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Lipoma de ventrículo esquerdo: relato de caso

Resumos

Mulher de 21 anos encaminhada com piora dos sintomas que vinha apresentando há anos: tontura ao levantar-se, sem sintomas vertiginosos, sem queixas de síncope ou alterações neurológicas, melhora em decúbito dorsal e repouso, após poucos minutos. O ecocardiograma transtorácico mostrava presença de massa hiperecogênica na região médio-apical da parede posterior do ventrículo esquerdo e pericárdio normal. A ressonância nuclear magnética cardíaca permitiu o diagnóstico de tumor de ventrículo esquerdo sugestivo de lipoma. Realizado tratamento cirúrgico e ressecado o tumor, a paciente apresentou boa recuperação e mantém-se assintomática.


We report the case of a 21-year-old female referred to our institution complaining of dizziness when standing up, which improved in the dorsal decubitus position and at rest, after a few minutes. The symptom, which had lasted for years, was not accompanied by vertigo, syncope, or neurological changes, but was gradually getting worse. Transthoracic echocardiogram showed a hyperechoic mass in the middle-apical region of the left ventricular posterior wall and normal pericardium. The cardiac nuclear magnetic resonance allowed the diagnosis of the left ventricular tumor suggestive of lipoma. Surgery was performed and the tumor was resected. The patient recovered well and is currently asymptomatic.


RELATO DE CASO

Lipoma de ventrículo esquerdo: relato de caso

Paulo Manuel Pêgo-Fernandes; Carlos Alfredo Batagello; Fábio Fernandes; Fabio Biscegli Jatene; Sérgio Almeida Oliveira

Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP - São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Paulo Manuel Pêgo-Fernanandes Divisão Cirúrgica - INCOR Av. Dr Eneas C Aguiar, 44 - 2º andar Cep 05403-000 - São Paulo, SP E-mail: paulopego@incor.usp.br

RESUMO

Mulher de 21 anos encaminhada com piora dos sintomas que vinha apresentando há anos: tontura ao levantar-se, sem sintomas vertiginosos, sem queixas de síncope ou alterações neurológicas, melhora em decúbito dorsal e repouso, após poucos minutos. O ecocardiograma transtorácico mostrava presença de massa hiperecogênica na região médio-apical da parede posterior do ventrículo esquerdo e pericárdio normal. A ressonância nuclear magnética cardíaca permitiu o diagnóstico de tumor de ventrículo esquerdo sugestivo de lipoma. Realizado tratamento cirúrgico e ressecado o tumor, a paciente apresentou boa recuperação e mantém-se assintomática.

Tumores cardíacos primários representam 5% a 10% de todas as neoplasias do coração e pericárdio, com incidência em autópsias entre 0.0001% a 0.05%1. Aproximadamente, 75% das neoplasias cardíacas primárias são benignas, sendo que, aproximadamente, 40% são mixomas e, dos restantes, grande parte são lipomas, fibroelastomas papilares e rabdomiomas1,2. De acordo com Fernandes e cols.3, a maioria dos tumores localiza-se do lado esquerdo do coração, sendo mixoma, o tipo histológico mais freqüente.

Com o surgimento de modernas técnicas de procedimentos diagnósticos e cirúrgicos, as neoplasias cardíacas têm sido diagnosticadas mais precocemente e passam a ter maior possibilidade de cura. A era moderna do diagnóstico iniciou-se com o desenvolvimento da angiografia, que permitiu a visibilização dos tumores cardíacos em vida. Goldberg e cols.4 relataram o primeiro diagnóstico angiográfico de um mixoma atrial esquerdo e Crafoord5 realizou a primeira excisão com sucesso de um tumor intracardíaco, um mixoma atrial esquerdo, utilizando circulação extracorpórea total, sob visão direta. Desde então, a excisão cirúrgica bem sucedida de vários tumores cardíacos tornou-se possível, obtendo-se, em muitos casos, cura completa2.

Nosso relato de caso ilustra a experiência da Divisão de Cirurgia do InCor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina USP no tratamento de um raro tumor cardíaco, o lipoma de ventrículo esquerdo. Kosuru e cols.6, em revisão de bibliografia, relataram apenas 6 casos de lipoma no septo interventricular.

Relato de Caso

Mulher de 21 anos, parda, natural da Bahia, solteira, foi encaminhada ao InCor - HCFMUSP com antecedentes de tontura há anos, ao levantar-se, sem sintomas vertiginosos, sem queixas de síncope ou alterações neurológicas, melhora em decúbito dorsal e repouso, após poucos minutos. Houve piora na freqüência dos sintomas no último ano, acompanhado de cansaço aos esforços moderados, eventualmente ortopnéia e dispnéia paroxística noturna. Negava antecedentes cardiovasculares prévios ou hipertensão arterial sistêmica, diabetes, tabagismo, etilismo, história familiar e uso de medicações. Entre os antecedentes mórbidos, notava-se trauma por atropelamento há sete anos, sem fraturas ou cirurgias. Ao exame físico notava-se bom estado geral e bom desenvolvimento psicomotor. Não apresentava sinais neurológicos ou nistagmo. Ao exame cardiovascular apresentava pulsos cheios, simétricos, boa perfusão periférica, sem sopros nos territórios vasculares, com ritmo cardíaco regular, sem presença de hipotensão postural, sem turgência jugular ou edemas. As bulhas mostravam-se com hipofonese de B1, em três tempos decorrente a presença de B4 e sopro ejetivo em foco mitral de grau discreto. O exame físico dos demais aparelhos não revelou anormalidades. A investigação bioquímica não apresentou alteração em relação aos níveis de sódio, potássio, uréia, creatinina e glicemia séricos, bem como aos níveis de hormônio tireotrófico, mucoproteínas, fosfatase alcalina, bilirrubinas totais e frações. A velocidade de hemossedimentação apresentava-se pouco elevada (29mm) com níveis limítrofes na dosagem de hemoglobina 11,6g/dl, hematócrito 35%, com leucócitos séricos de 4,700mm3 e plaquetas de 250,000mm3. A radiografia do tórax não revelou alterações e o ecocardiograma transtorácico mostrou o ventrículo esquerdo com cavidade de tamanho normal (50 x 34mm), delta D 32%, aorta 33mm, átrio esquerdo 32mm, escape valvar mitral e presença de massa hiperecogênica, medindo 45 x 33mm, à região médio-apical da parede posterior do ventrículo esquerdo de pericárdio normal. O ecocardiograma esofágico acrescentou septo interventricular íntegro, com massa de 41 x 31 mm aderida a região médio-apical posterior, hiperecogênica com pontos de hiperrefringência no seu interior. Realizada tomografia computadorizada de crânio que sugeriu sinusopatia etmoidal, sem lesões encefálicas. A ressonância nuclear magnética cardíaca permitiu o diagnóstico de tumor cardíaco sugestivo de lipoma, devido à redução do sinal magnético na seqüência triple R, de 34 x 28 mm, em parede inferior junto à implantação do músculo papilar póstero-medial, ocupando parte da cavidade do ventrículo esquerdo (fig. 1). Realizado tratamento cirúrgico em 15/10/2001, via esternotomia mediana, com circulação extracorpórea por canulação de aorta e cavas, com hipotermia a 30 graus e cardioplegia a 4 graus. A abordagem da cavidade ventricular pela parede anterior do ventrículo esquerdo, junto ao ápice (fig. 2) e ressecção do tumor com aspecto de lipoma (fig.3), com leve aderência à parede livre do ventrículo esquerdo e músculo papilar. A operação transcorreu sem intercorrências. A paciente recebeu alta da recuperação anestésica no 2º pós-operatório, com ecocardiograma esofágico no pós-operatório imediato, mostrando cavidade e função preservadas, insuficiência mitral de grau discreto a moderado, insuficiência tricúspide discreta, sem lesões intracardíacas e vem sendo acompanhada via ambulatorial desde então, assintomática quanto à dispnéia, cansaço, tontura ou queixas cardiovasculares.




Discussão

Os lipomas cardíacos ocorrem em todas as idades e com igual freqüência em ambos os sexos. A maior parte varia de 1 a 15 cm de diâmetro, embora tenham sido relatados tumores pesando mais de 2kg. A maioria dos tumores é de configuração séssil ou polipóide e ocorrem no subendocárdio ou subepicárdio, apesar de cerca de 25% ser completamente intramuscular. Os tumores subendocárdicos com extensão intracavitária produzem sintomas que são característicos de sua localização, enquanto que os tumores subepicárdicos podem causar compressão do coração e derrame pericárdico. As câmaras mais comumentes afetadas são o ventrículo esquerdo, o átrio direito e o septo interatrial. Os tumores intramurais podem ser assintomáticos ou resultar em arritmias7, distúrbio de condução intraventricular ou atrioventricular ou interferência mecânica. Muitos tumores são clinicamente silenciosos, sendo encontrados somente durante a necropsia, ou numa radiografia de tórax de rotina2. No nosso caso, o auxílio dos meios de diagnóstico por imagem foram de grande valia no diagnóstico do lipoma, assim como para Izumi e cols.8 cujo tumor lipomatoso infiltrativo foi sugerido através de resultados de ecocardiograma, tomografia computadorizada, cintilografia com tálio e ventriculografia direita. Morikami e cols.9 relataram a presença de um lipoma cardíaco através de alterações do eletrocardiograma no segmento ST-T, que sugeria hipertrofia ventricular esquerda. Silveira e cols.10 obtiveram o diagnóstico de um lipoma de átrio direito através da tomografia computadorizada, a qual tem grande especificidade em identificar o tumor. Os lipomas são geralmente de baixa densidade, variando de -80 a 115 unidades Haunsfield10.

Microscopicamente, as lesões geralmente são bem encapsuladas, compostas de células gordurosas maduras típicas e, ocasionalmente, contêm tecido conectivo fibroso (fibrolipoma), tecido muscular (miolipoma) ou gordura de cor marrom vacuolizada assemelhando-se a um hibernoma.

Lipoma intraventricular foi pela primeira vez descrito e removido com sucesso por Bradford e cols.11. A excisão cirúrgica, quando possível, é o tratamento de escolha para todos os tumores cardíacos primários12. Pacientes com tumores benignos são na maior parte curados através da ressecção e não apresentam recidiva. O tratamento paliativo é possível para tumores malignos, mas terapias adjuvantes são necessárias para melhorar o prognóstico dos pacientes12. O grande problema do tumor cardíaco benigno não reside na sua característica histológica, mas sim no seu componente intracavitário, quando invade cavidades do coração. Torna-se potencialmente letal quando ocupa a cavidade do ventrículo esquerdo, como no nosso caso, pois pode alterar o débito cardíaco, clinicamente notável através de síncope7, ou simular insuficiência ventricular esquerda, como também embolização periférica e distúrbios do ritmo e condução. Portanto, a cirurgia depois do diagnóstico ter sido estabelecido é obrigatória.

Embora alguns tumores epicárdicos possam ser removidos sem o auxílio da circulação extracorpórea, a maioria dos tumores intramurais e intracavitários deve ser excisada sob visão direta, com o uso da circulação artificial, pois, tecnicamente, diminui manipulações e manobras do coração, que possam levar ao desprendimento de partes do tumor e causar embolizações. Kaza e cols.13 realizaram a excisão de um lipoma de ventrículo esquerdo com o auxílio de um cardioscópio video-assistido, inserindo-o pela valva aórtica através de uma abertura da aorta.

As principais considerações cirúrgicas na excisão dos tumores ventriculares incluem a preservação de porção adequada do miocárdio ventricular, manutenção da função valvular atrioventricular adequada, e a preservação, tanto quanto possível, do sistema de condução.

No nosso caso, optamos pela abertura da ponta de ventrículo esquerdo, tática semelhante a incisão para tratamento de aneurisma de ventrículo esquerdo, a fim de que a exposição fosse a mais adequada possível, permitindo a ressecção sem o risco de embolização de fragmentos ou de ressecção parcial do tumor. A tática mostrou-se adequada pois permitiu que a operação apresentasse boa condução técnica e boa recuperação pós-operatória.

Recebido para publicação em 30/12/02

Aceito em 29/04/03

  • 1
    Miralles A, Bracamonte L, Souncul H, et al. Cardiac tumors: clinical experience and surgical results in 74 patients. Ann Thorac Surg 1991;52:886-95.
  • 2
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  • 3
    Fernandes F, Soufen HN, Ianni BM, Arteaga E, Ramires FJA, Mady C. Neoplasias primárias do coração: apresentação clínica e histológica de 50 casos. Arq Bras Cardiol 2001;76:231-4.
  • 4
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  • 5
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  • 8
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  • 9
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  • Endereço para correspondência
    Paulo Manuel Pêgo-Fernanandes
    Divisão Cirúrgica - INCOR
    Av. Dr Eneas C Aguiar, 44 - 2º andar
    Cep 05403-000 - São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 2004

    Histórico

    • Aceito
      29 Abr 2003
    • Recebido
      30 Dez 2002
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