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Caso 1/2004 - Onda Q anormal no ECG após troca valvar mitral em jovem do sexo feminino com 20 anos de idade

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 1/2004 - Onda Q anormal no ECG após troca valvar mitral em jovem do sexo feminino com 20 anos de idade. (Hospital e Maternidade Celso Pierro/Grupo de Estudo em Correlação Anatomoclínica (GECAC) - Pontifícia Universidade Católica - Campinas, SP

Site: www.puc-campinas.edu.br/ccv/gecac/gecac.htm)

Roberto Chaim Berber; Marith Gândara Graciano; Carlos Osvaldo Teixeira; Maria Aparecida Barone Teixeira

Campinas, SP

Endereço para correspondência E ndereço para correspondência Maria Aparecida Barone Teixeira Rua Carlos Araújo Gobbi, 444/41 Cep 13034-070 - Campinas, SP E-mail: caiacida@uol.com.br

Paciente de 20 anos, tabagista de dez cigarros ao dia por três anos e usuária de maconha, crack e cocaína inalatória por tempo indefinido, tratada de tuberculose aos oito anos de idade e com sorologias reagentes para hepatite B e C. Apresentava o diagnóstico de cardiopatia reumática desde os oito anos de idade, com insuficiência das valvas mitral e tricúspide, hipertensão pulmonar e quadro clínico de insuficiência cardíaca congestiva classe funcional III (NYHA). Na ocasião, o eletrocardiograma (fig. 1A) mostrava ritmo sinusal, com freqüência de 100bpm, SÂQRS em +120°, sinais de sobrecarga atrial esquerda e ventricular direita. O ecocardiograma revelava insuficiência mitral grau III, insuficiência tricúspide grau II, hipertensão pulmonar com pressão sistólica da artéria pulmonar estimada em 76mmHg, e pressão média de 52mmHg. Foi submetida à troca da valva mitral por uma bioprótese aos nove anos, tendo estudo anatomopatológico da valva nativa revelado tratar-se de valvulite mitral crônica de provável etiologia reumática.


Dois meses após a troca valvar observou-se no eletrocardiogama (fig. 1B), além da sobrecarga atrial esquerda e ventricular direita, mudança do SÂQRS para +30°, morfologia de bloqueio de ramo direito e aparecimento de onda Q profunda nas derivações D3 e aVF. O ecocardiograma da época mostrou aumento moderado das câmaras esquerdas, bioprótese mitral com discreto espessamento, área valvar de 4,78cm² e dinâmica normal, além de melhora da função sistólica do ventrículo esquerdo e pressão na artéria pulmonar dentro da normalidade.

Nos seis anos subseqüentes foi internada várias vezes por piora da insuficiência cardíaca, com infecção pulmonar em alguns desses episódios. Os exames ecocardiográficos mostraram evolução progressiva da estenose mitral, com área valvar atingindo 0,8cm² e pressão sistólica da artéria pulmonar estimada em 110mmHg. Foi submetida a cateterismo cardíaco aos doze anos, que mostrou ventrículo esquerdo dilatado, com hipocinesia difusa e grande aneurisma apical.

Aos 15 anos foi reinternada com disfunção da bioprótese (com predomínio de estenose), hipertensão pulmonar grave e eletrocardiograma evidenciando SÂQRS em +90°, sinais de sobrecarga atrial esquerda, morfologia de bloqueio do ramo direito, bloqueio atrioventricular de 1°grau e persistência de onda Q, sendo submetida a nova troca valvar por prótese metálica.

Após o segundo ato cirúrgico, o ecocardiograma mostrou prótese mitral competente, com área de 2,8cm² e pressão sistólica da artéria pulmonar estimada em 25mmHg. Manteve-se clinicamente estável, em acompanhamento ambulatorial, fazendo uso irregular de anticoagulante oral.

Aos 20 anos, apresentou quadro de dispnéia ao repouso e palidez cutânea, acompanhadas de dor precordial de forte intensidade, em aperto, com irradiação para membro superior esquerdo, pescoço e região posterior do tórax, associada à piora da dispnéia sem fatores de melhora. Negava febre ou edema de membros inferiores. O eletrocardiograma mostrou SÂQRS +60°, bloqueio atrioventricular de 1º grau, morfologia de bloqueio de ramo direito e persistência da onda Q. Evoluiu com taquipnéia (46cpm), hipotensão (80 x 60mmHg) e freqüência cardíaca de 64 bpm. Ao exame clínico constatou-se desaparecimento do click sistólico sendo, feita a hipótese de trombose da prótese valvar mitral e iniciada terapia com trombolítico. A paciente apresentou melhora do quadro clínico e recebeu alta hospitalar com anticoagulante oral, sendo acompanhada ambulatorialmente. Oito meses depois, após desmaio em casa, chegou ao pronto socorro em parada cardiorrespiratória, não respondendo às manobras de reanimação cardiopulmonar.

(Drª Maria Aparecida Barone, Acadêmico Roberto Chaim Berber)

Aspectos clínicos - O diagnóstico da valvulite reumatismal ficou claro pelo exame anatomopatológico da valva nativa. Mesmo considerada praticamente extinta em países desenvolvidos, a febre reumática e sua seqüela mais importante, a valvopatia, continuam relativamente freqüentes no Brasil. De acordo com dados do Ministério da Saúde, durante um período de 18 meses nos anos de 1995 e 1996, 18.500 casos de febre reumática foram tratados no Brasil, resultando em 1.8 milhão de consultas médicas e 4.500 cirurgias cardíacas, gerando um custo de R$ 19 milhões. No entanto, casos de seqüela valvar na infância são pouco relatados1.

A análise comparativa dos eletrocardiogramas realizados antes e depois da primeira cirurgia de troca valvar mostra o desaparecimento dos sinais de sobrecarga atrial esquerda e ventricular direita após a correção do vício valvar mitral, com retorno do eixo elétrico SÂQRS à normalidade, além do surgimento de sinais de sobrecarga ventricular esquerda, antes mascarados pela sobrecarga ventricular direita.

O surgimento da onda Q, encontrada após a cirurgia de troca valvar, nas derivações D3 e aVF sugere a presença de infarto em parede diafragmática. Deve-se destacar que a presença de onda Q em uma ou mais derivações inferiores é encontrada em mais da metade dos adultos normais, sendo proveniente da orientação das forças iniciais que se originam principalmente no septo interventricular e na região apical anterior dos ventrículos no plano frontal. Quando o eixo elétrico SÂQRS encontra-se verticalizado, a onda Q aparece nas derivações inferiores (D2, D3 e aVF). Porém, com exceção das derivações D3 e aVR, a onda Q quase nunca excede 0,03s e menos de 5% da população normal tem onda Q nessas derivações com duração superior a 0,02s. Mesmo sabendo-se que a presença de onda Q em D3 é a principal causa de interpretação errônea de área eletricamente inativa, neste caso, a onda Q aparece também na derivação aVF, com amplitude maior que 5mm e superior a 25% da onda R, justificando assim o diagnóstico de infarto2,3.

Outros achados que corroboraram o diagnóstico do infarto pós-cirúrgico foram: parede posterior do ventrículo esquerdo com hipocinesia e dilatação aneurismática apical ao cateterismo, além do surgimento de morfologia de bloqueio de ramo direito nos exames eletrocardiográficos durante a evolução.

Hipóteses diagnósticas: valvopatia reumática, insuficiência cardíaca congestiva, infarto do miocárdio.

(Dr. Carlos Osvaldo Teixeira, Acadêmica Marith Gândara Graciano)

Necrópsia

O coração pesava 500g e apresentava aumento volumétrico moderado a aceuntuado, com dilatação de ambos os átrios, além de hipertrofia do ventrículo esquerdo. Evidenciou-se lesão aneurismática em parede ínfero-dorsal do ventrículo esquerdo, da região apical até a inserção das valvas atrioventriculares, correspondente à área do infarto cicatrizado. Não foram visualizados trombos nas câmaras e a prótese metálica da valva mitral era competente (fig. 2). Após secção transversal do coração (fig. 3), foi evidenciada área de infarto cicatrizado em parede inferior estendendo-se do ápice à base. Ao exame das coronárias não foi evidenciado nenhum grau de obstrução. O estudo histológico do coração revelou fibrose na adventícia das artérias intramiocárdicas (fig. 4), confirmando assim o diagnóstico de doença reumática.




Os pulmões pesavam em conjunto 650g com aderências pleuro-pericárdicas, pleuro-diafragmáticas e da pleura ao gradeado costal, de difícil liberação. O estudo histopatológico mostrava arteriopatia por hipertensão pulmonar grau II de Heath-Edwards, além de congestão e fibrose.

(Drª Maria Aparecida Barone, Acadêmica Marith Gândara Graciano)

Comentários

O destaque do caso está na rápida evolução da valvopatia reumática e no achado de infarto cicatrizado do miocárdio. A doença reumática foi confirmada pelo estudo microscópico da valva mitral nativa, aos nove anos, e também pela presença de fibrose perivascular encontrada no estudo histológico post morten dos fragmentos do miocárdio não infartado.

A doença reumática, raramente, surge antes dos quatro anos de idade, sendo mais freqüente em crianças e adolescentes de cinco a quinze anos, declinando, progressivamente, a partir dessa faixa etária4. Em países desenvolvidos, a manifestação valvar grave da doença cardíaca reumática não ocorre antes de muitos anos após o episódio inicial da doença. Entretanto, em países em desenvolvimento, um grande número de pacientes jovens desenvolve doença valvar, como conseqüência de uma forma rapidamente progressiva da doença cardíaca reumática, relacionada a infecções estreptocóccicas freqüentes, devido às precárias condições de higiene e áreas densamente povoadas, como no caso relatado5.

O infarto do miocárdio, provavelmente, ocorreu durante o ato cirúrgico, aos nove anos de idade. O infarto miocárdico como complicação de cirurgia de troca valvar em pacientes não coronariopatas é relatado, ocorrendo em menos de 1%, sendo que apenas 33,3% apresentam-se com coronárias sem obstruções nos estudos necroscópicos6. Como possíveis explicações para a ocorrência do infarto nessas condições estão incluídos embolia gasosa para a coronária, espasmo coronariano perioperatório, hipotermia e complicações técnicas, sendo a embolia coronariana a mais freqüente7,8.

Vale ainda ressaltar que em indivíduos entre 18 e 45 anos, um em cada quatro infartos do miocárdio está relacionado ao uso de cocaína. No nosso caso, esta hipótese pode ser descartada uma vez que as alterações eletrocardiográficas relacionadas ao infarto surgiram no pós-operatório da cirurgia de troca valvar, aos nove anos9. Além disso, não encontramos nesta paciente a obstrução coronariana que costuma ocorrer, secundariamente, ao uso de cocaína.

O grau da arteriopatia por hipertensão pulmonar neste caso não se relaciona aos elevados níveis pressóricos inferidos nos exames ecocardiográficos, concluindo-se que esses níveis eram decorrentes de intensas alterações hemodinâmicas secundárias à valvopatia.

(Dr. Carlos Osvaldo Teixeira, Acadêmico Roberto Chaim Berber)

Agradecimentos

Ao Serviço de Anatomia Patológica do InCor-FMUSP pela consultoria.

Referências

1. Ministério da Saúde – Assessoria Técnico-Gerencial. Gabinete do Ministro. Fonte: DATASUS/FNS/MS, 1995-1996. Consultado no site http://www.datasus.gov.br em 08/08/2002.

2. P. J. Moffa; P. C. R. Sanches. Tranchesi, J. Eletrocardiograma Normal e Patológico. 7ª Edição – São Paulo: Roca, 2001; 113-114.

3. Teixeira M. A. B. Onda Q do eletrocardiograma no diagnóstico do infarto do miocárdio. Confronto anátomo-eletrocardiográfico em 140 casos com necrópsia. Campinas – SP. Tese de doutoramento, Unicamp, 1994.

4. Stollermann GH. Rheumatic fever and other rheumatic diseases of the heart. In: Braunwald E. Heart disease: A Textbook of Cardiovascular Medicine, 3rd ed. Philadelphia: WB Saunders, 1721-66, 1992.

5. Eisenberg MJ. Rheumatic heart disease in developing world: Prevalence, prevention and control. Eur Heart J (1993); 14: 122-8.

6. Rotberg T, Macias R, Correa-Suarez R, et al. Trans and Postoperative myocardial infarct in heart surgery. Arch Inst Cardiol Mex 1976; 46: 82-97.

7. Okamura Y, Takeuchi Y, Gomi A, et al. Clinical evaluation of perioperative myocardial infarction as a complication of valve replacement. Kyobu Geka 1989; 42: 1012-5.

8. Laurindo FRM, Grinberg M, Assis RVC, et al. Perioperative acute myocardial infarction after valve replacement. Am Cardiol 1987; 59: 639-42.

9. Ghuran A, Wieken LR van der, Nolan J. Cardiovascular complications of recreational drugs. Br Med J 2001; 323:464-6.

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 2004
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