Acessibilidade / Reportar erro

Raça e lesão de órgãos-alvo da hipertensão arterial em pacientes atendidos em um ambulatório universitário de referência na cidade de Salvador

Resumos

OBJETIVO: Avaliar se a raça do paciente estaria associada à presença de hipertrofia ventricular esquerda, acidente vascular cerebral e insuficiência renal crônica em hipertensos atendidos em ambulatório de referência em Salvador-BA. MÉTODOS: Analisados dados de 622 pacientes com o primeiro atendimento em ambulatório de hipertensão, entre 1982 e 1986, e identificados os com história prévia ou seqüela de acidente vascular cerebral, hipertrofia ventricular esquerda ou insuficiência renal (creatinina sérica > 1,4 mg/dL). Modelos de regressão logística foram utilizados para estimar odds ratio (OR) da associação entre raça (mulatos ou negros vs brancos) e lesão de órgãos-alvo de hipertensão, ajustadas para sexo e idade. RESULTADOS: A média de idade dos pacientes foi 53,8±14,3 anos, 74,1% mulheres. Quanto à raça, 15,1% eram brancos, 65,9% mulatos e 19,0% negros. Acidente vascular cerebral foi significantemente mais freqüente em negros ou mulatos do que em brancos (odds ratio ajustada (ORa)=3,44; intervalo de confiança (IC) 95%=1,23-9,67). Quanto às associações envolvendo raça com os eventos hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência renal as ORa não foram estatisticamente significantes, mas foram consistentes com maior prevalência de hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência renal em negros e mulatos. CONCLUSÃO: Negros e mulatos hipertensos têm maior risco de lesão de órgão alvo do que brancos, com diferença racial maior para acidente vascular cerebral não fatal. Deve ser avaliada se diferenças raciais em mortalidade relacionada a complicações da hipertensão influenciam as associações observadas entre raça e lesão de órgãos-alvo.

raça; negro; hipertensão arterial


OBJECTIVE: To assess whether a patient's race is associated with the presence of left ventricular hypertrophy, stroke, and renal failure in hypertensive patients from an outpatient care referral clinic in the city of Salvador in the state of Bahia. METHODS: We assessed the data of 622 patients collected during their first visit to the hypertension outpatient care clinic between 1982 and 1986, identifying those with a previous history or sequela of stroke, left ventricular hypertrophy, or renal failure (serum creatinine > 1.4 mg/dL). Logistic regression models were used to estimate the odds ratio (OR) of the association between race (mulattos or black vs white individuals) and hypertensive target-organ damage adjusted for sex and age. RESULTS: The mean age of the patients was 53.8±14.3 years, and 74.1% were women. In regard to race, 15.1% were white, 65.9% mulatto, and 19.0% black. Stroke was significantly more frequent in blacks or mulattos than in white individuals [adjusted odds ratio (aOR) = 3.44; 95% confidence interval (CI) = (1.23-9.67). In regard to the associations involving race and the events of left ventricular hypertrophy and renal failure, the aORs were not statistically significant but were consistent with a greater prevalence of left ventricular hypertrophy and renal failure in blacks and mulattos. CONCLUSION: Hypertensive mulattos and blacks have a greater risk of target-organ damage than white individuals do, with a greater racial difference for nonfatal stroke. Whether racial differences in mortality related to hypertensive complications influence the associations observed between race and target-organ damage should be assessed.

race; blacks; arterial hypertension


ARTIGO ORIGINAL

Raça e lesão de órgãos-alvo da hipertensão arterial em pacientes atendidos em um ambulatório universitário de referência na cidade de Salvador

Antonio Carlos Beisl Noblat; Marcelo Barreto Lopes; Antonio Alberto Lopes

Hospital Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia - Salvador, BA

Endereço para correspondência E ndereço para correspondência Antonio Carlos Beisl Noblat Rua Quintino de Carvalho, 126/204 Cep 40155-280 - Salvador, BA E-mail: noblat@ufba.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar se a raça do paciente estaria associada à presença de hipertrofia ventricular esquerda, acidente vascular cerebral e insuficiência renal crônica em hipertensos atendidos em ambulatório de referência em Salvador-BA.

MÉTODOS: Analisados dados de 622 pacientes com o primeiro atendimento em ambulatório de hipertensão, entre 1982 e 1986, e identificados os com história prévia ou seqüela de acidente vascular cerebral, hipertrofia ventricular esquerda ou insuficiência renal (creatinina sérica > 1,4 mg/dL). Modelos de regressão logística foram utilizados para estimar odds ratio (OR) da associação entre raça (mulatos ou negros vs brancos) e lesão de órgãos-alvo de hipertensão, ajustadas para sexo e idade.

RESULTADOS: A média de idade dos pacientes foi 53,8±14,3 anos, 74,1% mulheres. Quanto à raça, 15,1% eram brancos, 65,9% mulatos e 19,0% negros. Acidente vascular cerebral foi significantemente mais freqüente em negros ou mulatos do que em brancos (odds ratio ajustada (ORa)=3,44; intervalo de confiança (IC) 95%=1,23-9,67). Quanto às associações envolvendo raça com os eventos hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência renal as ORa não foram estatisticamente significantes, mas foram consistentes com maior prevalência de hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência renal em negros e mulatos.

CONCLUSÃO: Negros e mulatos hipertensos têm maior risco de lesão de órgão alvo do que brancos, com diferença racial maior para acidente vascular cerebral não fatal. Deve ser avaliada se diferenças raciais em mortalidade relacionada a complicações da hipertensão influenciam as associações observadas entre raça e lesão de órgãos-alvo.

Palavras-chave: raça, negro, hipertensão arterial

Estudos realizados nos Estados Unidos mostram que a hipertensão arterial é mais freqüente em negros do que em brancos1 e as diferenças são maiores para as formas mais graves e as complicações relacionadas à doença, particularmente insuficiência renal crônica, acidente vascular cerebral e hipertrofia ventricular esquerda2-4. Similarmente ao observado nos Estados Unidos, no Brasil, a prevalência de hipertensão arterial é maior nos negros do que em brancos5-11 e as diferenças raciais maiores para as formas mais graves de doença7.

De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a cidade de Salvador (BA), tem a maior população de descendentes dos negros africanos. Em 1990, os indivíduos classificados como negros ou miscigenados (pardos ou mulatos) representavam, aproximadamente, 80% dos 2.500.000 habitantes da cidade12. A composição étnico/racial da Bahia e, especialmente, de Salvador e recôncavo baiano, resultou da intensa miscigenação dos brancos portugueses com negras africanas13. No entanto, é possível identificar na população, pessoas com características raciais bastante diversas, variando do branco, semelhante ao europeu, ao negro, com traços marcantes dos ancestrais africanos. Comparamos pacientes de diversos grupos raciais (branco, mulato, negro), atendidos em ambulatório de hipertensão de um hospital universitário da cidade de Salvador com o objetivo principal de avaliar se existe associação entre a raça do paciente e a presença de dados indicativos de acidente vascular cerebral, hipertrofia ventricular esquerda ou insuficiência renal.

Métodos

Desenho de estudo transversal com amostragem por demanda assistencial, utilizando dados de 622 hipertensos admitidos no ambulatório de referência para hipertensão arterial do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia, de agosto de 1982 a julho de 1986. A avaliação dos pacientes constou de anamnese e exame físico, seguindo um protocolo. A avaliação laboratorial incluiu os exames: sumário de urina, determinação das concentrações séricas de uréia, creatinina, ácido úrico, sódio, potássio, glicemia em jejum, colesterol total e frações, triglicérides e eletrocardiograma de rotina.

A pressão arterial foi aferida pelo método auscultatório no braço direito em três posições (deitado, sentado e em pé), com intervalos de 2min entre as medidas, utilizando-se o esfigmomanômetro de coluna de mercúrio e braçadeiras com manguito para adulto, de 12cm de largura por 23 cm de comprimento. O manguito era insuflado até 30mmHg acima da medida da pressão arterial sistólica (PAS) previamente aferida pelo método palpatório, feita a desinsuflação lenta, a uma velocidade de 2 a 3mmHg por segundo e determinada pela ausculta do 1º som contínuo (fase I dos sons de Korotkoff) e a pressão arterial diastólica (PAD) pelo desaparecimento do som (fase V). As pressões sistólica e a diastólica foram determinadas através das médias das três medidas iniciais. Hipertensão arterial foi definida como PAS> 140mmHg e/ou PAD > 90mmHg, ou o uso de medicação anti-hipertensiva. Os pacientes foram classificados quanto à etiologia da doença em primária ou secundária. Quanto à gravidade, foi categorizada em leve, moderada e grave, segundo a classificação à época da coleta dos dados14. Os pacientes que já apresentavam lesões de órgãos-alvo foram considerados como graves, independente dos níveis pressóricos.

As complicações da hipertensão arterial foram avaliadas através de dados do exame clínico inicial e métodos complementares solicitados na primeira avaliação ambulatorial. Hipertrofia ventricular esquerda foi diagnosticada através de critérios eletrocardiográficos. Acidente vascular cerebral foi identificado por história de evento prévio (incluindo acidente isquêmico transitório) ou sua seqüela, através do exame físico.

Os pacientes com história de hipertensão arterial em um dos pais, avós ou irmãos foram considerados como história familiar positiva. A duração de doença diagnosticada foi estratificada em três níveis, (<1 ano, > 1 a < 10 e > 10 anos). A procedência foi classificada em Capital (Salvador), interior ou outro estado e a raça, em 3 grupos: branca, mulata e negra, de acordo com a classificação de Krieger15, modificada por Azevedo16.

Análise de variância (ANOVA) foi utilizada para comparar médias entre os três grupos raciais e o teste do qui-quadrado para comparar proporções. Quando os dados não foram compatíveis com o uso do qui-quadrado, utilizou-se o teste exato de Fisher. Regressão logística múltipla foi usada para estimar a odds ratio da associação entre raça (branco como referência) e cada tipo de lesão de orgãos-alvo. A odds ratio foi ajustada para sexo e idade: < 35 anos, 35-49 anos, 50-59 anos, > 60 anos. O software Statistical Package for Social Science - SPSS, versão 10.0 para Windows foi utilizado para os testes paramétricos e a regressão logística múltipla17, 18. Utilizou-se o módulo exact2k do software Computer Programs for Epidemiologists: PEPI, versão 3, para o teste exato de Fisher19.

Resultados

A amostra foi composta de 622 pacientes, 94 (15,1%) brancos, 410 (65,9%) mulatos e 118 (19,0%) negros. O sexo feminino contribuiu com 461 (74,1%) pacientes. Pacientes procedentes da cidade Salvador corresponderam a aproximadamente 85,4% da amostra, não sendo observada diferença estatisticamente significante, quanto à procedência, entre os grupos raciais (tab. I). A média de idade foi de 53,8±14,3 (mediana = 55,0) anos em brancos, 47,3±13,3 (mediana = 47) anos em mulatos e 48,3±14,1 (mediana = 48,5) anos em negros (p<0,001).

A tabela I mostra que, aproximadamente, 27,1% dos pacientes sabiam ser hipertensos há menos de 1 ano, 50,4% entre 1 e 10 anos, e 22,5% há mais de 10 anos, não havendo diferença significante entre os grupos raciais (p = 0,809). Formas secundárias de hipertensão arterial foram diagnosticadas em cerca de 2,1% dos brancos, 3,7% dos mulatos e 1,7% dos negros (p = 0,153). Historia familiar de hipertensão arterial foi relatada por 56,4% dos brancos, 59,0% dos mulatos e 50,8% dos negros (p = 0,283) com a prevalência de formas graves ou aceleradas maiores em negros (51,3%) e mulatos (49,9%) do que em brancos (41,5%); no entanto, a diferença não alcançou significância estatística (p = 0,249). Tratamento para hipertensão arterial na época da primeira visita ambulatorial foi referido por 81,9% dos brancos, 79,3% dos mulatos e 76,3% dos negros (p = 0,598). No grupo de pacientes que não estavam em uso de antihipertensivos, a média de PAS variou significantemente (p=0,048) entre os grupos raciais, sendo maior em negros (174,6 ± 33,5; mediana = 156) do que em mulatos (159,3 ± 25,3; mediana = 156) e em brancos (166,0 ± 28,3mmHg; mediana = 163mmHg). A PAD não variou significantemente entre os grupos raciais.

Os resultados das associações entre raça e lesões de órgãos-alvo por hipertensão arterial não ajustadas e ajustadas para sexo e idade, através de análise de regressão logística múltipla, encontram-se na tabela II. A freqüência de acidente vascular cerebral foi significantemente maior nos pacientes classificados como mulatos ou negros do que nos brancos (odds ratio ajustado (ORa) = 3,44; intervalo de confiança (IC) 95% = 1,23 - 9,67; p = 0,013). A comparação entre mulatos e brancos foi a que apresentou a diferença mais larga na prevalência de acidente vascular cerebral (ORa = 3,64; IC 95% = 1,29-10,34; p=0,01). As freqüências de hipertrofia ventricular esquerda (ORa = 1,10; IC 95% = 0,69-1,76) e de insuficiência renal (ORa=1,27; IC 95%=0,52-3,07) foram também maiores em pacientes classificados como negros ou mulatos; as diferenças em relação aos brancos, no entanto, não foram estatisticamente significantes.

Discussão

No presente estudo, a prevalência de acidente vascular cerebral foi significantemente maior em hipertensos negros ou mulatos do que em brancos, atendidos em um serviço de referência para hipertensão arterial da cidade de Salvador-BA. Este achado foi observado apesar da menor idade dos negros e mulatos à época do primeiro atendimento ambulatorial. Como o estudo é de desenho transversal não fica claro até que ponto diferenças de sobrevida entre pacientes dos diversos grupos raciais podem ter interferido na associação entre raça e acidente vascular cerebral. Para que a sobrevida contribuísse para uma maior prevalência do evento no grupo de negros e mulatos seria necessário, no entanto, que a letalidade da doença fosse menor nesses pacientes do que nos brancos. Não existe nenhuma evidência que apóie esta possibilidade. Na verdade, os dados apontam que a mortalidade por acidente vascular cerebral é maior em negros do que em brancos. Nos Estados Unidos, a mortalidade relacionada aos acidentes vasculares cerebrais de diferentes etiologias, excetuando infarto cerebral devido à oclusão extracraniana da carótida, é maior em negros20. Sabe-se também que a mortalidade pela doença em Salvador, cidade de população, predominantemente, de pessoas negras e mulatas, é uma das maiores da América Latina, confirmada em estudo em que se comparou a mortalidade na cidade de Salvador com a de sete países latino-americanos, sendo que Salvador apresentou a maior mortalidade, três vezes maior do que a observada no México, após a correção para idade21. Estima-se que em, aproximadamente, 80% dos casos de acidente vascular cerebral de Salvador os pacientes são hipertensos22. Contudo, no estudo comparativo internacional21, não foi possível avaliar a influencia da raça na mortalidade por acidente vascular cerebral em Salvador.

No presente estudo as associações da raça com os eventos de hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência renal não foram estatisticamente significante. As odds ratio ajustadas, no entanto, foram consistentes com maior prevalência do evento insuficiência renal no grupo de negro e mulatos do que no grupo de brancos. É interessante notar que as odds ratio foram mais expressivas ao se comparar os mulatos com os brancos do que os negros com os brancos. Em verdade, na comparação não ajustada entre negros e brancos para insuficiência renal a odds ratio (OR = 1,06), seguiu direção consistente com menor prevalência em negros, (OR = 0,9) após o ajuste por idade e sexo através da regressão logística. Portanto, consistente com o que tem sido descrito em outros países, os nossos dados sugerem uma maior prevalência de hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência renal em negros e mulatos que procuram atendimento devido a hipertensão arterial em Salvador. Estudos prévios têm evidenciado que hipertensos negros têm um risco maior para o evento do que hipertensos brancos, mesmo após o ajuste para os níveis de pressão arterial23. Esta maior predisposição do negro para a doença tem sido, inclusive, observada em normotensos24,25. Diversos estudos americanos têm também demonstrado que o risco de estágio final de doença renal, particularmente por nefropatia hipertensiva, é muito maior em negros do que em brancos26-33. A diferença racial em estágio final de doença renal por nefropatia hipertensiva não é eliminada após o ajuste para diferenças de hipertensão arterial, sugerindo formas mais graves ou diferenças na qualidade do tratamento antihipertensivo entre negros e brancos30. Condizente com os dados norte-americanos, Noblat & Lopes mostraram uma incidência de estágio final de doença renal atribuída à hipertensão arterial 45% maior em negros do que entre os brancos34. Além do mais foi observada que nos pacientes negros e mulatos com glomerulonefrite primária, a presença de hipertensão arterial na época da primeira consulta nefrológica foi um importante fator de risco para estágio final da doença renal35, 36. Uma interação entre fatores biológicos e ambientais, bem como diferenças raciais no tratamento da hipertensão arterial parecem contribuir para formas mais graves de hipertensão arterial e maior risco de complicações de órgãos-alvos em negros e mulatos do que em brancos37, 38.

A maior prevalência para acidente vascular cerebral em negros e mulatos não pode ser explicada por diferenças na duração da hipertensão e na proporção de pacientes utilizando antihipertensivos na época da consulta ao ambulatório. Conforme tabela I, a duração da hipertensão e a proporção de pacientes usando antihipertensivos foi similar entre os grupos raciais. No entanto, entre os pacientes que não estavam usando anti-hipertensivos, a média da PAS foi significantemente maior no grupo de negros ou mulatos, achado consistente com formas mais graves nestes pacientes do que em brancos. Os dados também sugerem que a hipertensão arterial se desenvolveu mais precocemente em mulatos e negros, considerando as suas menores médias de idade, em relação aos brancos, quando procuram atendimento no ambulatório de hipertensão. Este achado é consistente com observações prévias, indicando um inicio mais precoce da hipertensão arterial em negros39. Existe evidência, no entanto, que através de controle rigoroso dos níveis pressóricos, escolha de anti-hipertensivos, levando em consideração as características de cada paciente e estratégias para aumentar aderência ao tratamento, o risco de lesão de órgãos-alvo se reduz acentuadamente nos negros38,40. Já foi mostrado que quando o acesso ao serviço de saúde e a qualidade do tratamento anti-hipertensivo são similares entre negros e brancos, as diferenças raciais em acidente vascular cerebral e cardiopatia hipertensiva são eliminadas41. A importância da escolha do anti-hipertensivo em reduzir eventos renais em pacientes negros com nefropatia hipertensiva foi destacada no African American Study of Kidney Disease and Hypertension (AASK)42, que mostrou que um regime de tratamento baseado em um inibidor de enzima de conversão tem efeito significantemente maior na redução da progressão da insuficiência renal e do risco de estágio final da doença renal do que regimes baseados em bloqueador de canal de cálcio ou beta-bloqueador40, 43, 44.

Embora nosso estudo apresente achados interessantes, limitações não podem ser ignoradas, particularmente ao se generalizar os resultados para a população geral de hipertensos ou comparar os nossos resultados com os de outros estudos. É importante notar que a nossa amostragem foi determinada pela demanda assistencial, explicando, pelo menos em parte, a frequência de mulheres ter sido bem maior do que a observada na população geral de hipertensos. Além do mais, o fato do nosso serviço ser referência para tratamento de hipertensão arterial pode ter contribuído para uma frequência de formas mais graves da doença do que a observada em outros serviços. A distribuição de pacientes por grupo raciais, observada no presente estudo, é provavelmente, diferente da que ocorre na população geral de hipertensos e em grupos de pacientes atendidos em ambulatórios de hospitais privados ou consultórios médicos. Negros e mulatos hipertensos, em comparação com brancos, procuram mais frequentemente os serviços públicos devido ao seu menor nível de renda. É também importante notar que a classificação racial empregada no presente trabalho difere da que tem sido utilizada em outros estudos. Fora do Brasil, particularmente nos Estados Unidos, a raça é frequentemente, declarada pelo próprio paciente. No presente estudo, no entanto, a raça foi classificada pelo investigador, seguindo critérios pré-definidos15,16. Além da cor da pele, tipo de cabelo, angulação da asa do nariz, espessura labial foram características utilizadas para classificar a raça. Acredita-se que os critérios utilizados sejam capazes de captar com maior acurácia diferenças em características fenotípicas ligadas aos grupos raciais do que a auto-declaração e a classificação apenas baseada na cor da pele. Além do mais, estudos realizados na Bahia mostram uma alta concordância inter-observador na classificação racial que utilizamos. Apesar das diferenças nos critérios para definir raça entre os estudos, os resultados são concordantes com os descritos no nosso estudo, no que se refere à maior prevalência de lesões de órgãos-alvos da hipertensão arterial em negros e mulatos do que em brancos.

Concluindo, no nosso estudo foi observado maior prevalência de acidente vascular cerebral em negros e mulatos do que em brancos, diferença que não pode ser explicada pela idade e percentuais de homens e mulheres entre os grupos raciais. Os resultados são também consistentes com maior prevalência de hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência renal em negros e mulatos. Formas mais graves de hipertensão arterial e/ou inicio mais precoce da elevação da pressão arterial, menor aderência ao tratamento e maiores barreiras para um acompanhamento médico de boa qualidade podem estar contribuindo para uma maior prevalência de alterações de órgãos-alvo da hipertensão arterial em negros e mulatos. Estudos prospectivos devem ser desenvolvidos no Brasil para avaliar se existem diferenças raciais na letalidade da hipertensão arterial e complicações relacionadas, a fim esclarecer se diferenças de sobrevida entre hipertensos negros, mulatos e brancos têm alguma influência nas comparações raciais da prevalência de complicações de órgãos-alvo em pacientes atendidos em ambulatórios de hipertensão. Devem também ser desenvolvidos estudos para identificar estratégias de tratamento que possam eliminar as diferenças raciais em lesão de órgão-alvo por hipertensão arterial.

Recebido para publicação em 12/11/02

Aceito em 16/6/03

  • 1. Flack JM, Wiist WH. Epidemiology of hypertension and hypertensive target-organ damage in the United States. J Assoc Acad Minor Phys 1991; 2:143-50.
  • 2. Giles WH, Kittner SJ, Hebel JR, Losonczy KG, Sherwin RW. Determinants of black-white differences in the risk of cerebral infarction. The National Health and Nutrition Examination Survey Epidemiologic Follow-up Study. Arch Intern Med 1995; 155:1319-24.
  • 3. Kittner SJ, White LR, Losonczy KG, Wolf PA, Hebel JR. Black-white differences in stroke incidence in a national sample. The contribution of hypertension and diabetes mellitus. JAMA 1990; 264:1267-70.
  • 4. Mayet J, Shahi M, Foale RA, Poulter NR, Sever PS, Mc GTSA. Racial differences in cardiac structure and function in essential hypertension. BMJ 1994; 308:1011-4.
  • 5. James SA, de Almeida-Filho N, Kaufman JS. Hypertension in Brazil: A Review of the Epidemiological Evidence. Ethn Dis 1991; 1:91-98.
  • 6. Costa EA. Hipertensão arterial como problema de massa no Brasil: caracteres epidemiológicos e fatores de risco. Ciência e Cultura 1983; 35:1642-54.
  • 7. Ribeiro MB, Ribeiro AB, Neto CS, et al. Hypertension and economic activities in São Paulo, Brazil. Hypertension 1981; 3:II-233-II-37.
  • 8. Yu L, Burdnmann EA, Martins CTB, et al. Prevalência de hipertensão arterial em um bairro da periferia de São Paulo. Research Abstract 1985.
  • 9. Facci CJ, Carvalho JSM, Facci AM, et al. Prevalência de hipertensão arterial nos funcionários de um hospital geral. Arq Bras Cardiol 1986; 46:185.
  • 10. Dressler WW, Santos JE, Viteri FE. Blood pressure, ethnicity and psychossocial resources. Psychossom Med 1986; 48:509.
  • 11. Costa VG, Araujo GML, Chaves AJ, et al. Prevalência da hipertensão arterial sistêmica na região urbana de Uberlândia (MG). Rev. Goiana Med. 1984; 30:55.
  • 12
    IBGE. PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Cor da população, Brasil, Região Nordeste, Bahia, região metropolitana de Salvador. 1990.
  • 13. Tavares-Neto J. Grupo Racial: por que essa informação no prontuário médico? In: Lopes AA, Matos MT, eds. Informação&Saúde. Salvador-BA: EDUFBA, 1999:45-53.
  • 14. The 1988 report of the Joint National Committee on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure. Arch Intern Med 1988; 148:1023-38.
  • 15. Krieger H, Morton NE, Mi MP, Azevêdo ES, Freire-Maia N, Yasuda N. Racial admixture in northeastern Brazil. Ann Hum Genet 1965; 29:113-25.
  • 16. Azevêdo ES. Subgroup studies of black admixtures within a mixed population Bahia, Brazil. Ann Hum Genet 1980; 44:55-60.
  • 17. Norusis MJ. SPSS for Windows: Advanced Statistics, release 6.0. Chicago, IL: SPSS Inc., 1993.
  • 18. Norusis MJ. SPSS for Windows: Base system user's guide, release 6.0. Chicago, IL: SPPS Inc., 1993.
  • 19. Gahlinger PM, Abramson JH. Computer Programs for Epidemiologists: PEPI, version 3. Vol. USD Inc. Stone Mountain, GA, 1999.
  • 20. Gillum RF. Stroke mortality in blacks. Disturbing trends. Stroke 1999; 30:1711-5.
  • 21. Noblat ACB, McKeigue PM, Martinelli R, Rocha H. Hipertensão arterial em negros. Hiperativo 1994; 1:29-36.
  • 22. Lessa I. Epidemiologia dos acidentes vasculares encefálicas na cidade do Salvador, Bahia, Brasil II. Principais fatores de risco. Bol Officina Sanit Panam 1984; 96:524-31.
  • 23. Dunn F, Oigman W, Sundgard-Riise K, Messeili F, Frohlich E. Racial differences in cardiac adaptation to essencial hypertension determined by echocardiographic indexes. J Am. Coll. Cardiol. 1983; 1:1348-51.
  • 24. Levy D, Garrison RJ, Savage DD, Kannel WB, Castelli WP. Prognostic implications of echocardiographically determined left ventricular mass in the Framingham Heart Study. N Engl J Med 1990; 32:1561-6.
  • 25. Prineas R, Castle C, Curb J, et al. Baseline electrocardiographic characteristics of the hypertensive participants. In Doughtery, SA and Entwisle, G (eds): Hypertension Detection and Follow-up Program: Baseline characterisitcs of the Enumerated, Screened and Hypertensive Participants. Hypertension 1983; 6:160.
  • 26. Easterling RE. Racial factors in the incidence and causation of end stage renal disease. Trans Am Soc Artif Intern Organs 1977; 23:28.
  • 27. Rostand SG, Kirk KA, Rutsky EA, Pate BA. Racial differences in the incidence of treatment for end stage renal disease. N Engl J Med 1982; 306:1276-9.
  • 28. Eggers PW, Connerton R, McMullan M. The Medicare experience with end stage renal disease: trends in incidence, prevalence and survival. Health Care Financ Rev 1984; 5:69-88.
  • 29. Ferguson R, Grim CE, Opgenorth TJ. The epidemiology of end-state renal disease: the six-year South-Central Los Angeles experience, 1980-85. Am. J. Public Health 1987; 77:864-5.
  • 30. McClellan W, Tutlle E, Issa A. Racial differences in the incidence of hypertensive end-stage renal disease (ESRD) are not entirely explained by differences in the prevalence of hypertension. Am J Kidney Dis 1988; 12:285-90.
  • 31. Lopes AA, Port FK. Differences in the patterns of age-specific black/white comparisons between end-stage renal disease attributed and not attributed to diabetes. Am J Kidney Dis 1995; 25:714-21.
  • 32. Lopes AA, Hornbuckle K, James SA, Port FK. The joint effects of race and age on the risk of end-stage renal disease attributed to hypertension. Am J Kidney Dis 1994; 24:554-60.
  • 33. Lopes AA, Port FK, James SA, Agodoa L. The excess risk of treated end-stage renal disease in blacks in the United States. J Am Soc Nephrol 1993; 3:1961-71.
  • 34. Noblat ACB, Lopes AA. O efeito da raça na incidência de doença renal terminal em Salvador, BA. J Bras Nephrol 1996; 18:135.
  • 35. Lopes AA, Silveira MA, Martinelli R, Noblat ACB. Influência da hipertensão arterial na incidência de doença renal terminal em negros e mulatos portadores de glomerulonefrite. Rev Assoc Med Bras 2002; 48:167-71.
  • 36. Lopes AA, Silveira MA, Martinelli RP, Rocha H. Associação entre raça e incidência de doença renal terminal: influência do tipo histológico e da presença de hipertensão arterial. Rev Assoc Med Bras 2001; 47:78-84.
  • 37. Lopes AA. Hipertensão Arterial: Fatores Étnicos e Raciais. J Bras Nefrol 1999; 21:82-4.
  • 38. Lopes AA. Hypertension in black people: pathophysiology and therapeutic aspects. J Hum Hypertens 2002; 16 Suppl 1:S11-2.
  • 39. Berenson GS, Wattigney WA, Webber LS. Epidemiology of hypertension from childhood to young adulthood in black, white, and Hispanic population samples. Public Health Rep 1996; 111:3-6.
  • 40. Lopes AA, James SA, Port FK, Ojo AO, Agodoa L, Jamerson KA. Meeting the challenge to improve the treatment of hypertension in blacks. J Clin Hypertens 2002 (no prelo).
  • 41. Ooi WL, Budner NS, Cohen H, Madhavan S, Alderman MH. Impact of race on treatment response and cardiovascular disease among hypertensives. Hypertension 1989; 14:227-34.
  • 42. Agodoa L. African American Study of Kidney Disease and hypertension (AASK): clinical trial update. Ethn Dis 1998; 8:249-53.
  • 43. Agodoa LY, Appel L, Bakris GL, et al. Effect of ramipril vs amlodipine on renal outcomes in hypertensive nephrosclerosis: a randomized controlled trial. JAMA 2001; 285:2719-28.
  • 44. Douglas JG. African American Study of Kidney Disease and Hypertension. American Heart Association Scientific Sessions, 2001.
  • E
    ndereço para correspondência
    Antonio Carlos Beisl Noblat
    Rua Quintino de Carvalho, 126/204
    Cep 40155-280 - Salvador, BA
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 2004

    Histórico

    • Recebido
      12 Nov 2002
    • Aceito
      16 Jun 2003
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br