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Conheço&Aplico&Comporto-me identidade bioética do cardiologista

PONTO DE VISTA

Conheço&Aplico&Comporto-me identidade bioética do cardiologista

Max Grinberg

Incor do Hospital das Clínicas da FMUSP

São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Max Grinberg Av. Dr. Eneas C. Aguiar, 44 Cep 05403-000 - São Paulo, SP E-mail: max@cardiol.br, grinberg@incor.usp.br

O número do CRM habilita ao exercício da Medicina, a especialidade é o cartão de visita das habilidades. O estetoscópio-símbolo do cardiologista- evoca a representação do vínculo médico (pelas auriculares) - paciente (pela campânula).

A conexão, assim vislumbrada, figura-se via de duas mãos, a que flui do paciente com seus sinais e sintomas e a que retorna praticada pelo médico segundo três atributos: conhecimento científico, capacitação técnica e atitude de médico. No entorno, salvaguardas de trânsito na contra-mão, preceitos da ética e da bioética dão o cenário para um "contrato" com cláusulas obrigatórias universais e peculiares locais. Constitui-se, desta forma, tácito compromisso de intenção e execução com redução do grau de indeterminação, que numa visão bioética é enunciável como especificação1, uma nova nomenclatura para um velho e respeitoso propósito: um explícito Aqui fazemos assim.

I - Conhecimento científico

O cardiologista reage ativamente ao universo da ciência e se apropria de um conjunto de informações, agora seu patrimônio científico; conciliando preservação e renovação, ele amplia seus horizontes, ciente da inesgotabilidade e consciente sobre anti-dogmatismo.

À beira do leito costuma testemunhar a prática de dois tipos de conhecimento: a) o que o cardiologista conhece sobre a história natural e a história modificável das cardiopatias, por sua experiência clínica de fato vivenciada -pleonasmo de valorização-, educação continuada, ou observação introjetada; b) o que o cardiologista não conhece com a devida firmeza, mas sabe onde procurar, quer na literatura, quer na opinião de colega.

II - Capacitação técnica

O cardiologista é desde um generalista da especialidade até um particularizado numa técnica específica. A maneira de aperfeiçoar as habilidades é praticá-las em busca do refinamento, aprender com os erros -os próprios e os dos colegas- e ensiná-las para melhor refletir sobre utilidades.

À beira do leito requer algumas modalidades de capacitação: A) capacitação propedêutica para diagnóstico principal e secundário, diagnóstico diferencial e acompanhamento evolutivo; a1) auto-referenciada: anamnese e exame físico; a2) valor numérico-dependente, abrangendo a interpretação de exames laboratoriais e de medidas obtidas por método não invasivo, como eletrocardiograma e ecocardiograma, ou método invasivo, como cateterismo cardíaco; a3) imagem-dependente, com ou sem auxílio de substância marcadora (radioisótopo) ou contraste (cinecoronariografia); B) capacitação terapêutica para selecionar fármacos, prescrevê-los, ajustar e dar seqüência ao longo do tempo, para promover mudanças de hábitos e para indicar e, até mesmo praticar, procedimentos; C) capacitação prognóstica para fazer análises sobre qualidade de vida e sobrevida.

III - Atitude do médico

Conhecimento científico e capacitação técnica não bastam, há necessidade da atitude de médico2, permanentemente remodelada no dia-a-dia dos novos paradigmas sobre um molde de atavismo hipocrático. O paciente precisa consentir que os propósitos do médico fazem parte de seus próprios objetivos1.

Atitudes serão tanto mais válidas, quanto mais promoveram a harmonia de interpretação entre os, nem sempre ajustados, melhor método e bom resultado. O primeiro é o ponto forte do compromisso do médico e cabe ao paciente compartilhá-lo; o segundo é o ponto forte do desejo do paciente e cabe ao médico compartilhá-lo. Em outras palavras, concordância de visibilidade, ações no melhor interesse de ambos, numa relação onde há um inevitável potencial de males transitórios ou definitivos no caminho de qualquer objetivo.

Novas forças da Medicina, novos deveres, novos juízos, novos comportamentos, exigem decisões de beira do leito ajustadas por reflexões éticas e bioéticas3-5.

IIIA - Ética

A referência ética do cardiologista brasileiro é o Código de Ética Médica, elaborado pelo Conselho Federal de Medicina e publicado em 1988.

A cada uso do carimbo com o nome e número do CRM – expressão da autorização da sociedade civil para o exercício profissional, o cardiologista vincula, por força de lei, o ato profissional aos 145 artigos, salientando-se que 80% deles são proibitórios (é vedado ao médico...). Ética se pratica, o seu ensino dá-se mais pelo exemplo do que pela citação.

O que é bom o cardiologista inteirar-se é que suposições sobre infrações éticas mostram-se crescentes no estado de São Paulo, e a Cardiologia é especialidade que ocupa o 8o lugar na ordem das reclamações no CREMESP.

Deslizes éticos comprovados acontecem por várias razões, vão desde ingenuidade e "um mau momento", cujas repreensões concorrem para efeitos pedagógicos, até fortes evidências de comportamento "eticopático", repetitivo, apesar de punições.

Os principais fatores de conflito na área da Cardiologia identificados pelo CREMESP são: dificuldade de vaga para internação hospitalar, negativa de atendimento por parte do convênio, falta de socorro imediato, falta de médico em plantão, demora na transferência de paciente, erro de diagnóstico, omissão de socorro, falta de exames complementares e falta de equipamentos adequados.

É o prontuário do paciente - e não prontuário médico - o fiel depositário da informação consubstancial ao zelo ético. O respeito à verdade requer registro com boa-fé, um ato de autenticidade. Nele, o cardiologista registra: a) informações "emprestadas" pelo paciente, palavras confiadas com direito ao sigilo; b) ações da equipe de saúde que são "doadas" ao paciente, igualmente sujeitas ao sigilo; c) elementos de infra-estrutura "disponibilizados" pela instituição/sistema de saúde. O sigilo só poderá ser quebrado pelo cardiologista, à margem da autorização do paciente, por dever legal, como notificação compulsória à ANVISA, ou por uma justa causa, ressalva sujeita à diversidade de interpretações.

Tudo se passa, sob o ponto de vista de discussões em tribunais de ética, como se o que está escrito no prontuário do paciente foi feito e o que nele não está escrito não foi feito.

O que se constata mais comumente é a economia de palavras na elaboração do prontuário do paciente, um "falso negativo" que pode chegar ao extremo da ausência de informações. O artigo 69 do Código de Ética Médica reza que é vedado ao médico deixar de elaborar prontuário para cada paciente.

Todavia, o "falso positivo" existe também. Anotação no prontuário do paciente sobre execução de manobra de ressuscitação em paciente terminal, não de fato efetivada, é um exemplo, associado a preocupações legais6. Estima-se em 6,4% o percentual de informação "falso positiva", com maior divergência para exame físico e diagnóstico do que para anamnese e terapêutica; em certos casos, intenção de fraude não pode ser excluída, as implicações éticas são evidentes7.

IIIB - Bioética

A Cardiologia brasileira mostra grau de maturidade científica suficiente para aspirar ao estabelecimento de uma identidade bioética cardiológica nacional. Ela abrange não somente atitudes sensíveis ao nosso pluralismo étnico e cultural e às realidades econômicas8,9, como também dar o colorido verde e amarelo ao conhecimento internacional, bem da humanidade, objetivo universal pró-saúde, por meio de arguta integração ao nosso qualificado produto interno bruto científico.

Autonomia do paciente, autonomia do médico, autonomia da instituição de saúde, beneficência de diretrizes, beneficência da beira do leito, não maleficência como princípio de contrapartida à beneficência, merecem reflexões pelo cardiologista interessado em contribuir para a afirmação de uma identidade bioética cardiológica nacional.

IIIB1 - Autonomia

Quando o paciente procura a opinião do cardiologista, ele não necessariamente está assinando um contrato em branco. Ele conta sua história total ou parcialmente, ou nem mesmo conta, ou seja, ele pode determinar, de acordo com a sua vontade, as queixas e os antecedentes que ficarão registrados como anamnese espontânea ou dirigida no prontuário, que é dele mesmo. Omitir informações, por seu livre-arbítrio, não infringe nenhum código de ética por parte do paciente, é, na verdade, um bumerangue de omissão que lhe retorna, vazio de benefício.

Não infreqüentemente, reconhece-se que houve coragem bastante para o paciente chegar ao cardiologista, mas ela não atinge grau suficiente para que ele forneça as pistas passíveis de provocar revelações diagnósticas que lhe soariam preocupantes. Recorde-se que autonomia é a liberdade de fazer escolhas conflitantes, de tomar decisões para moldar a sua própria vida10.

O quantum é relatado faz parte do direito do paciente à autonomia, no mesmo sentido de sua liberdade em consentir ou recusar ordens médicas; e que fique claro que ele deve assumir tudo aquilo que possa representar influência da sua atitude num eventual mau resultado; ao mesmo tempo, faz parte da autonomia do cardiologista aceitar ou não, com maior ou menor benevolência, a postura verbal restritiva do paciente, que ficou evidente ao seu "olho clínico"; poderá o cardiologista, então, se dispor a praticar atitude mais paternalista, com o precípuo objetivo de obter maior número de palavras "emprestadas" pelo paciente, sempre circunscritas ao suficiente para bem fundamentar o raciocínio clínico.

Eis um vínculo, onde os ônus pela anamnese que desvia são compartilhados entre médico e paciente. Há os que entendem que o médico deve ser o mais perceptivo possível em função de sua experiência e há os que acham que omissões intencionais do paciente isentam o médico de responsabilidades daí advindas.

A consecução de um diálogo "fluido" ou em "saca-rolha" orbita na empatia porventura vigente; há o exercício de negociação, referenciado ao grau de confiança presente na relação médico-paciente.

Se anamnese é atitude fundamentalmente no sentido paciente-cardiologista, o exame físico é o inverso; os sinais identificados serão "doados" para o paciente, através de uma "escritura" passada para o seu prontuário. Poderia parecer paradoxal falar-se em doação se o sopro valvular sempre pertenceu e sempre pertencerá ao paciente, mas o ênfase na atitude é no, de fato, reconhecimento do sinal propedêutico pelo profissional.

Não é exatamente tácito o consentimento pós-anamnese pelo paciente ao exame físico tradicional do cardiologista. Detalhe, nuance que Podemos examiná-lo(a)? não resolva, mas que se agiganta quando de uma reclamação, especialmente em certas especialidades. Nesta fase da propedêutica física, o paciente fica à mercê do comportamento do médico e sem possibilidades de interferir sobre o raciocínio pari passu ao exame que o cardiologista desenvolve, como é possível na anamnese. Os ônus são do profissional, um tributo à majestade da clínica soberana.

Assim como o cardiologista tem compromisso em bem fazer solicitações complementares, o paciente compromete-se ou não com a execução, aceitando ou não se submeter. Caso o paciente opte por não realizar o exame recomendado, a relevância da conseqüente desinformação específica deve ficar explícita como tendo sido fruto do respeito à autonomia do paciente, vale dizer, de um ato pró-ético; o que dela possa advir, não deve, pois, soar anti-ético. Pela persistência de dúvidas, condutas que por tal força ética se tornem não mais do que presumivelmente úteis, caso associem-se a mau resultado, devem ser referidas à real circunstância do desconhecimento de informação. Muito embora os dados obtidos pertençam ao paciente, a dinâmica de comunicação precisa obedecer certas normas, sob pena de provocar deslizes éticos. Exemplo habitual, neste sentido, refere-se ao ecocardiograma, exame que se tornou visto como força informativa pela maioria dos cardiopatas. O colega da imagem, que habitualmente não dispõe do conjunto de informações como o clínico, pode ser solicitado pelo paciente/familiar a revelar imediatamente o que acabou de saber ou, então, ele está agora de posse de uma informação urgente. Compreenda-se a situação do paciente ansioso pelo resultado valorizado, mas entenda-se que o zêlo ético recomenda que revelações aconteçam preferencialmente para o colega solicitante, sob forma escrita e/ou verbal, condizente com o grau de presteza necessário.

O bem farmacocardiológico desperta a união de expectativas resolutivas do cardiologista e do paciente. A receita é documento desta ligação, num lado a prescrição ética e cientificamente responsável, no outro o usuário, seguindo-a de modo total ou parcial, por vezes nulamente, uma triste realidade de nossos ambulatórios. O conceito de boa orientação farmacológica requer a premissa de responsabilidades bem cumpridas, uma resultante da influência tetrapartida de cardiologista, paciente, instituição e sistema de saúde.

Receitas médicas costumam se assemelhar pela doença e se diferenciar pelo doente, uma expressão da arte da prescrição.

Há um primeiro crivo redutor da aceitação e cumprimento da receita, a priori, já no momento da prescrição e interligado à relação risco-custo-benefício. Ele é ponto de referência para explicações sobre prós e contras no âmbito do risco-benefício e para verbalizações sobre intenção de adesão, onde acresce o custo-benefício. O cardiologista vê-se envolvido numa trama que inclui o princípio da autonomia e que se comporta como filtro da sua decisão prescritiva. Um homem pode recusar a indicação de betabloqueador e uma mulher de estrógeno, por razões pessoais. O ônus fica compartilhado.

Há um segundo crivo, este a posteriori; ele é dependente do grau de bem estar obtido com o uso da receita, modulado por eventuais adversidades, lembrando que fatores psicológicos e econômicos exercem fortes efeitos sobre o compliance8. Há os casos em que estes aspectos são objeto de renegociação e há os que ficam simplesmente ignorados, revelando-se ulteriormente a um novo evento. Por isso, o cardiologista deve ter em mente que o consentimento que ele recebe do seu paciente, na assistência à semelhança da pesquisa, é sempre livre, esclarecido, renovável e revogável.

É oportuno destacar que a autonomia prescritiva do cardiologista deve estar bem afinada com diretrizes estabelecidas com a credibilidade de uma Sociedade de Cardiologia, a reprodutibilidade nas circunstâncias geográficas e sociais e a periodicidade de atualização. Contudo, há o aspecto da flexibilidade no uso de diretriz perante exceções e preferências11-14. O conteúdo diretivo é útil para uma média de casos assemelhados (floresta), mas cada paciente é uno (árvore), cumpre uma análise crítica de adequação à aplicação; até porque diretriz não é exatamente uma lei e não deve ser vista como expressão de um paternalismo impositivo da comunidade cardiológica que possa causar "engessamento" inoportuno na autonomia do médico13. O cardiologista experiente da beira do leito sabe que diretriz complementa o raciocínio clínico, não que o substitui.

Há, pois, em tudo isto, um paradoxo do nosso cotidiano: diretriz é fator de educação continuada, contribui para aumentar a qualidade da atenção médica e para aliviar o impacto das variações observadas na literatura, mas colide com a liberdade responsável do profissional e, ademais, pode ser indevidamente usada como reforço a acusações de erro profissional. Fármacos expostos na mídia com status de diretriz representam uma forma de prescrição sem receita, qual automedicação, podem provocar reações imprevisíveis.

Uma diretriz não deve ser uma referência ética absoluta, pois a obrigação com os conceitos da doença não pode sobressair-se, irrefletidamente, às peculiaridades individuais; acresce o quanto de recursos está à disposição do cardiologista, até porque a diretriz adotada não pode desprezar a finitude econômica dos recursos. O que precisa ser ressaltado e bem anotado é que o eventual grau de inobservância à diretriz foi fruto do exercício do princípio da autonomia e não produto do desconhecimento científico ou de falta de zelo por parte do cardiologista.

Transcrevemos um fragmento do texto introdutório a uma Diretriz ACC/AHA que parece bem sintetizar o tema: "... The committee emphasizes the fact that many factors ultimately determine the most appropriate treatment of individual patients... these factors include... and notably the wishes of well-informed patients... therefore deviation from these guidelines may be appropriate in some circumstances..." 15,16.

O bem terapêutico dito intervencionista, cirúrgico ou percutâneo, costuma associar-se a maior preocupação com o exercício do consentimento através do princípio da autonomia. Ressalte-se que é complexo falar em autonomia absoluta, ou seja ausência de paternalismo, pois, quando o cardiologista apresenta algumas opções para o paciente, ele já pode ter excluído tantas outras com paternalismo. É do cotidiano do cardiologista presenciar reações de contraposição a procedimentos invasivos; observam-se recusas iniciais, transformadas em aceitações mediante melhor absorção do impacto num outro cenário, de modo espontâneo ou com a ajuda de uma segunda opinião, leiga ou médica. O cardiologista depara-se com argumentações que a angioplastia coronariana percutânea é menos agressiva (em sentido amplo) do que a revascularização cirúrgica e, também, com o entendimento preferencial pelo paciente que uma ação tradicionalmente resolutiva é a mais confiável. Neste tópico, o exercício do princípio da autonomia pelo cardiologista lhe permite fazer, igualmente, aceitações e recusas, em conformidade com o princípio fundamental art. 7o do Código de Ética Médica: o médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente. Qualquer consentimento do cardiologista para adotar eventual opinião distinta da do paciente é livre, esclarecido, renovável e revogável. Ou seja, perante recusas, ele pode manter o paciente sob sua responsabilidade com a conduta autorizada, ou não mais continuar à testa do caso.

IIIB2 - Beneficência

Conduta classe I sempre, classe III nunca, classe II talvez sim, talvez não. Este é o retrato falado da beneficência, do que é útil e eficaz. Evidências fortes, condutas vigorosas, a ciência postada entre a saúde e a doença, adversários eternos. O cardiologista que fizer uma análise retrospectiva crítica sobre métodos propedêuticos e terapêuticos nos últimos 30 anos, por maior vivência testemunhal que possa ter, se surpreenderá; parodiando um famoso colega, quem tivesse dormido no início da década de 70, e despertasse somente no século XXI, sentir-se-ia incapaz de suprir as exigências da especialidade, apenas com a filosofia de que a clínica é soberana. Coincidentemente, foi em 1971 que nasceu os primórdios da Bioética, quando o oncologista Van Rensslaer Potter publicou o livro A bridge to the future, impressionado que estava pelas novas relações de influência entre o progresso tecnológico crescente e o humanismo.

Se é válido para a nossa especialidade que os fins pró-saúde justificam os meios não totalmente seguros, vale o seguinte ênfase: fins pró-saúde de um determinado paciente, único na sua personalidade, na sua concepção de vida, e para o qual, o cardiologista precisa exercitar sua tolerância. Ou seja, a beneficência conceitual passa pela análise de sua utilidade e eficácia ante peculiaridades ligadas a conflitos de opinião médico-paciente.

A experiência de cada cardiologista coleciona casos conduzidos à margem do que seria a recomendação pelo conhecimento científico e, não há dúvida, os casos "fora de série" quanto a atitudes representam reforço ao conceito de máxima atenção com o lado humano da relação médico-paciente. São casos cuja compreensão da beneficência pode ficar restrita àqueles de fato envolvidos e comprometidos, onde a realidade humana fala mais forte do que a idealidade científica. Cada novo dia desta cumplicidade médico-paciente ajustada, entendendo-se cumplicidade como alto compromisso bilateral, é uma vitória do humanismo e um engrandecimento do conceito de dignidade. As reflexões advindas são muitas, hesitações ocorrem, dramas de consciência acontecem e, infelizmente, a boa-fé das posturas não "vacina" contra reclamações futuras. É o ônus da profissão.

O caso, a seguir, ilustra a cumplicidade à margem das recomendações habituais e que provoca reações de incredulidade a quem não está envolvido: Mulher com passado reumático, idade aproximando-se dos 40 anos, é portadora de uma segunda prótese mitral implantada em função de endocardite infecciosa na primeira. O quadro infeccioso persistiu no pós-operatório, a paciente recusou-se a se submeter a nova operação cardíaca, solicitou alta hospitalar e desde então faz acompanhamento ambulatorial, com ótima aderência, atendida por mesmo médico, que aceitou assim dela cuidar. A febre persiste de modo intermitente, houve evento de embolia cerebral séptica com epilepsia como seqüela e verificam-se rápidas passagens por serviço de pronto-socorro. A paciente utiliza antibióticos via oral continuamente e mantém-se irredutível quanto à aceitação de uma mudança de conduta. Entre a alta hospitalar a pedido e a última consulta ambulatorial já se passaram 36 meses! Em prol da beneficência ajustável ao consentido, o cardiologista aplicou um esquema negociado e que tem sido considerado proveitoso pela paciente, que se diz satisfeita com a sua qualidade de vida. O médico que se recusou a ser indiferente e a paciente animada pela generosidade empurram a parede do beco sem saída, descobrindo que, em meio a vieses, um científico "erro da Medicina" pode representar um humano "acerto do médico"!

O que acontece, é que existe um porcentual de ações do cardiologista que orbitam nas obscuridades dependentes de processos biológicos: incluem os limites imprecisos do já assistencial/ainda experimental, o crivo implacável do tempo que não respeita prazos pré-determinados, a constatação que "caso de livro" pode não ser maioria e, importante, a constatação à beira de leito que o número de co-morbidades, com ou sem denominador comum circulatório, é fragmentário de diretrizes.

IIIB3 - Não maleficência

É um paciente supostamente não aderente à anticoagulaçâo oral?, que não se implante prótese metálica; é um paciente Testemunha-de-Jeová que está com 6 g/dl de nível sérico de hemoglobina e estável hemodinamicamente?, que não se prescreva transfusão sangüínea; é um paciente com valor alto de PCR ultra sensível e úlcera duodenal ativa?, que se evite o uso de ácido acetilsalicílico.

Hipócrates de Cós intuiu o primum non nocere, numa época de parcos recursos propedêuticos e terapêuticos, aforismo que se tornou legado da Medicina geração a geração por já 25 séculos, sempre atualíssimo perante novo progresso.

A não maleficência é princípio com muitos fins e que exige conhecimento integrado do estado de saúde do paciente. É ele que serve de orientação para adaptações na aplicação de diretrizes, redimensionamentos farmacológicos, precauções propedêuticas. São exemplos do cotidiano do cardiologista, precisar elevar o risco trombótico por ocasião de evento hemorrágico anticoagulante-associado; suspender o uso de droga inibidora da enzima de conversão por manifestação de tosse; hidratar convenientemente em função de uso de contraste iodado no cateterismo cardíaco. Neste conceito, inclui-se o paciente terminal, onde não havendo benefícios ao prognóstico no curto prazo, restaria não prolongar sofrimentos.

A realidade de um evento expressivo fala mais alto do que a potencialidade do que se pretende evitar.

Conclusão

A preservação de um bem depende da maneira com que são feitas mudanças adaptativas à sucessão das circunstâncias; no caso da saúde, resguardar o que está sendo benéfico e alterar o que está prejudicando é lição de primeira hora do mestre bom senso, guardião da simplicidade, quase sempre. O que é complexo, por vezes, é aplicar critérios para selecionar o que de fato é o bem e o que é o mal no cerne de uma conduta médica, até porque, vem a pergunta básica, bem para o quê, quando e quanto?

Os juramentos modernos privilegiam ações médicas de benefício, não somente afastar o mal, não apenas o cuidado com órgãos doentes, mas também e com ênfase, a promoção do novo conhecimento, a incorporação de habilidades recentes e o fornecimento de conselho e orientação para paciente e família. Este comportamento está em sintonia com o que a sociedade atual exige do médico, uma tríade representada por honestidade, sigilo e qualidade.

O cardiologista qualificado pelo conhecimento científico e pela capacitação técnica, confidente e honesto com o paciente tem na expressão Conheço&Aplico&Comporto-me a sua identidade, moderna, comunicativa e, principalmente, bioética.

Referências

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    • Publicação nesta coleção
      17 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Jul 2004
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