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Otimização do tratamento medicamentoso na doença arterial coronariana: tarefa para o subespecialista?

EDITORIAL

Otimização do tratamento medicamentoso na doença arterial coronariana: tarefa para o subespecialista?

Anis Rassi Jr.

Goiânia, GO

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Anis Rassi Jr. - Anis Rassi Hospital Av. José Alves, 453 - Setor Oeste - Goiânia - GO Cep: 74.110-020 E-mail: arassijr@cardiol.br

Apesar da redução progressiva da mortalidade por doenças circulatórias (doença arterial coronariana e doença cerebrovascular, principalmente), a partir da metade da década de 1960 nos países mais desenvolvidos, como Japão e Estados Unidos1, e só mais recentemente nos países em desenvolvimento, como o Brasil2, essas doenças ainda constituem a principal causa de morte em todo o mundo, com taxas de mortalidade de elevada magnitude3,4. E esse cenário não deve se modificar nos próximos anos. Estima-se que em 2020, em decorrência do crescimento da população idosa e do aumento da longevidade, as doenças do aparelho circulatório continuarão a liderar as estatísticas de letalidade, seguidas por outras doenças crônicas, como as doenças do aparelho respiratório e o câncer5.

No Brasil, no período de 1995 a 1999, as doenças do aparelho circulatório foram responsáveis por, aproximadamente, 32% do total de óbitos, com taxas de mortalidade em torno de 157 por 100 mil habitantes. Em 1999, esse grupo de doenças representou a terceira causa de internação hospitalar no sistema público de saúde, com mais de um milhão de admissões (cerca de 10% do total), valor inferior apenas àquele verificado para as internações por partos normais ou complicações da gravidez e pelas doenças do aparelho respiratório6.

Nas últimas décadas, o melhor entendimento da fisiopatologia dos eventos coronarianos, a constatação da eficiência das medidas de prevenção cardiovascular e a utilização de fármacos embasada por evidências científicas sólidas, oriundas de resultados de ensaios clínicos randomizados, modificaram sobremaneira a evolução e o prognóstico da doença arterial coronariana7,8. Controle dos fatores de risco, hábitos alimentares saudáveis, prática regular de exercícios físicos e uso continuado de medicamentos, como ácido acetilsalicílico, betabloqueadores, estatinas e inibidores da enzima conversora da angiotensina, são exemplos de intervenções capazes de reduzir a morbidade e a mortalidade cardiovasculares, motivo pelo qual têm sido preconizadas por diretrizes nacionais e internacionais9.

Relatos da literatura, entretanto, sugerem que considerável número de pacientes com doença coronariana não recebe, de maneira adequada, o tratamento preconizado10. Fatores relacionados aos médicos, aos pacientes, ao próprio nível da evidência científica e ao contexto do exercício da Medicina dificultam a transferência da melhor evidência científica para a prática clínica (tab. I)11. No que se refere às barreiras envolvendo os profissionais médicos, estudos recentes têm demonstrado que, em comparação a condutas dispensadas por médicos generalistas, os resultados de intervenções preventivas e terapêuticas efetuadas por cardiologistas são mais eficazes em reduzir a morbidade e a mortalidade relacionadas às principais doenças cardiovasculares, entre elas a doença arterial coronariana12,13. Dentre as possíveis explicações para esse fenômeno merecem destaque a maior agressividade no controle dos fatores de risco e a prescrição mais freqüente de medicamentos de eficácia comprovada pelos cardiologistas12,13.

Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Stein e cols.14 sugerem que, mesmo entre cardiologistas, existem diferenças significativas no manejo de pacientes com cardiopatia isquêmica. Ao comparar o desempenho de cardiologistas em ambulatório geral de Cardiologia com aquele de seus pares em ambulatório especializado em cardiopatia isquêmica, os autores observaram maior eficiência no ambulatório especializado, particularmente no que diz respeito à solicitação do perfil lipídico e ao tratamento farmacológico prescrito. Assim, a utilização de ácido acetilsalicílico (98% vs. 84%; p = 0,02) e de estatina (60% vs. 19%; p = 0,001) foi mais freqüente no ambulatório especializado em cardiopatia isquêmica. Quanto à prescrição de betabloqueadores (58% no ambulatório específico vs. 51% no ambulatório geral), inibidores da enzima conversora da angiotensina (40% vs. 39%), nitratos (52% vs. 35%) e antagonistas do cálcio (50% vs. 26%), não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos. Por outro lado, durante o estudo, a solicitação de exames de perfil lipídico também foi mais freqüente nos pacientes atendidos no ambulatório específico em cardiopatia isquêmica (98% vs. 79%; p = 0,003). Entretanto, alguns aspectos, como, por exemplo, tamanho reduzido de amostra (apenas 95 pacientes), delineamento retrospectivo, coleta de dados em uma única instituição, possíveis diferenças de qualidade no registro das informações, desequilíbrio entre os grupos quanto aos fatores de risco e tempo de seguimento curto, impõem óbices à interpretação dos resultados. A utilização de testes estatísticos para determinar diferenças significativas entre grupos com tamanho de amostra pequeno é problemática. Por exemplo, pequena diferença entre os grupos na utilização de ácido acetilsalicílico (98% vs. 84%; p = 0,02) atingiu significância estatística, ao passo que diferença maior na utilização de antagonistas do cálcio (50% vs. 26%) não foi estatisticamente significante. Igualmente, a prescrição mais freqüente de estatina (60% vs. 19%; p = 0,001) no grupo de pacientes atendidos por cardiologistas em ambulatório específico de cardiopatia isquêmica pode, em parte, ser explicada pelo porcentual também maior de pacientes com dislipidemia nesse grupo (65% vs. 39%), apesar de essa diferença não ter atingido significância estatística. Aliás, esse fato sugere que a utilização de fármacos hipolipemiantes foi guiada, a priori, pela elevação dos níveis de colesterol sérico, ao invés de constituir parte obrigatória do tratamento dessa condição.

A despeito dessas limitações, parece claro que mesmo entre especialistas existe lugar para a otimização do tratamento medicamentoso na doença arterial coronariana, principalmente no que diz respeito à utilização de estatinas e de inibidores da enzima conversora da angiotensina. Resultados de estudos recentes apontam para redução significativa da morbidade e da mortalidade decorrentes da doença coronariana com o uso de fármacos hipolipemiantes, principalmente as estatinas, mesmo em pacientes com níveis normais de LDL-colesterol15 e com o uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina, inclusive em pacientes sem disfunção ventricular16. Assim, todos os esforços devem ser dispensados para que pacientes com cardiopatia isquêmica sejam tratados, de maneira rotineira, com ácido acetilsalicílico, betabloqueador, estatina e inibidor da enzima conversora da angiotensina, neste caso, preferencialmente, ramipril ou perindopril, quando a função ventricular não estiver comprometida, de acordo com os resultados dos estudos HOPE17 e EUROPA18, respectivamente. Finalmente, acreditamos que essa tarefa pode e deve ser bem-sucedida, não apenas entre os subespecialistas, mas também entre os demais profissionais médicos envolvidos na assistência de pacientes com essa condição, de elevada prevalência, sejam eles médicos de família, médicos-residentes, clínicos gerais ou cardiologistas. Para tanto, devem ser estimuladas medidas efetivas de adesão à boa prática, tais como utilização de protocolos assistenciais, opinião de líderes locais destituídos de conflitos de interesses, prescrição médica computadorizada, auxílio de lembretes eletrônicos, auditoria interna e comparação com pares locais, assim como o engajamento de outros profissionais de saúde11.

Referências

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5. Murray CJ, Lopez AD. Alternative projections of mortality and disability by cause 1990-2020: Global Burden of Disease Study. Lancet. 1997;349:1498-504.

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17. Yusuf S, Sleight P, Pogue J, Bosch J, Davies R, Dagenais G. Effects of an angiotensin-converting-enzyme inhibitor, ramipril, on cardiovascular events in high-risk patients. The Heart Outcomes Prevention Evaluation Study Investigators. N Engl J Med. 2000;342:145-53.

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Anis Rassi Hospital

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    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2004
    • Data do Fascículo
      Set 2004
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