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O transplante em conjunto de células mioblásticas esqueléticas e mesenquimais (cocultivadas) na disfunção ventricular pós-infarto do miocárdio

Resumos

OBJETIVO: A terapia celular no miocárdio tem sido realizada fundamentalmente com dois tipos celulares: as células mioblásticas esqueléticas (miogênicas) e as mesenquimais (angiogênicas) com resultados satisfatórios. Foi analisado o resultado do transplante em conjunto destas células (CEM) em ratos infartados. MÉTODOS: Foram induzidos ao infarto do miocárdio, por meio de ligadura da coronária esquerda 26 ratos Wistar. Após uma semana, os animais foram submetidos à ecocardiografia para avaliação da fração de ejeção (FE,%) e dos volumes diastólico e sistólico finais do ventrículo esquerdo (VDF, VSF,ml). Após dois dias os animais foram reoperados e divididos em dois grupos: 1) controle (n=10) que recebeu 0,15 ml de meio de cultura e 2) CEM (n=16) que recebeu 7.5x106 células mioblásticas esqueléticas e mesenquimais, heterólogas, na região do infarto. As células foram obtidas a partir da punção da crista ilíaca e da biópsia do músculo esquelético, ambas submetidas à cultura celular in vitro. Após um mês, os animais foram submetidos a nova ecocardiografia. RESULTADOS: Não houve diferença significativa entre os dois grupos quanto a FE, VDF e VSF nos valores ecocardiográficos de base. Um mês após o transplante, foram observados diminuição da FE no grupo controle (29.31 ± 5.6% para 23.54 ± 6.51% p=0.048) e acréscimo da FE no grupo CEM (24.03 ± 8.68% para 31.77 ± 9.06%, p=0.011). Identificou-se a presença de neovasos e fibras musculares, nas regiões de fibrose miocárdica no grupo CEM. CONCLUSÃO: O cocultivo das células mioblásticas esqueléticas e das células mesenquimais é funcionalmente efetivo.

Transplante; células mioblásticas esqueléticas; células mesenquimais; disfunção ventricular; infarto do miocárdio


OBJECTIVE: Cell therapy in the myocardium has been mainly performed with satisfactory results using 2 cell types: skeletal myoblasts (myogenic) and mesenchymal cells (angiogenic). This study assessed the combined transplantation of those 2 cell types (SMM) into infarcted rats. METHODS: Myocardial infarction was induced by ligature of the left coronary artery in 26 Wistar rats. After one week, the animals underwent echocardiography for assessing ejection fraction (EF%) and left ventricular end-diastolic and systolic volumes (EDV, ESV, mL). After 2 days, the animals were reoperated on and divided into 2 groups: 1) control (n=10), which received 0.15 mL of culture medium; and 2) SMM (n=16), which received 7.5x10(6) heterologous skeletal myoblasts and mesenchymal cells in the infarcted region. The cells were obtained from puncture of the iliac crest and biopsy of skeletal muscle, and were cultured in vitro. After one month, the animals underwent a new echocardiography. RESULTS: No significant difference in EF, EDV, and ESV was observed between the 2 groups on baseline echocardiographic values. One month after transplantation, the following was observed: a reduction in EF in the control group (29.31 ± 5.6% to 23.54 ± 6.51%; P=0.048); and an increase in EF in the SMM group (24.03 ± 8.68% to 31.77 ± 9.06%; P=0.011). The presence of neovascularization and muscle fibers was identified in the regions of myocardial fibrosis in the SMM group. CONCLUSION: Cocultivation of skeletal myoblasts and mesenchymal cells is functionally effective.

Transplantation; skeletal myoblasts; mesenchymal cells; ventricular dysfunction; myocardial infarction


ARTIGO ORIGINAL

O transplante em conjunto de células mioblásticas esqueléticas e mesenquimais (cocultivadas) na disfunção ventricular pós-infarto do miocárdio

Luiz Cesar Guarita Souza; Katherine Athayde Teixeira de Carvalho; Carmen Rebelatto; Alessandra Senegaglia; Marcus Furuta; Nelson Miyague; Paula Hansen; Julio C Francisco; Paulo Roberto Slud Brofman

Curitiba, PR

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Endereço para Correspondência Endereço para Correspondência Luiz César Guarita Souza Rua Silveira Peixoto, 1062/162 80240-120 Curitiba – PR E-mail: llccggss@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: A terapia celular no miocárdio tem sido realizada fundamentalmente com dois tipos celulares: as células mioblásticas esqueléticas (miogênicas) e as mesenquimais (angiogênicas) com resultados satisfatórios. Foi analisado o resultado do transplante em conjunto destas células (CEM) em ratos infartados.

MÉTODOS: Foram induzidos ao infarto do miocárdio, por meio de ligadura da coronária esquerda 26 ratos Wistar. Após uma semana, os animais foram submetidos à ecocardiografia para avaliação da fração de ejeção (FE,%) e dos volumes diastólico e sistólico finais do ventrículo esquerdo (VDF, VSF,ml). Após dois dias os animais foram reoperados e divididos em dois grupos: 1) controle (n=10) que recebeu 0,15 ml de meio de cultura e 2) CEM (n=16) que recebeu 7.5x106 células mioblásticas esqueléticas e mesenquimais, heterólogas, na região do infarto. As células foram obtidas a partir da punção da crista ilíaca e da biópsia do músculo esquelético, ambas submetidas à cultura celular in vitro. Após um mês, os animais foram submetidos a nova ecocardiografia.

RESULTADOS: Não houve diferença significativa entre os dois grupos quanto a FE, VDF e VSF nos valores ecocardiográficos de base. Um mês após o transplante, foram observados diminuição da FE no grupo controle (29.31 ± 5.6% para 23.54 ± 6.51% p=0.048) e acréscimo da FE no grupo CEM (24.03 ± 8.68% para 31.77 ± 9.06%, p=0.011). Identificou-se a presença de neovasos e fibras musculares, nas regiões de fibrose miocárdica no grupo CEM.

CONCLUSÃO: O cocultivo das células mioblásticas esqueléticas e das células mesenquimais é funcionalmente efetivo.

Palavras-chave: Transplante, células mioblásticas esqueléticas, células mesenquimais, disfunção ventricular, infarto do miocárdio

Embora existam evidências de divisão mitótica no coração1 após o infarto do miocárdio, na grande maioria das vezes, os cardiomiócitos não se regeneram e a insuficiência cardíaca pode ser uma das complicações. Os tratamentos atuais propostos, tanto clínicos como cirúrgicos, tratam, fundamentalmente, as conseqüências do infarto do miocárdio.

Duas novas linhas de pesquisas estão sendo propostas para tratar a principal consequência do infarto do miocárdio, que é a perda da célula contrátil, objetivando a regeneração miocárdica: a administração de fatores angiogênicos e o transplante de células.

As células mioblásticas esqueléticas2-5 e as mesenquimais6-8 (originárias das células da medula óssea), estão sendo utilizadas em vários estudos, tanto experimentais como clínicos, com resultados satisfatórios.

Apesar do transplante das células mioblásticas esqueléticas ter se mostrado efetivo no miocárdio infartado, pois estas células puderam se diferenciar em músculo viável na fibrose miocárdica, a sua não diferenciação morfológica em cardiomiócito, a ausência de discos intercalares entre as células transplantadas e os cardiomiócitos adultos nativos, dificultando a conexão entre eles, e a presença de arritmia ventricular pós-transplante9 (provavelmente de origem isquêmica) em alguns pacientes, apresentam alguns questionamentos.

Por outro lado, a característica das células da medula óssea de se diferenciar de acordo com o meio em que estejam em contato10, abriu uma perspectiva, dentre várias outras, para a regeneração do músculo infartado. As células da medula óssea podem sofrer dois processos de diferenciação11, a linhagem hematopoiética, que originará as células do sangue (linfócitos, eosinófilos, basófilos, neutrófilos, células vermelhas e plaquetas) e a linhagem mesenquimal que poderá originar células musculares, hepatócitos, osteócitos e condrócitos.

Alguns trabalhos6, no infarto agudo do miocárdio sugerem uma melhora funcional após o transplante das células da medula óssea, outros uma diferenciação em cardiomiócitos7 e, outros ainda, apenas um potencial angiogênico12.

Assim, o objetivo deste trabalho foi realizar uma análise funcional e anatomopatológica do transplante em conjunto de células mioblásticas esqueléticas e mesenquimais, cocultivadas, no miocárdio infartado.

Métodos

Todos os experimentos foram realizados de acordo com o "Guia de Cuidados de Animais", aprovado pela Sociedade Americana de Fisiologia.

Foram operados 50 ratos Wistar com peso médio de 250g. A indução anestésica foi realizada com a administração de 50mg/kg/ de ketamina e 10mg/kg/ de xylazina, ambas por via intramuscular. Os animais foram submetidos à entubação endotraqueal, sem exposição cirúrgica da traquéia e ventilação mecânica com freqüência de 55 ciclos/min com 2.5 ml de volume (Harvard®, Inc., respirador modelo 683, Massachusetts, USA).

Em todos os animais foi realizada toracotomia lateral esquerda, pela qual se procedeu à pericardiotomia e, em seguida, à ligadura da artéria coronária esquerda, com fio poliproplilene 7/0 (Ethicon®, Inc., Somerville, NJ), induzindo o infarto da parede ântero-lateral do ventrículo esquerdo. Foi comprovada a efetividade do procedimento quando houve alteração da coloração da parede ventricular esquerda. Ocorreu uma mortalidade de 30% dos animais submetidos ao procedimento.

Passados sete dias do infarto do miocárdio, os animais foram submetidos a anestesia com administração de 50mg/kg/ de ketamina e 10mg/kg/ de xylazina, ambas por via intramuscular e a avaliação ecocardiográfica transtorácica bidimensional (Hewlet Packard modelo Sonos 5500, com transdutores setorial S12 (5 -12 mHz) e limiar 15L6 (7-15mHz), permitindo uma análise de até 160Hz e especificamente produzida para estudo ultra-sônico em pequenos animais. O transdutor foi posicionado na porção ântero-lateral esquerda do tórax e os corações foram visualizados pelo modo bidimensional com visão axial do ventrículo esquerdo, incluindo a valva mitral, aórtica e o ápex na mesma imagem. A conversão digital da imagem foi obtida pela delimitação do septo interventricular e a parede posterior do ventrículo esquerdo. A seguir realizaram-se as seguintes medidas: superfície sistólica e diastólica finais, comprimento sistólico e diastólico finais do ventrículo esquerdo e freqüência cardíaca, para posteriores cálculos dos volumes sistólico e diastólico finais e da fração de ejeção do ventrículo esquerdo. Todas as medidas foram realizadas pelo mesmo ecocardiografista, três vezes, sendo em seguida calculada a média de cada parâmetro, de forma cega, ou seja, o examinador desconhecia a fase do estudo e a qual grupo o animal pertencia. Somente foram incluídos no estudo animais com fração de ejeção do ventrículo esquerdo < 40%, justamente para caracterizar disfunção ventricular. Os animais que apresentaram fração de ejeção > 40%, foram excluídos do estudo, o que correspondeu a 18% dos animais.

Volume ventricular-fórmula: V=8x(S)2/(3x3.1415926xC), onde V=volume, S=área e C=peso.

Fração de ejeção do ventrículo esquerdo-fórmula: FE= VDF - VSF/VDF, onde FE = fração de ejeção do ventrículo esquerdo, VDF = volume diastólico final do ventrículo esquerdo, VSF = volume sistólico final do ventrículo esquerdo.

A partir deste momento os animais foram divididos em dois grupos: controle, n=10 e CEM (esquelética e mesenquimal), n=16.

O isolamento das células mioblásticas esqueléticas foi realizado após biópsia do músculo esquelético do membro inferior, através da técnica de Delaporte13 e o isolamento das células mesenquimais foi realizado a partir da punção aspirativa da medula óssea, da crista ilíaca póstero-superior de ratos Wistar14. Após a centrifugação das células e separação por gradiente de densidade, utilizando a solução Ficoll-Paque PLUS (Amersham Biosciences), as células mesenquimais aderiram à superfície das placas, ao passo que as de origem hematopoiéticas não. Após centrifugação das células da medula óssea, as células mononucleares foram distribuídas nos frascos e após 48h seguiu-se à lavagem com PBS, restando aderidas apenas as células estromais, que continham as células mesenquimais.

Foram realizados ensaios em frascos de 25cm2 de área e as células semeadas na proporção 2 células mioblásticas esqueléticas para 1 célula mesenquimal (2:1), cerca de 5 x105/ml por 12 dias. O meio de cultura utilizado foi o DMEM (Dulbecco's Modified Eagle Médium), contendo 15% de FCS (Fetal Calf Serum) 1% de antibiótico e 10ng/ml de IGF-I (insuline growth factor)(Gibcco BRL, Life Technologies, Inc, Rockville, Md). As culturas foram mantidas em estufa com 5% de CO2 á 37ºC. Como trata-se de co-cultivo, combinações dessas células foram distribuídas por 12 dias, sendo o meio de cultura trocado a cada 48h.

Realizada a análise histológica da cultura celular, a identificação das células de origem muscular através da marcação com o anticorpo anti-desmina (Dako-Anti-Human Desmin-Clone D33). (fig. 1) e das células mesenquimais foi realizada através da marcação com a proteína anti-vimentina (Imunoperoxidase-Sigma, IMMH-10-Vimentin S-20 Santa Cruz Biotechnology, FITC) (fig. 2).



A viabilidade das células transplantadas variou de 85 a 95%, através da coloração de azul de Tripan.

Os estudos histológicos, das peças anatômicas, foram realizados com a hematoxilina-eosina e tricômico de Gomori, para identificação de zonas de infarto do miocárdio e a presença ou não de novas estruturas na fibrose miocárdica

Utilizou-se o Anti-BrDu (Bromodeoxyuridine-monoclonal antibody detecting cells proliferation and activation, BD) por meio da imunofluorescência direta, para marcar as células antes do transplante e poder identificá-las após o procedimento.

Nove dias após o infarto do miocárdio, os animais foram reoperados, submetidos a uma esternotomia mediana. Após individualização da área do miocárdio infartada, foi realizada injeção subepicárdica de 0.15 ml de meio de cultura (MEM a 57% e BSA a 0.5% Fraction V, Sigma) no grupo controle. O grupo CEM recebeu células mioblásticas esqueléticas e células mesenquimais heterólogas na quantidade de 7.5x106 células diluídas em 0,15 ml de meio de cultura. Todos os animais receberam ciclosporina (15mg/kg/peso/dia) antes da esternotomia e manteve-se a mesma dosagem até o dia do sacrifício.

Um mês após o transplante das células, todos os animais foram submetidos a uma nova avaliação ecocardiográfica, avaliando-se os mesmos parâmetros usados no exame pré-transplante. Em seguida, os animais foram sacrificados para avaliação anatomopatológica.

Os dados foram apresentados sob a forma de médias ± SD e a significância estatística foi aceita quando o p<0.05. Comparação entre os grupos nos períodos de base e 1 mês após o transplante foi realizada com teste t pareado.

Após a avaliação da homogeneidade da variância e a distribuição normal dos dados, a análise da variância foi realizada para determinar a diferença entre os grupos em cada período (base e 1 mês). O teste de Fisher para analisar a proporção de casos que melhoraram ou mantiveram-se estáveis após um mês do transplante.

Resultados

Não houve diferença estatística entre os dois grupos, controle e CEM, nos parâmetros da fração de ejeção e dos volumes sistólico e diastólico finais do ventrículo esquerdo, após o infarto do miocárdio e antes do transplante. Todos os animais foram considerados homogêneos (29.31 ± 5.60% e 24.03 ± 8.68% p=0.10, 0,36 ± 0,09 e 0,37 ± 0,06 p=0.593 e 0.50 ± 0.11ml e 0.49 ± 0.08ml, p=0.757, respectivamente).

Entretanto, 1 mês após o transplante das células, foi observada uma diferença significativa entre o grupo CEM e o grupo controle no parâmetro da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (31.77 ± 9.06% vs 23.54±6.51% p=0.020) (fig. 3).


Analisando-se os grupos individualmente, observou-se um decréscimo da fração de ejeção do ventrículo esquerdo no grupo controle (29.31±5.60% para 23.54±6.51% p=0.048) e um acréscimo da fração de ejeção no grupo CEM (24.03±8.68% para 31.77±9.06% p=0.011) (tab. I).

Analisando-se o volume diastólico final do ventrículo esquerdo, não foi identificada diferença estatística entre o grupo controle e o grupo CEM, após um mês do transplante (0.69 ± 0.19ml vs 0.67 ± 0.12ml, p=0.791, respectivamente). (fig. 4). Entretanto, os grupos, controle e CEM, isoladamente, apresentaram um aumento do volume diastólico final do ventrículo esquerdo (0.50 ± 0.11ml para 0.69 ± 0.19ml p=0.008 e 0.49 ± 0.08ml para 0.67 ± 0.12ml p<0.001, respectivamente). (tab. II).


Analisando-se o volume sistólico final do ventrículo esquerdo, não foi identificada diferença estatística entre o grupo controle e o grupo CEM, um mês após o transplante (0,54 ± 0,17ml vs 0,47 ± 0,12ml, p=0.233, respectivamente). (fig. 5). Entretanto, os grupos, controle e CEM, isoladamente, apresentaram um aumento do volume sistólico final do ventrículo esquerdo (0,36 ± 0,09ml para 0,36 ± 0,09ml p=0.002 e 0,37 ± 0,06 para 0,47 ± 0,12ml p=0.011, respectivamente) (tab. III).


Analisando-se os animais individualmente em cada grupo, observou-se que no grupo CEM, dos 16 animais, 14 (87.5%) animais apresentaram melhora da fração de ejeção. No grupo controle, dos 10 animais, oito apresentaram piora da função e apenas dois (20%) apresentaram melhora, apesar de não terem sido submetidos ao transplante de células (tab. IV). Os animais foram sacrificados um mês após o transplante das células, os corações removidos e divididos em duas partes, o ápex contendo a área de infarto e a base. Cada parte foi congelada em nitrogênio líquido a -80°C e submetida a cortes fracionados a cada cinco micra, envolvendo a zona de transição entre o miocárdio íntegro e a região de fibrose.

Identificaram-se células transplantadas na região de infarto, após um mês, no grupo CEM, através da coloração com hematoxilina-eosina e tricômico de Gomori.

Morfologicamente, as células identificadas apresentavam característica de fibra muscular esquelética que coloniza a região de fibrose. Identificou-se também a formação de novos vasos sangüíneos nessa região, no grupo CEM. No grupo controle, comparativamente, não foi visualizada a presença de músculo e nem de vasos sangüíneos na região de fibrose miocárdica (fig. 6a e b).


No grupo CEM, as células transplantadas foram identificadas com o anti-BrDu, 24h após o transplante (fig. 7).


Discussão

Na grande maioria dos estudos onde se realiza o transplante de mioblastos esqueléticos no miocárdio tem-se objetivado a recolonização das regiões de fibrose miocárdica, com células contráteis. Esses estudos, tanto experimentais2-4 como clínicos5, sugerem uma melhora funcional do coração; entretanto a não diferenciação dos mioblastos esqueléticos em cardiomiócitos, a ausência das junções GAP entre as células transplantadas e o miocárdio íntegro e as arritmias ventriculares identificadas em alguns pacientes operados9, não poderiam deixar de serem questionadas.

Por outro lado, nos estudos com células da medula óssea, existem algumas divergências em relação à sua diferenciação em cardiomiócitos e o real benefício funcional que o transplante dessas células poderia proporcionar. Orlic e cols.8 realizaram o transplante de células da medula óssea na região de transição entre o miocárdio íntegro e o infartado, após 5h de oclusão de coronária descendente anterior, identificando uma melhora funcional do coração, com presença de células endoteliais e músculo liso nos animais estudados. Entretanto, células da medula óssea diferenciadas em cardiomiócitos não foram identificadas na região infartada, apenas na zona de transição. A presença de músculo liso pode ser justificada pela estrutura da túnica média do vaso sangüíneo neoformado.

Ferem e cols.15, acreditam que as células mononucleares da medula óssea, quando transplantadas em pacientes com miocardiopatia isquêmica, apresentam benefícios funcional e clínico importantes.

A característica fundamental das células da medula óssea, principalmente das células mesenquimais, é a sua diferenciação meio dependente, ou seja, estas células adquirem as características das células com que estão em contato. Por exemplo, as células da medula óssea, em contato com osso, terão tendência de se diferenciar em osso; da mesma forma, as que estiverem em contato com células do fígado, se diferenciarão em hepatócitos; se em contato com células cardíacas poderão diferenciar-se em cardiomiócitos, e assim por diante16. Seguindo este mesmo raciocínio, quando essas células fossem transplantadas para uma região de infarto do miocárdio crônico, ou seja, com fibrose, essas células, conseqüentemente, teriam a tendência de se diferenciar em fibrose. Partindo deste princípio, é difícil acreditar que as células da medula óssea poderiam recolonizar o miocárdio infartado, cronicamente, com novas fibras musculares cardíacas.

Alguns trabalhos12,17 têm demonstrado, à anatomia patológica, que quando se transplantam células da medula óssea (mononucleares e/ou mesenquimais) em modelos de infarto crônico do miocárdio, observa-se uma neoformação de vasos sangüíneos na região da fibrose miocárdica.

A idéia de associação das células mioblásticas esqueléticas, que de fato recolonizam o miocárdio infartado com novas fibras musculares de origem esquelética, e das células derivadas de medula óssea, que estimulam a formação de novos vasos na região de fibrose, foi justamente sustentada na hipótese de realizar uma regeneração ângio-muscular e não somente muscular e ou angiogênica isoladamente.

Analisando-se isoladamente o grupo CEM, a melhora funcional identificada entre o período após o infarto do miocárdio e um mês após o transplante das células foi significativa (24,03 ± 8,68% para 31,77 ± 9,06; p=0.011). O mesmo ocorre quando o grupo CEM é comparado com o grupo controle após um mês do transplante (23,54 ± 6,51% vs 31,77 ± 9,06%; p=0.020). Estes dados sugerem a efetividade do transplante de células cocultivadas. Entretanto, é difícil identificar qual das células transplantadas, se não ambas, é a responsável pelo aumento da fração de ejeção do ventrículo esquerdo.

Ainda na análise funcional, utilizando-se apenas os animais que mantiveram estável ou melhoraram a fração de ejeção do ventrículo esquerdo, observou-se que o efeito placebo esteve presente em dois animais do grupo controle, pois apresentaram melhora mesmo sem qualquer tipo de tratamento. No grupo CEM 14 (87,5%) animais dentre os 16 apresentaram melhora. O fato de dois animais não terem apresentado melhora da função cardíaca, pode ter sido atribuído a problemas técnicos, como falha na injeção das células ou até sua embolização.

Apesar da efetividade do transplante de células no grupo CEM, no parâmetro da fração de ejeção do ventrículo esquerdo, foi observado um aumento significativo do volume diastólico final do ventrículo esquerdo (p<0.001) após um mês do transplante, sugerindo a ocorrência do remodelamento ventricular independentemente da melhora da função cardíaca. O grupo controle apresentou evolução de forma semelhante, e foi diferença significativa não foi observada entre ambos os grupos neste parâmetro e no mesmo período. Vários trabalhos com transplante de mioblásto esquelético2,4 no miocárdio infartado, apresentam o remodelamento ventricular, apesar da melhora funcional, inclusive em estudos clínicos9. Acredita-se que a capacidade de regeneração do miocárdio infartado, com as células mioblásticas esqueléticas seja limitada apenas ao local onde as células foram injetadas, não tendo efeito global anti-remodelamento ventricular.

Com relação ao volume sistólico final do ventrículo esquerdo, observou-se um aumento tanto no grupo controle como no grupo CEM, após um mês do transplante, sugerindo uma perda da atividade contrátil (p=0.002 e p=0.011, respectivamente).

Em um estudo realizado por Pouzet e cols.18, onde foram analisados animais submetidos ao transplante de mioblastos esqueléticos associado ao tratamento clínico com inibidor da angiotensina, observou-se uma limitação da dilatação ventricular esquerda, provavelmente, em decorrência dos efeitos do tratamento clínico.

Os mecanismos responsáveis pela melhora da função cardíaca após o transplante de mioblastos esqueléticos ainda não estão bem definidos; acredita-se que possa ser por uma forma ativa, pela melhora da contratilidade regional e por que diminui a região de infarto. Entretanto é importante ressaltar que existe uma relação direta entre o número de células transplantadas e a melhora funcional19 e que o benefício do transplante depende também da qualidade das células transplantadas e da sua sobrevivência após o transplante20, visto que uma grande porcentagem de células morre após o transplante.

Em um outro estudo17 comparando-se os efeitos do transplante isolado de mioblastos esqueléticos e células mesenquimais no infarto do miocárdio, observou-se uma melhora significativa da fração de ejeção do ventrículo esquerdo no grupo que recebeu células mioblásticas em relação ao grupo controle; já o grupo que recebeu células mesenquimais apresentou uma estabilização da fração de ejeção do ventrículo esquerdo. Neste grupo, à anatomia patológica, não se identificaram novas fibras musculares na região de infarto, local da injeção das células, e sim uma intensa neoangiogênese. Tal característica que pode justificar a estabilização da fração de ejeção do ventrículo esquerdo, pois a formação de novos vasos sangüíneos pode diminuir a apoptose, a expansão do infarto, preservando o miocárdio. Resultado funcional semelhante foi também observado em outro estudo21, onde foram comparadas as células de linhagem hematopoiéticas (CD 133+) e as células mioblásticas esqueléticas.

A presença de arritmia, demonstrada por Menasché e cols.9 em seus estudos com células mioblásticas esqueléticas, não foi um achado isolado, Zhang e cols.22, também, sugerem que as células da medula óssea embrionárias, quando transplantadas no miocárdio infartado, também podem apresentar características arritmogênicas.

A isquemia miocárdica, dentre outras, é uma das causas de arritmias ventriculares. Assim, acredita-se que no grupo de estudo do Menasché e cols.9, a causa das arritmias possa ser isquêmica, pois após o transplante de células esqueléticas em uma região de fibrose, a região tornou-se viável, visualizada por tomografia com emissão de pósitrons (PET-SCAN). Entretanto, nessa região, previamente infartada e agora viável, pode-se suspeitar que houve isquemia miocárdica, pois o suprimento sangüíneo nos pacientes estudados estava ausente, em decorrência de uma oclusão coronariana sem circulação colateral.

Neste estudo, a identificação, à anatomia patológica, de novas fibras musculares na região de fibrose e a presença de novos vasos sangüíneos na região, corroboram com a hipótese da regeneração angiomuscular.

Segundo Pouzet e cols.18, existe uma importante mortalidade das células logo após o transplante, possivelmente em decorrência da própria reação inflamatória local do infarto ou mesmo da injeção das células. Um das causas da mortalidade tardia das células transplantadas, poderia ser a isquemia crônica na região. A presença de novos vasos sangüíneos, na região onde as células musculares foram transplantadas, pode auxiliar na preservação das novas fibras musculares e diminuir a isquemia, atrofia e morte dos cardiomiócitos.

Em conclusão, a associação das células mioblásticas esqueléticas e mesenquimais mostrou-se efetiva na regeneração da fibrose miocárdica, com identificação de novas fibras musculares esqueléticas e novos vasos sangüíneos na região de fibrose miocárdica.

Agradecimentos

Ao Dr. Marcio Scorsin e à CAPES.

Enviado para publicação em 03/04/2004

Aceito em 22/06/2004

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Recebido
      03 Abr 2004
    • Aceito
      22 Jun 2004
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