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Caso 2/2004 - Dor torácica seguida de parada cardíaca com atividade cardíaca sem pulso, em homem de 34 anos portador de hipertensão pulmonar secundária à persistência do canal arterial

CORRELAÇÃO ANATOCLÍNICA

Caso 2/2004 - Dor torácica seguida de parada cardíaca com atividade cardíaca sem pulso, em homem de 34 anos portador de hipertensão pulmonar secundária à persistência do canal arterial. (Instituto do Coração do Hospital da Clínicas da FMUSP)

Luciano Ferreira Drager; Luiz Alberto Benvenuti

São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Av. Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 44 São Paulo, SP E-mail: ajmansur@incor.usp.br

Homem de 34 anos de idade procurou atendimento médico em razão de dor em hemitórax esquerdo, irradiada para membro superior esquerdo e palpitações taquicárdicas.

Aos 17 anos de idade (fev 1984) foi encaminhado ao Hospital por ser portador de cardiopatia. Encontrava-se assintomático, e sabia ser portador de sopro cardíaco diagnosticado aos 4 anos de idade. O paciente havia nascido de parto normal e negou infecções respiratórias de repetição ou cianose.

O exame físico, na ocasião, revelou peso de 42,5 kg, altura de 152 cm, freqüência cardíaca de 70 bpm e pressão arterial de 110/60 mmHg. O exame dos pulmões foi normal. O exame do coração revelou hiperfonese de 1ª bulha em área tricúspide, hiperfonese de 2ª bulha em área pulmonar, e sopro sistólico suave na borda esternal esquerda na altura dos 4° e 5º espaços intercostais esquerdos e sopro diastólico suave na mesma localização. O fígado foi palpado sob o rebordo costal direito. O eletrocardiograma mostrou sobrecarga de câmaras direitas. A radiografia de tórax revelou cardiomegalia moderada (++/4+) com aumento dos hilos pulmonares. O hemograma apresentou hematócrito de 56%.

Foram feitos os diagnósticos de hipertensão pulmonar e insuficiência da valva pulmonar de etiologia a ser esclarecida.

O ecocardiograma (9/3/84) revelou espessura do septo interventricular de 10mm e da parede posterior do ventrículo esquerdo de 9mm. O diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo foi 44mm e o sistólico 29mm; a fração de encurtamento foi 34%. O diâmetro da aorta foi 40mm, do átrio esquerdo 34mm e do ventrículo direito 28mm. As valvas atrioventriculares eram normais e havia sinais de hipertensão pulmonar com insuficiência de valva pulmonar. A movimentação do ventrículo esquerdo foi normal e havia hipocontratilidade difusa e moderada do ventrículo direito.

Indicado cateterismo cardíaco, (16/1/85) o qual revelou: persistência de canal arterial, hipertensão pulmonar com hiperresistência; insuficiência de valva pulmonar discreta e ausência de fluxos significativos entre circulação pulmonar e sistêmica. A relação do fluxo pulmonar/fluxo sistêmico foi 1. Os valores das pressões, saturação de O2 e resposta à administração de nifedipina no tronco pulmonar encontram-se na tabela I.

A ventriculografia por radiosótopos com o emprego de hemácias marcadas por pirofosfato de Tc99m revelou tempo de trânsito pulmonar de 7s. Havia dilatação discreta do ventrículo direito, que apresentava hipocinesia acentuada, fração de ejeção de 26%. O ventrículo esquerdo demonstrou hipocinesia apical e a fração de ejeção de 53%.

Na evolução (1990), o eletrocardiograma revelou sobrecarga ventricular direita (fig.1).


Novo ecocardiograma revelou átrio direito dilatado, e ventrículo direito também dilatado e hipocinético. O átrio e o ventrículo esquerdos foram considerados normais. Com o emprego do Doppler, foram diagnosticados hipertensão pulmonar e canal arterial pérvio.

O paciente evoluiu com cansaço aos grandes esforços até abril/1997, quando passou a apresentar episódios de intensificação dos sintomas, e maior desconforto: dispnéia aos pequenos esforços, leve cianose e edema de membros inferiores.

Nessa época, o hematócrito foi 65%. Diagnosticada acentuação da hiperglobulia, e indicada hemodiluição, com sangria de 300 mL. A intervenção foi necessária outras vezes, quando ocorria piora do quadro clínico e o hematócrito superava 62%. Com essas intervenções, associadas ao uso de ácido acetilsalicílico 200 mg e 40 mg de furosemida, houve melhora dos sintomas até 1999, quando acentuaram-se as crises de dispnéia, tornando-se mais freqüentes.

A radiografia de tórax, na ocasião, revelou cardiomegalia acentuada (++++/4+).

O cansaço tornou-se mais intenso e o paciente mais limitado aos esforços habituais, nos períodos intercríticos.

Procurou atendimento médico em 13/5/2001 (16h e 30min) com queixa de dor no dorso do hemitórax esquerdo com irradiação para membro superior esquerdo que se iniciara 30min antes, acompanhada de palpitações taquicárdicas, pulsações fortes no pescoço e piora da dispnéia.

O exame físico revelou angiectasias disseminadas; não havia cianose. Foram auscultados estertores crepitantes em base pulmonar esquerda; o exame do coração revelou sopro sistólico em foco tricúspide, havia ascite que dificultou o exame abdominal.

O eletrocardiograma (13/5/2001) revelou ritmo sinusal, freqüência cardíaca de 88 bpm, onda P de 0,10s, intervalo PR de 0,16s, SÂP +60° para frente, QRS de 0,10s, SÂQRS +120° para frente, ondas T invertidas em V1 e V2 (fig. 2).


O hemograma revelou 8100000 hemácias/mm3, 19,2 g/dL de hemoglobina, 62% de hematócrito, VCM de 77 mm³, CHCM de 31g/dL; 6900 leucócitos por mm³ (70% neutrófilos, 1% eosinófilos, 1% basófilos, 19% linfócitos e 9% monócitos); 161000 plaquetas por mm³. A taxa sérica de uréia foi 114 mg/dL e de creatinina 1,1 mg/dL.

Algumas horas após a internação apresentou parada cardiorrespiratória, com atividade elétrica sem pulso. Inicialmente respondeu às manobras de ressuscitação e à administração de adrenalina. Houve recorrência da parada cardíaca refratária às medidas de ressuscitação e o paciente faleceu (19h e 50min).

Discussão

Aspectos clínicos

Trata-se de paciente jovem, do sexo masculino, com quadro de dor em hemitórax esquerdo e irradiação para membro superior ipsilateral, acompanhado de palpitações taquicárdicas e dispnéia. Era portador de uma cardiopatia congênita diagnosticada por volta dos 17 anos de idade e a despeito da identificação de sopro cardíaco desde os 4 anos de idade, permaneceu sem qualquer tipo de tratamento. Evoluiu com hipertensão pulmonar, sintomas progressivos de dispnéia, cianose e edema de membros inferiores. Por diversas ocasiões procurou atendimento médico por piora do quadro clínico, sendo que após uma exacerbação dos sintomas aos 34 anos, evoluiu com parada cardiorrespiratória em atividade elétrica sem pulso, refratária às medidas de ressuscitação, falecendo poucas horas após sua admissão hospitalar.

Pelo menos dois pontos neste caso clínico merecem ser destacados. A dor torácica constitui uma das queixas mais frequentes em Unidades de Emergência1, sendo uma apresentação clínica comum de inúmeras doenças, muitas delas consideradas ameaçadoras à vida, tal qual ocorre no infarto agudo do miocárdio e na dissecção de aorta. No Brasil, em uma casuística da Unidade de Emergência do InCor, este sintoma foi responsável por cerca de 12,3% de todos os atendimentos2. Dados americanos mostram que aproximadamente 5 milhões de pessoas, anualmente, procuram as Unidades de Emergência com queixa de dor tóracica, levando a um custo de mais de 6 bilhões de dólares3. Apesar de não ser infrequente uma apresentação clínica inespecífica da dor torácica, sua caracterização com relação à localização, irradiação, duração, fatores de melhora e piora, relação com esforços e sintomas associados, podem fornecer subsídios para um raciocínio clínico direcionado para cada paciente, limitando as possibilidades diagnósticas e favorecendo uma escolha adequada de exames, tratamento e consequente otimização de custos hospitalares4. Particularmente para avaliação de insuficiência coronariana, mais do que qualquer outra doença cardíaca, uma detalhada anamnese é essencial para o diagnóstico5. Entretanto, o diagnóstico de insuficiência coronariana não parece ser o mais provável para o paciente em questão. Apesar da dor iniciar em hemitórax esquerdo e irradiar-se para membro superior esquerdo, padrão que pode ser compatível na insuficiência coronariana, esta não é a localização considerada mais típica do sintoma6. Além disto, não ficou caracterizado se houve desencadeantes para o sintoma, tais como esforços nem fatores de piora ou melhora, tais como a inspiração ou o repouso por exemplo. Há relato apenas que iniciou de forma súbita e foi acompanhado de sintomas, como palpitações taquicárdicas e piora da dispnéia. O paciente era jovem, não sendo mencionado qualquer outro fator de risco além do sexo masculino. Dentre as causas de doença coronariana isquêmica de origem não aterosclerótica7, são descritos casos isolados de pacientes com hipertensão pulmonar em que a dilatação do tronco de artéria pulmonar poderia gradualmente comprimir a artéria descendente anterior, levando a sinais de angina8,9, porém seu caráter geralmente é progressivo, ao contrário do quadro clínico apresentado. Seguindo-se o mesmo raciocínio e avaliando dados do exame físico, eletrocardiograma e radiografia de tórax, podemos dizer que algumas doenças aqui tornam-se menos prováveis, tais como aneurisma e dissecção de aorta (a dor não é característica, o exame físico não fornece achados sugestivos, a média de incidência da dissecção está entre a 6ª e 7ª décadas de vida10, não há relato de hipertensão ou aterosclerose e nem características clínicas sugestivas de síndrome de Marfan); pericardite (dor, ausculta e achados ao eletrocardiograma não característicos); estenose aórtica (ausculta não é típica, não há história de síncope ou outros achados), prolapso da valva mitral (ausculta não é sugestiva); espasmo e refluxo esofágico (dor não característica); pneumotórax (ausculta e semiologia respiratória não são compatíveis); dor osteomuscular (geralmente não está associada a outros sintomas, não há relato de piora à movimentação ou palpação); síndrome do desfiladeiro torácico (a dor não é característica e não há história de trauma); entre outros.

O segundo ponto a ser destacado neste caso diz respeito ao curso da história natural das doenças. Observamos que o paciente tem o diagnóstico de sopro cardíaco desde os 4 anos de idade, sendo que só foi encaminhado para investigação por volta dos 17 anos. A avaliação do sopro cardíaco na infância constitui um desafio para o médico, particularmente o pediatra, em diferenciar as características dos sopros funcionais, de evolução benigna, dos sopros cujo substrato anatômico seja uma determinada cardiopatia. Esta diferenciação tem implicações prognósticas totalmente distintas, podendo determinar um desfecho desfavorável quando não reconhecemos precocemente uma doença cardiovascular congênita. Sabemos que nas cardiopatias congênitas que cursam com aumento do fluxo pulmonar, o consequente desenvolvimento de hipertensão daquele território, pode limitar as estratégias terapêuticas, onde a correção cirúrgica tardia pode levar à falência ventricular direita, baixo débito cardíaco e óbito.

Na análise do exame físico, um importante achado está na ausculta cardíaca. A hiperfonese de 1a bulha em área tricúspide, hiperfonese da 2a bulha em área pulmonar e a característica dos sopros auscultados (sopro sistólico suave em decorrência da dilatação da artéria pulmonar e o sopro diastólico da insuficiência pulmonar denominado sopro de Graham Steele), ocorrem como consequência ao hiperfluxo e aumento das pressões de artérias pulmonares e de câmaras direitas. Esta ausculta é compatível com o diagnóstico de hipertensão pulmonar, não sendo contudo um achado de uma doença específica, porém sugestivo de hipertensão pulmonar grave.

Apesar do relato do cateterismo mostrando a presença de persistência do canal arterial, em que o sopro dito contínuo é característico da doença, deve-se ter em mente que, em presença de hipertensão pulmonar, esta ausculta pode ser alterada11. Até mesmo um canal arterial grande pode ter uma ausculta silenciosa se há um equilíbrio das pressões pulmonares e sistêmicas, resultando em um pequeno ou mesmo ausente shunt esquerda-direita.

A incidência de persistência do canal arterial tem sido estimada em 1:2000 a 1:5000 nascimentos. Consequências fisiológicas deste defeito dependem do grau de shunt esquerda-direita, que é determinado pelo tamanho do canal e das diferenças entre a resistência vascular sistêmica e pulmonar12. Um pequeno canal acompanhado por um shunt discreto não causa alterações hemodinâmicas significativas, porém pode predispor à endarterites. Por outro lado, um grande canal pode causar inicialmente uma sobrecarga de volume ventricular, com uma progressiva elevação na pressão da artéria pulmonar e aumento da resistência que pode tornar-se irreversível.

Os achados do eletrocardiograma – sobrecarga de câmaras direitas - cardiomegalia e o aumento dos hilos pulmonares à radiografia de tórax, bem como a presença de sinais de hipertensão pulmonar com insuficiência de valva pulmonar, reforçam o diagnóstico de hipertensão pulmonar. As alterações hematológicas descritas, caracterizadas por hiperglobulia, são consideradas mecanismos adaptativos da hipóxia crônica promovida pela hipertensão arterial pulmonar.

A ventriculografia por radioisótopos com o emprego de hemácias marcadas por pirofosfato de Tc 99m constitui um método auxiliar para a avaliação da função ventricular. Através da técnica de primeira passagem do radiofármaco pelas câmaras, é possível quantificar a função dos ventrículos direito e esquerdo, independentemente13. O trânsito pulmonar é calculado entre as diferenças de pico de concentração do radiofármaco entre os ventrículos direito e esquerdo, cujo tempo normal está entre 6 a 8s. Pela fração de ejeção estimada de ventrículo direito de 26%, habitualmente seria esperado para este paciente um aumento do trânsito pulmonar, fato que não ocorreu, o que pode acontecer por diversas razões, entre elas a quantidade de radiofármaco injetada, a presença de arritmias ou mesmo a presença de algum shunt esquerda-direita que pudesse transmitir a radiofármaco diretamente para as câmaras esquerdas14.

Define-se a hipertensão pulmonar como a consequência hemodinâmica de progressivas alterações vasculares, de etiologia variada, que ocorrem no território pulmonar15. Quantitativamente, é definida quando a medida da pressão da artéria pulmonar sistólica for > 30 mmHg e a pressão média > 25 mmHg, estando a resistência pulmonar em geral acima de 3 unidades Wood/m2 de superfície corpórea16. O surgimento da hipertensão pulmonar neste caso foi secundário à cardiopatia congênita descrita – persistência do canal arterial. Do ponto de vista fisiopatológico, o espessamento da túnica média é uma resposta da parede das artérias à elevação crônica da pressão, com aumento de músculo liso e desenvolvimento de camada bem definida de células musculares em arteríolas até então não muscularizadas15. A hipertrofia e hiperplasia das células muscular é acompanhada de produção de apreciáveis quantidades de proteínas extracelulares e a disfunção endotelial parece ter um papel crítico na patogênese da vasoconstrição crônica17.

Na avaliação da hipertensão pulmonar, o cateterismo cardíaco com medidas de pressões em câmaras direitas, constitui um método diagnóstico útil na quantificação e avaliação terapêutica. Um aumento no conteúdo de oxigênio da artéria pulmonar maior que 0,5ml/dl ou um aumento na saturação maior que 4-5% em relação ao ventrículo direito, indica um shunt esquerda-direita significativo18.

A análise das medidas das pressões da tabela merecem algumas considerações: Observa-se que faltam alguns dados que permitem sua correta interpretação. Não está claro se o cateterismo foi realizado em ar ambiente ou com oxigênio a 100%; não estão explicitadas a saturação e as medidas nas duas condições (repouso e com nifedipina); não há relato de coleta sangue de aorta descendente para avaliação de possível inversão do shunt. Contudo, um dado que pode sugerir a inversão deste último consiste na diferença na saturação de O2 entre o ventrículo esquerdo e a artéria pulmonar. Em condições de shunt esquerda-direita pela persistência do canal arterial, eram esperadas saturações de oxigênio bem próximas, o que não foi detectado neste caso.

Feitas estas ressalvas, e se considerando que as medidas foram realizadas em ar ambiente, o cálculo do fluxo e das resistências, sistêmica e pulmonar, baseadas na Lei de Pouseuille19 mostram:

Repouso - fluxo pulmonar (QP) = 4 l/min Fluxo sistêmico = 3,6 l/min Relação @ 1; resistência vascular pulmonar (RVP)=19 unidades Woods; resistência vascular sistêmica (RVS)= 20 unidades Woods Relação @ 1. Após nifedipina - resistência vascular pulmonar (RVP)=21,7 unidades Woods; resistência vascular sistêmica (RVS)= 22,3 Woods Relação @ 1.

Para um teste ser considerado positivo para hiperreatividade após o uso de vasodilatador, tem que ocorrer queda de 25% da pressão sistólica da artéria pulmonar e aumento de pelo menos 2mmHg da pressão capilar pulmonar (aqui estimada como próxima à pressão média de átrio esquerdo). Isto não ocorreu neste exame, confirmando que o paciente apresentava uma hipertensão pulmonar grave com hiperresistência pulmonar e ausência de fluxos significativos entre a circulação pulmonar e sistêmica, fazendo com que uma abordagem cirúrgica fosse de alto risco, com grande chance de falência aguda do ventrículo direito, incapacidade de manter o débito cardíaco e óbito, como já mencionado. Com as considerações realizadas acerca das limitações das medidas disponíveis do cateterismo, o padrão é compatível com hipertensão pulmonar grave, com inversão do shunt esquerda-direita, caracterizando a síndrome de Eisenmenger.

Portanto, o tratamento da hipertensão pulmonar neste caso, limitou-se ao tratamento clínico com antiagregantes plaquetários e diuréticos, além de hemodiluição para diminuir a hiperglobulia. Outra opção que poderia ter sido utilizada, como substituto ao antiagregante plaquetário, seria o uso de anticoagulante oral, pois é comum estes pacientes cursarem com trombose crônica de artéria pulmonar.

Observou-se na evolução a piora dos sintomas, à despeito das várias hemodiluições realizadas. No dia da admissão em que se apresentou com dor em hemitórax esquerdo, o paciente encontrava-se bastante dispnéico, com sinais de falência de ventrículo direito (ascite), hiperglobúrico e bastante desidratado (uréia de 114 e creatinina de 1,1 mg/dl).

Dentre as possibilidades diagnósticas e pela prevalência da doença nestas circunstâncias, a hipótese de trombose pulmonar deve ser considerada como a principal suspeita para a insuficiência respiratória e parada em atividade elétrica sem pulso, mecanismo normalmente encontrado de parada cardiorrespiratória na trombose pulmonar. Pela presença de hiperglobulia e desidratação, o tromboembolismo pulmonar também é um diagnóstico possível. Outro diagnóstico que pode surgir como complicação possível na evolução da persistência do canal arterial é o aneurisma da artéria pulmonar, que pode cursar com ruptura ou mesmo dissecção20, levando a um quadro de apresentação clínica semelhante ao descrito, com choque e morte súbita.

Em suma, trata-se de um paciente com persistência do canal arterial com evolução natural da doença, apresentando hipertensão pulmonar progressiva, sinais de hiperresistência pulmonar e ausência de fluxos significativos entre a circulação pulmonar e sistêmica, que apresentou quadro de dor torácica súbita, piora da dispnéia e palpitações taquicárdicas em vigência de hiperglobulia e desidratação, substratos suficientes para a hiperviscosidade e surgimento de trombose pulmonar, com insuficiência respiratória aguda e parada cardiorespiratória em atividade elétrica sem pulso. Apesar de menos comum, a hipótese de aneurisma da artéria pulmonar cursando com as complicações descritas de ruptura e dissecção, não pode ser descartada.

(Dr. Luciano Ferreira Drager)

Hipótese Diagnóstica - Hipertensão pulmonar secundária à persistência de canal arterial; síndrome de Eisemenger.

Hipóteses diagnósticas para a causa mortis - 1) trombose pulmonar maciça; 2) tromboembolismo pulmonar; 3) aneurisma da artéria pulmonar com ruptura ou dissecção.

(Dr. Luciano Ferreira Drager)

Necropsia

A abertura do saco pericárdico evidenciou discreto derrame hemorrágico. O exame externo do coração revelou intensa dilatação da artéria pulmonar, que mediu 5,0cm de diâmetro externo, configurando aneurisma (fig. 3). Havia sufusão hemorrágica na adventícia da artéria pulmonar e da raiz da aorta, não sendo porém caracterizada ruptura completa da parede vascular. O canal arterial estava patente, apresentando luz ampla, medindo 1,6 cm de diâmetro externo (fig. 3). A abertura da artéria pulmonar evidenciou placas ateroscleróticas elevadas na superfície intimal e solução de continuidade longitudinal, tortuosa, com áreas de dissecção aguda da parede, atingindo o plano valvar (fig. 4). Havia ainda acentuada hipertrofia do ventrículo direito do coração, acompanhada de dilatação moderada da cavidade; persistência da veia cava superior esquerda, drenando no seio coronariano; área focal de espessamento esbranquiçado da cúspide septal da valva tricúspide, com firme aderência ao septo ventricular, caracterizando provável cicatriz de fechamento espontâneo de comunicação interventricular. A valva aórtica era trivalvulada e não havia coarctação do arco aórtico. O exame histológico das áreas de solução de continuidade da artéria pulmonar confirmou o diagnóstico de dissecção aguda da parede, havendo clivagem no terço externo da camada média, que exibia áreas de intensa degeneração mucóide e fragmentação das fibras elásticas (fig. 5). A histologia pulmonar demonstrou a presença de arteríolas com proliferação intimal suboclusiva ou oclusiva, notando-se focalmente a presença de lesões plexiformes (fig. 6). Outros achados significativos na necrópsia foram congestão passiva crônica hepática, com extensas áreas de necrose hemorrágica centrolobular; esplenomegalia congestiva, o baço pesando 400g; e ascite composta por 600ml de líquido amarelo-citrino.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)





Diagnósticos anatomopatológicos: 1) Cardiopatia congênita caracterizada por persistência do canal arterial e persistência da veia cava superior esquerda drenando para seio coronariano; 2) hipertensão pulmonar, grau IV de Heath-Edwards; 3) aneurisma e dissecção aguda da artéria pulmonar (causa do óbito).

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Comentários

Interessantíssimo caso de aneurisma e dissecção aguda da artéria pulmonar em portador de grave hipertensão pulmonar secundária a cardiopatia congênita (persistência do canal arterial).

A dissecção da artéria pulmonar é evento raro. Em recente revisão, descreveram-se 52 casos relatados na literatura médica21. Apesar da existência de várias condições predisponentes para a dissecção, em cerca de 75% dos casos a mesma se associa à hipertensão pulmonar. É interessante notar que dentre os casos associados à elevação da pressão arterial pulmonar, em 59% das vezes a hipertensão é secundária a malformações cardíacas congênitas, particularmente à persistência do canal arterial21, como no presente caso. Por outro lado, o aneurisma da artéria pulmonar também está usualmente associada à hipertensão pulmonar, tendo sido descrito em várias cardiopatias congênitas com hiperfluxo pulmonar, particularmente a persistência do canal arterial22. Nos casos de aneurisma ou dissecção da artéria pulmonar, é muito comum o encontro de degeneração mucóide e fragmentação de fibras elásticas da camada média da artéria, como observado no atual caso, o que se acredita secundária à elevação da pressão arterial e fator que leva ao enfraquecimento da parede arterial, favorecendo a dissecção e ruptura22,23.

A dissecção aguda da artéria pulmonar apresenta alto índice de mortalidade, sendo o diagnóstico geralmente feito apenas na autópsia. Dos 52 casos revistos recentemente, o diagnóstico foi feito durante a vida do paciente em apenas 7 casos (14%)21. O ecocardiograma, tomografia computadorizada, ressonância nuclear magnética ou arteriografia pulmonar podem auxiliar na elucidação diagnóstica. O óbito normalmente se dá por ruptura completa da área dissecada, com exuberante hemorragia, o que não foi observado no presente caso. Existem poucos relatos de reparo cirúrgico da área agudamente dissecada21,23 e também de evolução espontânea satisfatória sem intervenção cirúrgica24.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

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Editor da Seção: Alfredo José Mansur

Editores Associados: Desidério Favarato; Vera Demarchi Aiello

  • Endereço para correspondência
    Av. Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 44
    São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2004
    • Data do Fascículo
      Abr 2004
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