional II para III ou IV entre 5 e 10 anos 3. Essa evolução pode ser mais rápida em países em desenvolvimento de áreas tropicais e subtropicais, devido, provavelmente, a fatores econômicos e genéticos 4.

Além disso, a associação da insuficiência mitral, caracterizando a dupla disfunção, acrescenta morbi-mortalidade à progressão da estenose mitral. Em estudo na "era pré-cirúrgica" das valvopatias, Rapaport 5 observou mortalidade de 33% em 5 anos e de 70% em 10 anos após o diagnóstico de dupla disfunção da válvula mitral.

A presença de insuficiência tricúspide e fibrilação atrial na época do diagnóstico também traz importantes repercussões prognósticas. Embora possa ocorrer, raramente, envolvimento direto da válvula tricúspide pela doença reumática, na grande maioria das vezes a insuficiência é decorrente da dilatação do ventrículo direito e, conseqüentemente, do anel valvar (denominada insuficiência secundária). A sobrecarga e dilatação do ventrículo direito decorrem usualmente da hipertensão pulmonar, resultado da transmissão retrógrada da pressão elevada no átrio esquerdo e veias pulmonares. A hipertensão pulmonar é fator reconhecido de aumento da mortalidade cirúrgica na valvopatia mitral. A fibrilação atrial, por sua vez, está presente em 30 a 40% dos pacientes com estenose mitral e também confere aumento na morbi-mortalidade, devido à redução no débito cardíaco causado pela perda da contração atrial e ao risco de tromboembolismo 5.

Aos 33 anos de idade, a paciente foi submetida ao implante de bioprótese de pericárdio bovino em posição mitral. As biopróteses apresentam habitualmente menor incidência de complicações trombólicas, contudo são mais susceptíveis a falhas mecânicas, principalmente em jovens 6,7. Entretanto, no nosso Hospital, os resultados com bioprótese de pericárdio bovino têm sido satisfatórios 8. A paciente passou bem por aproximadamente oito anos e dois ecocardiogramas desse período não demonstraram alterações significativas das câmaras cardíacas; todavia, no último, já se observavam sinais de hipertensão pulmonar, insuficiência tricúspide e insuficiência cardíaca congestiva.

Aos 40 anos, porém, voltou a apresentar sintomas de insuficiência cardíaca congestiva (dispnéia e edema de membros inferiores). Foi hospitalizada, sendo diagnosticada anemia acentuada. Na verdade, a paciente apresentava anemia e leucopenia e, provavelmente já tinha, também, uma contagem baixa de plaquetas (não referida na história), caracterizando uma pancitopenia, observada na sua última internação e discutida mais à frente. Realizado novo ecocardiograma nessa época, que evidenciou discreta insuficiência da prótese e progressão da insuficiência tricúspide (moderada), mantendo sinais de hipertensão pulmonar. Recebeu tratamento com hemotransfusões e ajuste das medicações, com melhora.

Ficou bem até 1999 (cerca de 18 anos após a cirurgia), quando voltou a ter sintomatologia de insuficiência cardíaca congestiva classe funcional III (NYHA). O exame físico revelava sinais de congestão pulmonar e, principalmente, sistêmica (estase acentuada de jugulares, ascite volumosa, hepato-esplenomegalia e edema de membros inferiores). Feito novo exame ecocardiográfico, que demonstrou grande aumento de átrio esquerdo e ventrículo direito e rotura da prótese, com insuficiência mitral e tricúspide acentuadas.

Na avaliação laboratorial, foi observada pancitopenia. Várias são as causas de pancitopenia, mas, de forma geral, podem ser divididas em dois grupos: distúrbios medulares e não-medulares. No 1º grupo podem ser citadas a anemia aplástica, anemia megaloblástica, mielodisplasia, mielofibrose, doenças linfoproliferativas e carcinomas com envolvimento medular. No 2º grupo estão o hiperesplenismo, efeito de drogas, as doenças inflamatórias (como lúpus eritematoso sistêmico) e infecciosas (tuberculose, AIDS, leishmaniose, brucelose). No caso em questão, a ausência de outros sinais de infecção (como febre, linfadenomegalia) torna essa hipótese menos provável, embora não possa ser afastada; a ausência de atipia celular descrita no sangue periférico e o curso prolongado e benigno da pancitopenia (pelo menos 10 anos de evolução) tornam a hipótese neoplásica mais remota, porém não descartada. A difenil-hidantoína pode produzir citopenias, especialmente de células brancas e raramente das outras séries. Anemia megaloblástica (causa de pancitopenia) pode ser gerada pela alteração da absorção do folato e seu metabolismo pela difenil-hidantoína. No entanto, a paciente fazia uso da medicação desde os 18 anos de idade e só veio apresentar as alterações hematológicas aos 40 anos, o que também torna pouco provável a associação entre elas. O hiperesplenismo pode ocorrer em qualquer situação clínica que determine esplenomegalia significativa. Essa condição é caracterizada por citopenias, medula óssea normal ou hiperplásica e comumente melhora com a esplenectomia. As citopenias são causadas pelo "seqüestro" e destruição das células sangüíneas resultantes do fluxo lento pelos vasos esplênicos engurgitados (na esplenomegalia congestiva) ou por mecanismos auto-imunes.

Sabe-se que a insuficiência cardíaca congestiva pode levar a hepato-esplenomegalia significativa, principalmente nos acometimentos da válvula tricúspide e na pericardite constrictiva, e há relatos de casos e pequenas revisões na literatura que estabelecem hiperesplenismo decorrente de insuficiência cardíaca congestiva como causa de pancitopenia. Bennett e cols. 9, por exemplo, observaram hiperesplenismo em paciente que tinha anomalia de Ebstein e com a correção cirúrgica houve normalização dos níveis hematimétricos, voltando a apresentar pancitopenia com o posterior recrudescimento da insuficiência cardíaca direita. Podemos observar comportamento semelhante no caso em discussão, uma vez que houve aumento significativo do nível de hemoglobina, leucócitos e plaquetas (com normalização desses dois últimos) após a troca da bioprótese e plástica tricúspide. A nosso ver, portanto, a causa mais provável para a pancitopenia da paciente é o hiperesplenismo determinado pela congestão venosa sistêmica acentuada. De qualquer forma, outras causas de hiperesplenismo devem ser afastadas, especialmente hepatopatias crônicas, como por exemplo a esquistossomose mansônica, comum no nosso meio. As hepatites virais crônicas B e C foram afastadas no caso com base nas sorologias negativas. Fazem-se também necessários o mielograma, o exame protoparasitológico de fezes e as sorologias direcionadas aos agentes acima citados para orientar o diagnóstico diferencial.

A análise da prótese explantada revelou sinais de intensa degeneração. A vida útil de uma bioprótese varia muito com o modelo e o paciente. É inversamente proporcional à idade: mais curta em crianças e adultos abaixo de 35 a 40 anos e mais longa em idosos acima de 70 anos 6. O desgaste também é mais intenso na posição mitral do que na aórtica, provavelmente em função da pressão de fechamento mais elevada. Em geral, as primeiras evidências de desgaste da prótese aparecem no 4° ou 5° ano após o implante. No caso em discussão, certamente já havia evidências clínicas e ecocardiográficas de disfunção muito antes de a paciente se apresentar com a prótese rota. Nesse período, houve agravamento da hipertensão pulmonar e conseqüentes falência do ventrículo direito e insuficiência tricúspide acentuada, em função das elevadas pressões transmitidas retrogradamente para o átrio esquerdo e veias pulmonares, a partir da prótese insuficiente.

Após a cirurgia, a paciente evoluiu com várias complicações: confusão mental, convulsões, traqueíte, insuficiência respiratória e parada cardiorrespiratória. Realizada paracentese, que revelou líquido de aspecto sero-sanguinolento, presença moderada de neutrófilos, poucos linfócitos e ausência de células neoplásicas ou microrganismos.

Cabe aqui mencionar alguns pontos relativos ao estudo do líquido ascítico. Ascite hemorrágica pode ser determinada por neoplasias com disseminação peritoneal (até 20% dos casos), sendo as mais freqüentes de ovário, útero, pâncreas, estômago, cólon, pulmão e mama. A ausência de células neoplásicas no líquido ascítico e a predominância de neutrófilos sobre linfócitos (contrário do que seria esperado na ascite maligna) torna esse diagnóstico pouco provável. Além disso, os exames de imagem de abdome (ultra-sonografia e tomografia computadorizada) não revelaram massas, implantes ou espessamento peritoneal, apenas miomatose uterina, comum na faixa etária da paciente. A causa mais comum de ascite hemorrágica é atribuída ao "acidente de punção", gerada pela lesão de veias da parede abdominal pela agulha de paracentese e é o que deve ter acontecido neste caso.

A contagem celular é um dos parâmetros mais importantes. A presença de mais de 250 neutrófilos/mL é altamente sugestiva de peritonite bacteriana, espontânea ou secundária. A cultura do líquido só tem boa sensibilidade (>85%) quando realizada com meio de cultura apropriado e imediatamente inoculado à beira do leito. No caso em questão, não foi feita análise quantitativa, mas o predomínio de neutrófilos, mesmo com cultura negativa, pode ser indicativo de peritonite bacteriana espontânea.

Posteriormente, a paciente evoluiu com novas complicações: deterioração hemodinâmica, insuficiência renal com necessidade de diálise e úlceras de pressão. Teve também alteração de força muscular de forma assimétrica nos quatro membros, com predomínio do membro superior direito (plegia). É possível que tal manifestação tenha sido originada de embolizações para encéfalo a partir do coração. A característica multiterritorial do acometimento neurológico favorece esta hipótese. O eletrocardiograma pré-operatório mostrava novamente ritmo de fibrilação atrial e é possível que tenha permanecido com esse ritmo após a cirurgia (o que acontece em cerca de um terço dos casos). Além disso, nos 3 primeiros meses após o implante da bioprótese (período necessário para a endotelização do anel), o risco de tromboembolismo é maior, reduzindo posteriormente para níveis de 0,2 a 2% ao ano 6,8.

Outra possibilidade é a polineuropatia do paciente crítico ou mesmo alteração muscular difusa pelo uso de drogas, como os miorrelaxantes. Entretanto, nessas situações, a alteração motora costuma ser simétrica, o que não aconteceu neste caso.

Um exame neurológico detalhado e uma tomografia computadorizada de crânio certamente auxiliariam no diagnóstico diferencial.

Na evolução, apresentou dispnéia, choque e surgimento de condensação em 1/3 médio do pulmão esquerdo, sinais sugestivos de pneumonia hospitalar com sepsis associada. O lavado bronco-alveolar negativo não afasta o diagnóstico de pneumonia, uma vez que a sensibilidade desse exame varia de 65 a 95%, caindo significativamente (36 a 50%) nos casos já em uso de antibiótico, como provavelmente aconteceu com a paciente em discussão 10. Finalmente, a paciente teve nova parada cardiorrespiratória, vindo a falecer cerca de quatro meses após a cirurgia.

(Dr. Guilherme Urpia Monte)

Hipótese diagnóstica - Para concluir, elaboramos as seguintes hipóteses para os mais prováveis diagnósticos clínicos da paciente: 1) cardiopatia reumática crônica com envolvimento da válvula mitral (dupla disfunção), submetida a troca e posterior retroca por prótese de pericárdio bovino; 2) hipertensão pulmonar secundária com insuficiência tricúspide, levando a hepato-esplenomegalia congestiva, hiperesplenismo e pancitopenia; 3) distúrbio convulsivo primário (sem relação com a doença cardiovascular); 4) choque séptico secundário à pneumonia e possível peritonite bacteriana espontânea, como causa imediata do óbito.

(Dr. Guilherme Urpia Monte)

Necropsia

À necropsia, externamente, observamos desnutrição de grau moderado e icterícia 2/4+. O coração, com 480g, apresentava valvopatia aórtica reumática crônica, caracterizada por valva aórtica insuficiente, com espessamento dos folhetos e fusão de uma das comissuras, contudo sem calcificações (fig. 3). A valva mitral estava substituída por prótese biológica, sem outras particularidades. Como sinais de insuficiência cardíaca congestiva, havia congestão passiva em pulmões e fígado. No abdome, verificou-se tumor ovariano cístico bilateral, medindo 13cm à direita e 6,5cm à esquerda, com implantes peritoneais difusos, peritonite aguda fibrinopurulenta e hidroperitônio de 2500ml (seropurulento). Outros achados dignos de relato foram: colapso pulmonar e bócio multinodular tireoidiano.


O exame microscópico revelou cistadenocarcinoma papilífero em ambos os ovários (fig. 4), com extensa necrose. Nos pulmões, além do colapso, havia alterações vasculares decorrentes da hipertensão pulmonar passiva (fig. 5). A medula óssea apresentava hiperplasia da série eritrocítica, reacional. No fígado, observamos discreto alargamento por fibrose e infiltrado linfocitário nos espaços porta, aspecto também considerado como reacional ao quadro infeccioso. O óbito se deu por septicemia decorrente da peritonite associada à carcinomatose peritoneal.



Diagnósticos anatomopatológicos - Doença reumática crônica com acometimento de valvas aórtica e mitral; carcinoma de ovário com metástases peritoneais múltiplas e peritonite fibrinopurulenta.

(Dra. Renata Bacic Palhares)

Comentários

O câncer ovariano é uma doença mortal, raramente diagnosticada nos estágios precoces, quando há possibilidade de cura. A ausência de uma fase pré-maligna, clinicamente observada, dificulta o desenvolvimento de uma técnica para determinação da neoplasia num estágio inicial 11.

Levando-se em consideração que a efusão peritoneal pode ser um dos primeiros sinais do câncer ovariano, o exame citológico do líquido tem importante papel no seguimento dessas pacientes. Entretanto, pode ser difícil determinar se uma efusão peritoneal é causada por um processo benigno (reacional ou inflamatório), ou resultante de um processo maligno. As células mesoteliais nem sempre podem ser distinguidas de células neoplásicas. Métodos imunocitoquímicos são de grande importância, visto que existem marcadores com alta sensibilidade para diferenciar células neoplásicas de células mesoteliais reacionais. Como exemplos, o MOv18, OV 632 e OV-TL 23 12.

Neste caso, foi realizado previamente estudo citológico do líquido peritoneal, o qual não revelou presença de células neoplásicas.

As neoplasias de células serosas perfazem 20% a 50% do total dos tumores ovarianos. Destes, aproximadamente 20% a 25% são carcinomas, observados geralmente em pacientes com idade entre 40 e 70 anos 13.

Os carcinomas serosos invasivos do ovário são caracterizados por células neoplásicas com fenótipo semelhante ao das tubas uterinas. São critérios de invasão estromal 14: a) presença de projeções tentaculares para a superfície estromal; b) glândulas neoplásicas em desarranjo, pequenos grupos celulares ou células isoladas com alto grau de atipia citológica; c) alterações estromais como desmoplasia, com infiltrado inflamatório e delgados sinosóides neoformados; d) ausência de membrana basal ao redor de elementos invasivos; (e) área de invasão excedendo 10mm2.

Implantes peritoneais devem ser cuidadosamente analisados quando da presença ou não de invasão para os tecidos subjacentes. A forma invasiva está associada com um pior prognóstico, com índice de recorrência maior que 50% e taxa de sobrevida em 10 anos de 33% 14.

O estadiamento da doença em nosso caso, grau IIIa segundo a FIGO, era determinado pela presença de metástase peritoneal microscópica além da pelve 15. Neste estágio, a doença é incurável, com taxa de sobrevida em cinco anos entre 15% e 30% 14.

(Dra. Renata Bacic Palhares)

Comentário editorial

O câncer do trato genital representa cerca de 40% das neoplasias malignas diagnosticadas em mulheres brasileiras, sendo que em 1997 foram estimados 130.910 novos casos com 45.165 óbitos 16. No Brasil, o câncer é a segunda principal causa de óbito entre as mulheres, com taxa de 51,4 por 100.000 habitantes 17. Dentre os tumores do trato genital, o câncer de ovário apresenta grande importância pela maior mortalidade 18.

O risco de desenvolver câncer de ovário durante a vida é cerca de 1,4%, com incidência anual próxima a 55,1 por 100.000 mulheres que atingem a faixa etária entre 75 a 79 anos (The Surveillance Program, EUA, 1990). Este tumor apresenta biologia mal compreendida, há grande diversidade histológica e a localização pélvica dificulta sua propedêutica. Além disto, a ausência de sintomas significativos, a exceção de torções, hemorragias e grandes volumes tumorais ou ascíticos, retarda a procura por auxílio médico 19.

A realização de diagnóstico precoce, quando a doença ainda está restrita ao ovário, permite sobrevida de até 92% em cinco anos, porém, como a maioria dos casos é diagnosticada em estágios avançados, a sobrevida global é de aproximadamente 46% 18, ou seja, seu prognóstico é diretamente relacionado ao estádio clínico no momento do diagnóstico 20.

A caracterização epidemiológica das pacientes com maior ou menor risco para desenvolver a doença tem sido possível a partir de vários estudos colaborativos 21,22. O maior risco está associado a nível socioeconômico elevado, mulheres ocidentais, situações de multi-ovulação (e.g. nuliparidade, infertilidade) e antecedente familiar (herança genética, como mutações nos genes BRCA1 e BRCA2). Por outro lado, o menor risco associa-se com nível sócio econômico baixo, origem em países orientais e subdesenvolvidos e condições de menor ovulação, como multíparas ou usuárias de contraceptivos anovulatórios hormonais orais.

A gênese dos tumores ovarianos é mal compreendida, algumas teorias tentam explicá-la a partir dos traumas repetidos na superfície ovariana causados pelas ovulações 23, ação de gonadotropinas nas transformações celulares 24 e desenvolvimento a partir da transição entre epitélio benigno, de baixo potencial de malignidade e francamente maligno 25-27.

O diagnóstico precoce é difícil e vários são os estudos que tentam estabelecer parâmetros para seu rastreamento, sem sucesso. O exame clínico e o toque vaginal bimanual são limitados 28, especialmente em pacientes na menacme, obesas ou com ascite. No entanto, após a menopausa, quando os ovários devem se atrofiar, a identificação volumes anexiais semelhantes ou maiores do que aqueles observados na pré menopausa implicam em necessidade de melhor investigação 29.

O advento do exame ultra-sonográfico, principalmente por via transvaginal, tem permitido a avaliação mais detalhada dos órgãos anexiais e o diagnóstico de pequenos tumores e cistos ovarianos 28. A caracterização ultra-sonográfica em termos de tamanho, presença de septos, conteúdo (homogêneo versus heterogêneo) e da regularidade dos limites internos do tumor podem sugerir malignidade ou não 30. A tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética do abdome e da pelve têm se mostrado úteis na avaliação da extensão dos tumores de ovário, bem como no diagnóstico diferencial, mas apresentam limitações quanto ao emprego no rastreamento destas lesões 31.

Dentre os antígenos séricos – marcadores tumorais – mais relacionados ao câncer de ovário encontram-se o CA 125, CEA e CA 72.4, que, por se encontrarem habitualmente em níveis normais nos estádios iniciais, dificultam seu emprego no diagnóstico inicial 32,33. A sua dosagem sérica está principalmente indicada no seguimento de pacientes já submetidas a terapêutica, sendo principalmente marcadores de regressão, recidiva e progressão da doença 34.

Portanto, apesar do desenvolvimento desses instrumentos diagnósticos, a baixa prevalência do câncer de ovário, as dificuldades clínicas e a existência de condições fisiológicas e não neoplásicas que mimetizam tumores dificultam a definição de métodos propedêuticos com especificidade e sensibilidade adequados 35,36, dificultando o diagnóstico precoce.

Na paciente em questão, as condições clínicas (principalmente a ascite) limitavam o exame clínico-ginecológico. A ultra-sonografia revelou apenas miomatose uterina, achado freqüente nessa faixa etária. É interessante observar que o aspecto sonográfico de alguns tumores de ovário pode se confundir com alças intestinais e dificultar sua individualização, o que talvez explique a não observação do tumor no exame ultra-sonográfico realizado.

Por outro lado, a tomografia não descreve a pelve e seus órgãos, uma vez limitada ao abdome, demonstrando a importância em se ampliar o campo da imagem quando da investigação de ascites de origem indeterminada. Além disto, em tumores limitados ao ovário (estádio I) sem implantes no restante da cavidade peritoneal, a tomografia abdominal é normal.

(Dr. Eduardo Vieira da Motta;

Disciplina de Ginecologia – FMUSP)

Referências

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Editor da Seção: Alfredo José Mansur (e-mail: ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (e-mail: dclfavarato@incor.usp.br) Vera Demarchi Aiello (e-mail: anpvera@incor.usp.br)

Correspondência: Alfredo José Mansur – InCor – Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 – 05403-000 – São Paulo, SP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Fev 2002
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