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Ruptura espontânea de angiossarcoma atrial direito e tamponamento cardíaco

Resumos

O angiossarcoma primário do coração é uma doença rara, de diagnóstico difícil e de prognóstico reservado, freqüentemente associado ao hemopericárdio recidivante. Relatamos um caso de uma mulher de 30 anos, portadora de angiossarcoma atrial direito, com ruptura espontânea para a cavidade pericárdica, diagnosticada à toracotomia exploradora de urgência, indicada por tamponamento cardíaco. Trata-se do 8º caso descrito na literatura. São discutidos detalhes clínicos e revisão bibliográfica.


Primary cardiac angiosarcoma is a rare disease of difficult diagnosis and poor prognosis frequently associated with recurring hemopericardium. We report the case of a 30-year-old female with a right atrial angiosarcoma and spontaneous rupture to the pericardial cavity, who was diagnosed during an emergency exploratory thoracotomy, whose indication was cardiac tamponade. This is the 8th case reported in the literature. Clinical findings are discussed and a literature review is provided.


RELATO DE CASO

Ruptura espontânea de angiossarcoma atrial direito e tamponamento cardíaco

Ricardo Barros Corso; Nadja Kraychete; Sidnei Nardeli; Rilson Moitinho; Cristiano Ourives; Rosenbert Mamedio da Silva; Ricardo Eloy Pereira

Serviço de Cirurgia Cardíaca Cardiocirúrgica, Serviço de Cardiologia Clínica Cardiointensiva, Hospital Santa Izabel da Santa Casa de Misericórdia. Salvador, BA

Endereço para correspondência E ndereço para correspondência Ricardo Barros Corso Rua Altino Serberto de Barros, 345/ 1302 Cep 41810-570 - Salvador, BA E-mail: ricardocorso@ig.com.br

RESUMO

O angiossarcoma primário do coração é uma doença rara, de diagnóstico difícil e de prognóstico reservado, freqüentemente associado ao hemopericárdio recidivante. Relatamos um caso de uma mulher de 30 anos, portadora de angiossarcoma atrial direito, com ruptura espontânea para a cavidade pericárdica, diagnosticada à toracotomia exploradora de urgência, indicada por tamponamento cardíaco. Trata-se do 8º caso descrito na literatura. São discutidos detalhes clínicos e revisão bibliográfica.

O angiossarcoma é um tumor de origem mesenquimal, correspondendo a cerca de 25% dos tumores malignos do coração. Surge preferencialmente no átrio direito, costuma ocorrer entre a 3º e a 5º décadas de vida e se caracteriza pela disseminação local e sistêmica precoces, o que faz restringir a indicação de ressecção cirúrgica a um pequeno número de pacientes. O uso da quimioterapia e da radioterapia coadjuvantes é controverso, devido ao mau prognóstico da doença, com uma expectativa de vida média de 6 meses1.

A ruptura espontânea do angiossarcoma é raríssima, tendo sido descritos apenas outros sete casos na literatura. Relatamos um caso com esta grave complicação, precedida por derrame pericárdico de repetição, sem suspeita tumoral pre-operatória.

É descrita a evolução clínica e feita revisão bibliográfica2,3.

Relato do caso

Mulher de 30 anos, negra, apresentava quadro de queda do estado geral, emagrecimento, febre recorrente diária, há 9 meses, e há 4, começou a queixar-se de dispnéia, quando foi internada no Serviço.

A investigação clínico-laboratorial revelou anemia, aumento da área cardíaca à radiografia simples de tórax e volumoso derrame pericárdico ao ecocardiograma transtorácico. Demais exames dentro dos limites da normalidade.

Foi submetida à pericardiocentese, com eliminação de 2000 ml de líquido francamente hemorrágico. No mesmo internamento, foi necessária a realização de drenagem pericárdica aberta, devido a formação de novo derrame com repercussão hemodinâmica. A pesquisa laboratorial e citológica do líquido pericárdico não foi conclusiva para qualquer suspeita diagnóstica. Recebeu alta hospitalar com melhora clínica, sem confirmação diagnóstica etiológica, para seguimento e investigação ambulatorial.

Foi reinternada após quatro meses, com importante piora do estado geral e manutenção das queixas anteriores, com predomínio de dispnéia e episódios isolados de hemoptise. Ao exame, encontrava-se bastante descorada, com sinais de insuficiência cardíaca direita descompensada e múltiplos ruídos adventícios em ambos os pulmões. Notava-se sopro sistólico em área mitral e um frêmito precordial discretos.

Os exames laboratoriais revelaram anemia hipocrômica e microcítica, anisicitose, policromatofilia, presença de esquisócitos e de hemácias alvo, plaquetopenia severa, discreta leucocitose, sem desvio para a esquerda, hipoalbuminemia, hipoprotrombinemia, distúrbio generalizado da coagulação, eletrocardiograma com taquicardia sinusal e sobrecarga ventricular direita. Radiografia de tórax com presença de múltiplas imagens nodulares em ambos os pulmões e derrame pleural bilateral. O ecocardiograma transtorácico revelou derrame pericárdico septado moderado, sem outros achados intracardíacos.

Houve deterioração cardiopulmonar dois dias após a admissão, quando foi encaminhada à UTI. Novo ecocardiograma transtorácico com aumento do volume do derrame e sinais de tamponamento cardíaco. Foi encaminhada para drenagem pericárdica aberta sob anestesia geral. Apresentou instabilidade hemodinâmica desde a indução anestésica, e volumosa hemorragia após a abertura do pericárdio pela incisão subxifoidéia, seguida de choque hipovolêmico. Realizou-se imediata esternotomia mediana, com prolongamento da primeira incisão, seguida de pericardiotomia longitudinal, identificando-se uma ruptura da parede livre do átrio direito, com cerca de 3x3cm, próximo a sua junção com a veia cava superior, sobre área de tecido "tumoral" necrótico, que comprometia quase toda a extensão atrial, havia também múltiplos implantes pericárdicos com o mesmo aspecto. Procedeu-se a rafia da ruptura sob pinçamento temporário das veias cavas, reposição volêmica maciça e ressuscitação cardiorespiratória. Após recuperação transitória dos sinais vitais, cursou com choque refratário e veio a falecer (fig.1).


A inspeção intracardíaca revelou extenso comprometimento tumoral com a mesma espessura da parede, em quase toda a extensão do átrio direito e septo interatrial, valvas e demais câmaras cardíacas sem outras particularidades.

Procedeu-se a abertura das cavidades pleurais para a realização de biópsia pulmonar, onde se identificaram múltiplos implantes subpleurais de aspecto hemorrágico em ambos os pulmões, além de derrame pleural hemorrágico volumoso bilateral.

O estudo histopatológico revelou angiossarcoma disseminado, com comprometimento do coração, pericárdio e pulmões (fig.2).


Discussão

O tumor primário do coração é bastante raro, com uma incidência de 0,0017% em levantamento de autópsias relatado pela Associação Médica Americana. As metástases cardíacas são 20 a 40 vezes mais freqüentes que o tumor primário. Apenas 25% dos tumores cardíacos são malignos, sendo sarcomas em sua maioria. O angiossarcoma corresponde a 25-30% desses tumores. Dentre os 24 casos relatados por Donsbeck e cols., com confirmação imunohistoquímica, 9 eram sarcomas indiferenciados, 6 angiossarcomas, 6 leiomiossarcomas e 3 outros4.

O angiossarcoma já foi denominado: hemangiossarcoma, hemangioendotelioma, hemangioendotelioma maligno, sarcoma angioendotelial, hemangioendoteliossarcoma, hemangioma maligno e hemangioendotelioblastoma.

Considera-se o angiossarcoma primário do coração quando não há história ou evidência concomitante de tumor em partes moles, osso ou tecido celular subcutâneo. Em série de 366 casos, originava-se do coração e/ou grandes vasos, em 3% deles. Compromete quase que exclusivamente o átrio direito e já foi descrito nas demais câmaras cardíacas5,6.

Os sintomas resultantes dos tumores primários do coração costumam ser tardios e estão mais relacionados à sua localização do que ao seu tipo histológico, o que dificulta seu diagnóstico precoce, comprometendo a eficácia do tratamento. A infiltração do miocárdio pelo tumor desencadeia arritmias e raramente distúrbios de condução. O comprometimento da contractilidade miocárdica pode simular miocardiopatia hipertrófica, restritiva ou dilatada. A hipertensão arterial pulmonar secundária à embolia tumoral de repetição e a compressão da via de saída do ventrículo direito podem desencadear insuficiência cardíaca direita.

O angiossarcoma apresenta um crescimento rápido, geralmente na espessura da parede miocárdica, dificultando o diagnóstico pelos diferentes métodos de imagem, e caracterizando-se pela friabilidade e tendência ao sangramento. Está associado, com freqüência, ao derrame pericárdico e ao tamponamento cardíaco. A ruptura miocárdica por infiltração tumoral e necrose da parede podem ocorrer raramente, sendo o hemopericárdio multi-septado o achado ecocardiográfico mais freqüente, nos poucos casos já descritos2,6.

Os sintomas resultantes do comprometimento cardíaco mecânico são usualmente precedidos em semanas ou meses por mal estar, febre, emagrecimento, fraqueza e anemia. Dispnéia, tosse produtiva e hemoptise sugerem metastatização pulmonar. As metástases são mais freqüentes para pericárdio, pulmões, linfonodos mediatinais e vértebras e estão presentes em 66 a 89% dos pacientes no momento do diagnóstico7,8.

O diagnóstico do angiossarcoma costuma ser difícil e tardio, apesar dos diferentes métodos já empregados. Muitos casos são confirmados apenas à toracotomia, para o tratamento de derrame pericárdico de repetição, ou à ne crópsia. O ecocardiograma é o método mais utilizado, sendo preferida a técnica transesofágica. A presença de fístula cavitário-pericárdica em casos de ruptura cardíaca já foi identificada por esse método2.

Os pacientes que apresentam a forma tumoral podem ter o diagnóstico sugerido pela tomografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética. É desaconselhável a indicação de biópsia miocárdica por qualquer método, devido à friabilidade característica do angiossarcoma e à sua predisposição à hemorragia6.

O tratamento é controverso pela regra do mal prognóstico na maioria dos pacientes. É indicada a exérese cirúrgica sempre que não houver evidência de metástases e que a ressecção miocárdica seja corrigível9.

A quimioterapia e a radioterapia podem ser indicadas de forma coadjuvante ou como terapêutica preferencial, havendo freqüentemente limitação do seu uso, pela precariedade física em que se encontra o paciente. O prognóstico é de seis a nove meses de vida, independentemente do tratamento empregado. Nakamichi e cols.10 descreveram um caso com diagnóstico de angiossarcoma cardíaco aos oito anos de idade, tratado de forma intensiva e multidisciplinar por dois anos e em ótimas condições de vida após 53 meses do diagnóstico. O transplante cardíaco já foi realizado em casos de diagnóstico mais precoce e favorável, tendo como limitante o uso das drogas imunossupressoras, o que predispõe à recidiva tumoral e metastática. A cardiomioplastia é uma alternativa cirúrgica, quando a ressecção ventricular parcial for necessária.

O angiossarcoma cardíaco primário deve ser considerado no diagnóstico diferencial do hemopericárdio recidivante e a septação do derrame, como este caso, é sugestiva da ruptura de parede livre.

Referências

Recebido para publicação em 8/11/02

Aceito em 20/1/2003

  • 1. Frota FJD, Luchese FA, Leães P, Valente LA, Vieira MS, Blacher C. Angiossarcoma cardíaco primário: um dilema terapêutico. Arq Bras Cardiol 2002;78:586-8.
  • 2. Ohri SK, Nihoyannopoulos P, Taylor KM, Keogh BE. Angiosarcoma of the heart causing cardiac rupture: a cause of hemopericardium. Ann Thorac Surg 1993;55:525-8.
  • 3. Mukohara N, Tobe S, Azami T. Angiosarcoma causing cardiac rupture. Jpn J Thorac Cardiovasc Surg 2001;49:516-8.
  • 4. Donsbeck AV, Ranchere D, Coindre JM, Le Gall F, Cordier JF, Loire R. Primary cardiac sarcomas: an immunohistochemical and grading study with long-term follow-up of 24 cases. Histopathology 1999;34:295-304.
  • 5. Herrmann MA, Shakermen RA, Edwards WD, Shub C, Schaff HV. Primary cardiac angiosarcoma: a clinicopathologic study of six cases. J Thorac Cardiovasc Surg 1992;103:655-65.
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  • 7. Biniwale RM, Pathare HP, Aggrawal N, Tendolkar AG, Deshpande J, Sivaraman A. Cardiac sarcomas: is tumor debulking justifiable therapy? Asian Cardiovasc Thorac Ann 1999;7:52-5.
  • 8. Shapiro S, Scott J, Kaufman K. Metastatic cardiac angiosarcoma of the cervical spine: case report. Spine 1999;24:1156-9
  • 9. Mcfadden PM, Ochsner JL. Atrial replacement and tricuspid valve reconstrution after angiosarcoma resection. Ann Thorac Surg 1997;64:1164-6.
  • 10. Nakamichi T, Fukuda T, Suzuki T, Kaneko T, Morikawa Y. Primary cardiac angiosarcoma: 53 months' survival after multidisciplinary therapy. Ann Thorac Surg 1997;63:1160-1.
  • E
    ndereço para correspondência
    Ricardo Barros Corso
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    Cep 41810-570 - Salvador, BA
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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