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Caso 2/2002 - Homem de 60 anos, normotenso, apresentando confusão mental, dor torácica e alargamento de mediastino

Correlação Anatomoclínica

Correlação Anatomoclínica

Caso 2/2002 - Homem de 60 anos, normotenso, apresentando confusão mental, dor torácica e alargamento de mediastino - (Hospital e Maternidade Celso Pierro/Grupo de Estudo em Correlação Anatomoclínica (GECAC)/Pontifícia Universidade Católica - Campinas, SP)

Otavio Martucci, Gustavo Loureiro, Carlos Osvaldo Teixeira, Maria Aparecida Barone Teixeira

Campinas, SP

Paciente do sexo masculino, 60 anos, negro, procurou atendimento médico por história de anorexia, náusea e confusão mental há um dia. Negava febre, vômito ou cefaléia. Há 6 meses, queixava-se de dor torácica difusa, de fraca intensidade, "em pontadas", de caráter intermitente, que piorava com a tosse.

Referia ser tabagista de aproximadamente 20 cigarros por dia há 40 anos. Negava hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus. Apresentava antecedente de um único episódio de dor torácica súbita há quatro meses, de forte intensidade, "em aperto", com irradiação para o abdome, com melhora espontânea em 24h. Referia não ter procurado auxílio médico na ocasião.

Ao exame físico de entrada, apresentava-se em regular estado geral, confuso, desorientado, hidratado, afebril, com pressão arterial 140/80mmHg. A semiologia pulmonar revelava murmúrio vesicular presente, porém globalmente diminuído, sem ruídos adventícios e a semiologia cardíaca, ritmo regular, em dois tempos, com bulhas normofonéticas, sem sopros audíveis. Os pulsos carotídeos e radiais eram simétricos e de intensidade ++++/4. Os pulsos femorais eram simétricos, porém de intensidade diminuída ++/4. Os pulsos poplíteos e pediosos não eram palpáveis à esquerda e de intensidade ++/4 à direita.

A radiografia de tórax em posição póstero-anterior (fig. 1) revelou alargamento acentuado do mediastino e imagem radiopaca mal definida na base do pulmão direito, além de silhueta cardíaca compatível com hipertrofia do ventrículo esquerdo.


A tomografia computadorizada de tórax (fig. 2) revelou imagem expansiva de limites imprecisos no pulmão direito, alcançando a parede torácica e delaminação aórtica desde a aorta torácica descendente, logo abaixo da emergência da artéria subclávia esquerda. A tomografia computadorizada do abdome evidenciou que a delaminação estendia-se até a bifurcação das artérias ilíacas comuns e excluía comprometimento de ramos abdominais viscerais. A tomografia computadorizada do encéfalo não demonstrou imagens sugestivas de metástases.


O eletrocardiograma (fig. 3) evidenciou sinais de sobrecarga ventricular esquerda e presença de complexo QR com duração da onda Q em aVL de 4ms e amplitude de 3mm, sem corrente de lesão.


O nível sérico de cálcio era muito elevado em diversas aferições, sempre em torno de 16mg/dl (valor de referência: 8,4 a 10,4mg/dl), e não havia outras alterações eletrolíticas.

Durante a internação, o paciente sofreu piora progressiva do quadro de confusão mental, atribuído à hipercalcemia de difícil controle. Manteve a pressão arterial em torno de 140/80mmHg. O débito urinário foi diminuindo progressivamente, no entanto as dosagens de uréia e creatinina séricas mantiveram-se dentro dos valores normais.

Na evolução, sofreu parada cardiorrespiratória, não respondendo às manobras de reanimação.

(acadêmico Gustavo Loureiro)

Aspectos clínicos - As tomografias computadorizadas de tórax e abdome acrescentaram informação relevante para o diagnóstico. A delaminação aórtica foi um achado de exame, uma vez que o quadro clínico descrito não era compatível com delaminação aguda da aorta.

O paciente queixava-se de dor torácica crônica do tipo pleurítica, justificada pelo comprometimento metastático da pleura e arcabouço ósteo-muscular do tórax.

Os diagnósticos de infarto antigo da parede lateral do ventrículo esquerdo e de cardiomiopatia hipertrófica foram aventados pela presença de complexo QR, com onda Q de 3mm de amplitude e 4ms de duração, na derivação aVL do eletrocardiograma. Na ausência de hipertensão arterial sistêmica, a silhueta cardíaca de hipertrofia do ventrículo esquerdo na radiografia de tórax, juntamente com os sinais de sobrecarga ventricular esquerda no eletrocardiograma, tornaram a hipótese diagnóstica de cardiomiopatia hipertrófica plausível.

O episódio de dor torácica súbita há quatro meses, devido aos caracteres referidos, pode ter sido tanto pela delaminação da aorta, quanto por um provável infarto do miocárdio.

Têm sido descritos casos crônicos de delaminação aórtica 1-4. Acredita-se que menos de 10% dos pacientes que sofreram delaminação da aorta sobrevivam ao episódio agudo; os outros 90 % falecem dentro de, no máximo, três meses 1,5. No entanto, é bom o prognóstico dos pacientes que sobrevivem mais de três meses após a dissecção aguda, cerca de 70 a 80 % em 5 anos e de 60 a 70 % em 10 anos 5. Nesse grupo, cerca de 40% dos óbitos são por causas não relacionadas à delaminação 1,5. A ressonância magnética tem sido considerada bom método para o seguimento desses pacientes 3,5.

O paciente em questão apresentava quadro compatível com delaminação crônica da aorta. Após episódio agudo não complicado, como rotura ou dissecção de ramos aórticos importantes, o trajeto intramural delaminado (falsa luz) pode sofrer um processo chamado de "reentrada", permitindo fluxo alternativo para a corrente sangüínea que se comunica com a luz original da aorta 1. Quando isto ocorre, os pacientes tornam-se assintomáticos, desde que não ocorra expansão da dissecção 2,4.

A hipercalcemia é um dos distúrbios metabólicos paraneoplásicos mais comuns das neoplasias intratorácicas, especialmente as broncogênicas 6. A confusão mental, associada à náusea e anorexia, descritas anteriormente, pode ser justificada pelos altos níveis séricos de cálcio revelados em diversas aferições. A delaminação da artéria aorta poupou ramos abdominais viscerais, inclusive as artérias renais. Desse modo, o distúrbio metabólico do caso relatado pode ser atribuído à hipercalcemia paraneoplásica, capaz de desencadear distúrbio do ritmo cardíaco e subseqüente parada cardiorrespiratória.

Formulamos os seguintes diagnósticos: 1) neoplasia pulmonar com metástase para a parede torácica; 2) delaminação crônica da artéria aorta (tipo II de De Bakey ou tipo B de Daily). Também aventamos as seguintes possibilidades diagnósticas: 1) confusão mental secundária à hipercalcemia paraneoplásica; 2) cardiomiopatia hipertrófica; 3) infarto antigo do miocárdio.

(acadêmico Otávio Martucci,

Dr. Carlos Osvaldo Teixeira)

Necropsia

Os pulmões pesaram, em conjunto, 2.100g e apresentavam múltiplos pequenos nódulos disseminados bilateralmente por todo o parênquima e pleura, além de áreas de enfisema. Havia massa tumoral de caráter expansivo no parênquima pulmonar peri-hilar à direita de aproximadamente 7cm no seu maior diâmetro. A microscopia óptica em hematoxilina-eosina (HE) revelou adenocarcinoma broncogênico moderadamente diferenciado, com metástase para as pleuras, costelas, fígado e linfonodos mediastinais.

A artéria aorta, além de aterosclerose grave, apresentava delaminação com orifício de entrada abaixo da emergência da artéria subclávia esquerda até as artérias ilíacas comuns. A microscopia óptica em HE revelou degeneração medial cística, caracterizada por fragmentação e rotura das lâminas elásticas, com separação focal dos elementos elásticos e fibromusculares da túnica média, sem inflamação. A cronicidade da delaminação ficou demonstrada pela presença de áreas calcificadas na falsa luz da aorta e fibrose (figs. 4 e 5). Observou-se orifício de reentrada da falsa luz nas artérias ilíacas comuns.



O coração pesou 400g e mostrava hipertrofia concêntrica moderada. À microscopia óptica, o quadro era compatível com cardiomiopatia hipertrófica (fig. 6); notava-se acentuado desarranjo das fibras miocárdicas, associado à fibrose intersticial, em diversos fragmentos do septo ventricular e de todas as paredes do ventrículo esquerdo. Na parede livre do ventrículo direito, além de perda do paralelismo entre as fibras miocárdicas, notavam-se múltiplos focos de fibrose subendocárdica. Na parede posterior do ventrículo esquerdo, macroscopicamente havia pequena cicatriz subendocárdica próxima à inserção da mitral. Em relação às artérias coronárias, havia oclusão ateromatosa de cerca de 80% da luz da coronária direita em seu terço proximal; as demais coronárias apresentavam doença aterosclerótica de grau leve.


O parênquima renal era normal macro e microscopicamente e não havia arteriopatia ou arteriolopatia por hipertensão arterial sistêmica.

(Dra. Maria Aparecida Barone Teixeira)

Comentários

Considerando os achados necroscópicos, atribuímos o substrato anatômico para a dor torácica difusa, intermitente, "em pontadas", referida há seis meses, à infiltração tumoral das pleuras e arcabouço ósteo-muscular do tórax. A delaminação da aorta foi provavelmente a causa do episódio referido há quatro meses de dor torácica súbita, "em aperto", com irradiação para abdome e melhora espontânea em 24h.

A cardiomiopatia hipertrófica provavelmente foi responsável pelo complexo QR em aVL. O mecanismo preciso para onda Q nesta condição não está claro, possivelmente devido aos vetores iniciais que estão dirigidos para esquerda e para baixo 7,8. A arquitetura anômala da musculatura septal pode também influenciar na despolarização do septo 7. A sobrecarga do ventrículo esquerdo ao eletrocardiograma aparece em 68% dos casos de cardiomiopatia hipertrófica 9.

A hipertrofia simétrica do ventrículo esquerdo, observada neste caso, não é a forma mais comum da cardiomiopatia hipertrófica, representando cerca de 10% dos casos 1,5,8.Há uma relação inversa entre o grau da hipertrofia nessa doença e a faixa etária 9. Os idosos portadores de cardiomiopatia hipertrófica apresentam formas mais benignas da doença que, embora presentes desde a juventude, evoluíram favoravelmente ao longo da vida, o que aconteceu neste caso, apesar do grau moderado de hipertrofia 9.

O estudo anatomopatológico dos rins e outros órgãos não revelou arteriopatia ou arteriolopatia por hipertensão arterial sistêmica, o que é aceitável tendo em vista que estudos demonstram que a associação entre delaminação da aorta e hipertensão arterial sistêmica não é maior que 70-90% 1,5. Apesar da hipertensão ser considerada o principal fator de risco para delaminação, não se tem certeza do seu papel exato na degeneração medial cística 10.

A assimetria de pulsos nas delaminações do tipo B de Daily geralmente ocorrem nas artérias do membros inferiores 5. As diferenças de pulsos podem ser transitórias, por mudança de posicionamento da capa da falsa luz ou reperfusão da artéria a partir da formação de reentradas na luz verdadeira dos ramos, acarretando pulso que diminui de amplitude ou torna-se ausente 5. No caso relatado, havia diminuição da intensidade dos pulsos dos membros inferiores e assimetria dos pulsos poplíteos e pediosos.

(acadêmicos Otavio Martucci e Gustavo Loureiro

e Dra Maria Aparecida Barone Teixeira)

Agradecimentos

Agradecemos ao Serviço de Anatomia Patológica do InCor-FMUSP pela consultoria.

Editor da Seção: Alfredo José Mansur - e-mail: ajmansur@incor.usp.br

Editores Associados: Desidério Favarato – e-mail: dclfavarato@incor.usp.br

Vera Demarchi Aiello - e-mail: anpvera@incor.usp.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2002
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