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Edema generalizado e circulação hiperdinâmica: um possível caso de beribéri

RELATO DE CASO

Edema generalizado e circulação hiperdinâmica – Um possível caso de beribéri

Marcos F. Minicucci; Leonardo A. M. Zornoff; Mirna Matsue; Roberto M. T. Inoue; Luiz S. Matsubara; Marina P. Okoshi; Katashi Okoshi; Álvaro O. Campana; Sergio A. R. Paiva

Botucatu, SP

Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Marcos F. Minicucci Depto. de Clínica Médica - Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP Cep 18618-000 - Botucatu, SP E-mail: mminicucci@uol.com.br

Paciente com insuficiência cardíaca causada pelo beribéri, apresentando regressão dos sinais e sintomas adquiridos após medicação com tiamina.

O beribéri, doença decorrente da deficiência de tiamina, tem duas apresentações clínicas principais, o beribéri úmido e o seco. O beribéri úmido é caracterizado por sinais e sintomas de insuficiência cardíaca de alto débito, decorrentes da retenção de sódio e água, vasodilatação periférica e falência biventricular. Apesar de ser causa incomum de insuficiência cardíaca, a deficiência de tiamina pode estar presente em pacientes em uso de altas doses de diuréticos de alça, etilistas, em pacientes com diarréia, em diálise peritoneal ou hemodiálise, em pacientes com nutrição parenteral e naqueles com tireotoxicose. Neste artigo relatamos um caso de paciente com insuficiência cardíaca que apresentou regressão dos sinais e sintomas após medicação com tiamina.

Relato de Caso

Homem de 20 anos, pardo, trabalhador rural braçal, apresentando parestesia e edema de membros inferiores há 10 meses e há um mês edema generalizado e dispnéia aos esforços. Sem antecedentes de tabagismo e, na história alimentar, relatada ingestão de uma a duas garrafas de cerveja nos finais de semana. Apresentava ao exame físico: freqüência cardíaca de 100 bpm, freqüência respiratória de 16 movimentos/minuto e pressão arterial de 140 x 70 mmHg, edema de membros inferiores (3+/4+), edema sacral, pulsos amplos e tremor de extremidades. O exame físico mostrou: estase jugular ausente, íctus não visível, palpável em decúbito lateral esquerdo no 5° espaço intercostal esquerdo, 2cm para fora da linha hemiclavicular, na extensão de 2-3 polpas e impulsivo. A ausculta evidenciou presença de 2 bulhas rítmicas normofonéticas, com sopro holossistólico (2+/6+) rude em foco mitral e tricúspide. Enquanto a semiologia respiratória não mostrou anormalidades, o exame do abdome evidenciou fígado palpável a 2cm do rebordo costal, ascite ausente, sem outras alterações.

Os exames laboratoriais revelaram ausência de proteinúria em urina de 24h; níveis de uréia, creatinina, albumina e bilirrubinas normais no soro; coagulograma, hemograma e exames da tireóide sem alterações. Verificou-se, no exame radiológico do tórax (PA), índice cardiotorácico > 0,5, com abaulamento do arco médio e acentuação da trama vascular (fig. 1). Ao eletrocardiograma, verificaram-se taquicardia sinusal e bloqueio incompleto de ramo direito (fig. 2). O ecogradiograma da internação revelou aumento das câmaras esquerdas, além de altos valores no porcentual de encurtamento e na fração de ejeção (tab. I).



Os resultados dos exames subsidiários, somados ao quadro clínico, eram compatíveis com estado hiperdinâmico da circulação. Como o paciente não apresentava anemia, hipertireoidismo, ou evidência de fístula artério-venosa, foi feita a hipótese diagnóstica de beribéri. Três dias após introdução de tiamina, o paciente apresentou melhora do edema, desaparecimento do sopro cardíaco e redução da área cardíaca à radiologia (fig. 3). O exame ecocardiográfico, realizado sete dias após introdução da tiamina, foi compatível com a normalidade (tab. I). O paciente vem sendo acompanhado em ambulatório e encontra-se assintomático.


Discussão

Na história deste paciente, o sinal mais relevante é a existência de edema de membros inferiores e sacral, acompanhado de dispnéia aos esforços. O quadro clínico e os exames laboratoriais apontaram para existência de uma condição hiperdinâmica da circulação. Assim, pode-se pensar em queda da resistência periférica e, numa situação de débito cardíaco alto. As seguintes doenças podem ser lembradas: anemia, hipertireoidismo, fístula artério-venosa, doença de Paget e beribéri (carência de tiamina)1.

A anemia foi descartada pelo hematócrito e hemoglobina normais. Quanto ao hipertireoidismo, não foram encontrados os sinais e sintomas mais freqüentes, e os resultados de T4 livre e TSH estavam dentro dos limites da normalidade. A falta de antecedentes que pudessem explicar a fístula arteriovenosa, como traumatismos e intervenções cirúrgicas prévias, tornou esse diagnóstico improvável. Em relação à doença de Paget, também não foram encontrados aumento sérico da fosfatase alcalina ou alterações radiológicas compatíveis com a afecção. Assim, restou considerar o beribéri.

Beribéri é o nome dado às alterações clínicas provocadas pela deficiência de tiamina, isto é, de vitamina B1. A tiamina é vitamina hidrossolúvel, essencial na formação da tiamina pirofosfato, coenzima do metabolismo dos carbohidratos.

Clinicamente, podemos diferenciar quatro formas fundamentais de deficiência de tiamina: a encefalopatia de Wernicke, o beribéri seco (em que predomina o quadro de polineuropatia periférica), o beribéri úmido, no qual estão presentes os sintomas e os sinais de insuficiência cardíaca de alto débito e o shoshin beribéri (sho=dano agudo, shin=coração) associado ao choque2.

Uma das conseqüências da deficiência da tiamina é a vasodilatação periférica, com aumento dos shunts arteriovenosos e alteração importante da circulação em pequenos vasos, com diminuição do fluxo sangüíneo cerebral e renal e aumento do fluxo sangüíneo muscular3. Essas alterações, por sua vez, têm, como conseqüência, a elevação da pressão venosa periférica e a retenção renal de sódio e água4, podendo estabelecer-se o edema, mesmo na ausência de evidências claras de insuficiência cardíaca.

As causas de aparecimento do beribéri são: ingestão alimentar deficiente; alcoolismo e uso de substâncias com propriedades antitiamina. Em pacientes hospitalizados, devemos lembrar, como causas, a nutrição parenteral, hemodiálise, diálise peritoneal e o uso de diuréticos5-7. Os estados de deficiência podem ser agravados por situações que, agudamente, aumentam as necessidades da tiamina, como o exercício físico, febre e infecções.

Considerando a ingestão alimentar deficiente, os seguintes alimentos são as principais fontes de tiamina: grãos integrais, cereais, carnes (especialmente a carne de porco), aves, peixes, vegetais e produtos derivados do leite. Arroz polido, açúcar, gordura e vários alimentos refinados são pobres em vitamina B15,8.

Um dado relevante refere-se ao fato que dietas com alto teor energético (principalmente com alto teor de carbohidratos) aumentam as necessidades de tiamina. O hábito de ingestão de álcool é freqüentemente associado ao beribéri. No alcoolismo, a deficiência de tiamina parece estar associada a menor ingestão alimentar, menor absorção de tiamina e alteração do metabolismo intermediário da vitamina9.

Outro aspecto a ser considerado é a existência de substâncias que possuem atividade antitiamina e que podem estar presentes em chás (folhas fermentadas de chás, extratos de folhas de chá), em nozes de certos tipos de palmeira, em peixes crus, frutos do mar e no café5.

Na tentativa de identificar o agente causal, no presente caso, foi utilizado, para avaliação da ingestão alimentar, o questionário de freqüência de alimentos. Este método semiquantitativo, permite a detecção de desvios alimentares e a ingestão de alimentos como café, chá, álcool e nozes, que podem ter ação antitiamina10.

O inquérito mostrou alta ingestão energética pelo paciente, que chegou a 2,42 vezes maior que o gasto energético basal. A ingestão de tiamina, descontando-se a perda existente no processo de preparação alimentar, aproximou-se da recomendada11. No entanto, a ingestão de café e bebidas alcoólicas, somadas ao aumento de necessidade de tiamina frente ao consumo energético aumentado, contribui para a deficiência dessa vitamina.

Existem critérios para o diagnóstico da manifestação cardiovascular do beribéri, a saber12: 1) ausência de outro fator etiológico; 2) história de ingestão alimentar deficiente em tiamina por no mínimo três meses; 3) associação com polineurite periférica; 4) aumento da área cardíaca, taquicardia sinusal e edema periférico; 5) rápida resposta à tiamina.

Como não se conseguiu identificar outro fator etiológico que explicasse o quadro clínico exibido e este apresentava características que correspondiam aos critérios diagnósticos para deficiência de tiamina, esta hipótese foi considerada aceitável. Durante a internação, o paciente queixou-se de dores musculares e o exame neurológico mostrou a existência de quadro compatível com polineuropatia periférica. Assim, poderíamos adicionar este novo elemento para reforçar a possibilidade da carência de vitamina B1. Na internação, além de repouso e diurético, foi acrescentada na prescrição a vitamina B1, com bolus de 100mg endovenoso e 25mg via oral por dia por duas semanas. Notou-se que o paciente apresentou melhora do quadro clínico e houve desaparecimento do edema e do sopro cardíaco.

Em adição, é interessante comparar a radiografia antes do tratamento (fig. 1) com a realizada oito dias após tratamento (fig. 3), quando o paciente estava sem edema. Verifica-se que a área cardíaca diminuiu, sendo o índice cardiotorácico de 0,41. Além disso, o arco médio do coração (posição PA), abaulado na primeira radiografia, apresenta contorno normal na segunda. Comparando-se o ecocardiograma realizado após a melhora clínica (14 dias após o inicial) com o primeiro, observamos melhora da condição hiperdinâmica da circulação (tab. I). A rápida resposta clínica à tiamina nos pacientes jovens é descrita na literatura e usada, também, como critério diagnóstico12,13.

Em relação ao diagnóstico laboratorial, o teste recomendado para a confirmação dessa carência vitamínica é a estimulação com o difosfato de tiamina da atividade da transcetolase eritrocitária.10 Em nosso hospital, atualmente, não dispomos desta metodologia.

Acreditamos que o caso clínico apresentado seja relevante. Em primeiro lugar, a deficiência de tiamina, apesar de facilmente tratável, pode levar ao óbito. Além disso, o tratamento habitual da insuficiência cardíaca com diuréticos pode agravar o quadro. Outro aspecto a ser considerado é a importância do ecocardiograma como exame essencial ao seu diagnóstico etiológico, já que foi este exame que identificou o quadro hiperdinâmico da circulação. Finalmente, ressaltamos a importância da história clínica e do inquérito alimentar no diagnóstico e seguimento dos pacientes.

Referências

1. Okoshi MP, Okoshi K, Cicogna AC. Insuficiência cardíaca de alto débito. Doenças do coração Prevenção e tratamento (1 ed.). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998.

2. Pereira VG, Masuda Z, Katz A, Tronchini VJ. Emergência de shoshin beribéri no Brasil: aspectos clínicos, hemodinâmicos e terapêuticos. Rev Ass Méd Brasil 1985; 31: 17-9.

3. Seligmann H, Halkin H, Rauchfleisch S et al. Thiamine deficiency in patients with congestive heart failure receiving long-term furosemide therapy: a pilot study. Am J Med 1991; 91: 151-5.

4. Blacket RB, Palmer AJ. Haemodynamic studies in high output beriberi. Br Heart J 1960; 22: 483-501.

5. Tanphaichitr V. Thiamin. In Shils ME et al. Modern Nutrition in Health and Disease (9ªed). Baltimore: Williams & Wilkins, 1998, p. 381-9.

6. Shimon I, Seligmann H, Vered Z et al. Thiamine supplements improve left ventricular function in patients with chronic heart failure. J Am Coll Cardiol 1993; 21: 366A.

7. da Cunha S, Albanesi Filho FM, da Cunha Bastos VL, Antelo DS, Souza MM. Thiamin, selenium, and copper levels in patients with idiopathic dilated cardiomyopathy taking diuretics. Arq Bras Cardiol 2002; 79: 454-65.

8. Haas RH. Thiamin and the brain. Annu Rev Nutr 1988; 8: 483-515.

9. Anderson SH, Charles TJ, Nicol AD. Thiamine-deficiency at a District General-Hospital - report of 5 cases. QJ Med 1985; 55: 15-32.

10. Willet W. Nutritional Epidemiology. New York: Oxford University Press, 1998. p514.

11. IOM. Thiamin. In: Dietary Reference Intake for thiamin, riboflavin, niacin, vitamin B6, folate, vitamin B12, pantothenic acid, biotin and choline, edited by Institute of Medicine. Washington: National Academic Press, 1999, p. 58-86.

12. Blacher C, Barbisan J. Relato de um caso da forma fulminante (shoshin) e revisão da literatura. R AMRIGS 1985; 29: 136-41.

13. Kawai C, Wakabayashi A, Matsumura T, Yui Y. Reappearance of beriberi heart disease in Japan. A study of 23 cases. Am J Med 1980; 69: 383-6.

Recebido para Publicação em 8/4/03

Aceito em 16/6/03

  • Endereço para correspondência

    Marcos F. Minicucci
    Depto. de Clínica Médica - Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP
    Cep 18618-000 - Botucatu, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004
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