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A cirurgia de revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea minimiza o sangramento pós-operatório e a necessidade transfusional

Resumos

OBJETIVO: Comparando a revascularização do miocárdio (RM) com e sem circulação extracorpórea (CEC), com o sangramento no pós-operatório e a necessidade de transfusão de sangue e hemoderivados. MÉTODOS: De novembro/2001 a fevereiro/2002, foram analisados 186 pacientes submetidos a revascularização miocárdica, excluindo-se procedimentos associados, divididos em grupo A de 116 pacientes submetidos a RM com CEC e grupo B de 69 pacientes a RM sem CEC. Os dois grupos foram comparáveis em relação a características pré e intra-operatórias, exceto pelo maior número de anastomoses distais (p=0,0004) no grupo A, e maior atividade de protrombina (p=0,04) e RNI (p=0,03) no grupo B. Para evitar discrepâncias entre os grupos, foram selecionados 140 pacientes com características estatisticamente similares. RESULTADOS: Estudando os grupos pareados, tanto o volume total de sangramento em 24h (p=0,001), quanto aquele indexado para a superfície corpórea (p=0,004) foram respectivamente maiores no grupo A (609,6 ± 395,8 ml; 331,8 ± 225,8 ml/m²) em relação ao grupo B (437,2 ± 315 ml; 241 ± 173,9 ml/m²). Embora a necessidade de transfusão não fosse significativamente diferente entre os grupos (p=0,1), a quantidade transfundida de concentrado de hemáceas foi maior no grupo A (p=0,01). Não houve diferença estatística em relação à transfusão dos outros hemocomponentes e à necessidade de revisão cirúrgica de hemostasia. CONCLUSÃO: A RM sem CEC apresentou vantagens sobre a RM com CEC, em relação ao menor sangramento no pós-operatório e menor transfusão de concentrado de hemáceas. As repercussões deste achado podem ser inúmeras, principalmente em relação a minimização de fatores mórbidos e de custos hospitalares.

revascularização do miocárdio; circulação extracorpórea; sangramento mediastinal; transfusão de sangue


OBJECTIVE: To compare myocardial revascularization (MR) with and without extracorporeal circulation (ECC) in regard to postoperative bleeding and the need for blood and hemoderivate transfusion. METHODS: From November 2001 to February 2002, 186 patients undergoing myocardial revascularization were assessed, excluding those who underwent associated procedures. The patients were divided into 2 groups as follows: group A - comprising 116 patients undergoing MR with ECC; and group B - comprising 69 patients undergoing MR without ECC. Both groups were comparable in regard to pre- and intraoperative characteristics, except for the greater number of distal anastomoses (P=0.0004) in group A, and greater prothrombin activity (P=0.04) and INR (P=0.03) in group B. To avoid discrepancies between the groups, 140 patients with statistically similar characteristics were selected. RESULTS: Studying the paired groups, both the total bleeding volume in 24 hours (P=0.001) and the bleeding volume indexed for body surface (P=0.004) were greater in group A (609.6 ± 395.8 mL; 331.8 ± 225.8 mL/m², respectively) than in group B (437.2 ± 315 mL; 241 ± 173.9 mL/m², respectively). Although the need for transfusion was not significantly different between the groups (P=0.1), the amount of erythrocyte concentrate transfused was greater in group A (P=0.01). No statistical difference was observed in regard to transfusion of other hemocomponents and the need for surgical review of hemostasis. CONCLUSION: Myocardial revascularization without ECC was more advantageous than MR with ECC in regard to smaller postoperative blood loss and a lesser need for transfusion of erythrocyte concentrate. The repercussions of this finding may be innumerable, particularly in regard to minimization of morbid factors and hospital costs.

myocardial revascularization; extracorporeal circulation; mediastinal bleeding; blood transfusion


ARTIGO ORIGINAL

A cirurgia de revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea minimiza o sangramento pós-operatório e a necessidade transfusional

Fernando Antibas Atik; Leonardo Augusto Miana; Fábio B. Jatene; José Otávio C. Auler Júnior; Sérgio Almeida de Oliveira

São Paulo, SP

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP

Endereço para Correspondência Endereço para Correspondência Fernando A. Atik Av. Chibaras, 626/101 Cep 04076-003- São Paulo, SP E-mail: atik@cardiol.br

RESUMO

OBJETIVO: Comparando a revascularização do miocárdio (RM) com e sem circulação extracorpórea (CEC), com o sangramento no pós-operatório e a necessidade de transfusão de sangue e hemoderivados.

MÉTODOS: De novembro/2001 a fevereiro/2002, foram analisados 186 pacientes submetidos a revascularização miocárdica, excluindo-se procedimentos associados, divididos em grupo A de 116 pacientes submetidos a RM com CEC e grupo B de 69 pacientes a RM sem CEC. Os dois grupos foram comparáveis em relação a características pré e intra-operatórias, exceto pelo maior número de anastomoses distais (p=0,0004) no grupo A, e maior atividade de protrombina (p=0,04) e RNI (p=0,03) no grupo B. Para evitar discrepâncias entre os grupos, foram selecionados 140 pacientes com características estatisticamente similares.

RESULTADOS: Estudando os grupos pareados, tanto o volume total de sangramento em 24h (p=0,001), quanto aquele indexado para a superfície corpórea (p=0,004) foram respectivamente maiores no grupo A (609,6 ± 395,8 ml; 331,8 ± 225,8 ml/m2) em relação ao grupo B (437,2 ± 315 ml; 241 ± 173,9 ml/m2). Embora a necessidade de transfusão não fosse significativamente diferente entre os grupos (p=0,1), a quantidade transfundida de concentrado de hemáceas foi maior no grupo A (p=0,01). Não houve diferença estatística em relação à transfusão dos outros hemocomponentes e à necessidade de revisão cirúrgica de hemostasia.

CONCLUSÃO: A RM sem CEC apresentou vantagens sobre a RM com CEC, em relação ao menor sangramento no pós-operatório e menor transfusão de concentrado de hemáceas. As repercussões deste achado podem ser inúmeras, principalmente em relação a minimização de fatores mórbidos e de custos hospitalares.

Palavras-chave: revascularização do miocárdio, circulação extracorpórea, sangramento mediastinal, transfusão de sangue

O sangramento e as complicações relacionadas à hemotransfusão continuam sendo um dos maiores fatores de morbidade e mortalidade em cirurgia cardíaca. O conhecimento dos fatores de risco1 desta complicação é fundamental para a adoção de medidas terapêuticas e preventivas.

Todavia, a natureza multifatorial do problema exige a instituição de protocolos universais2, que invariavelmente esbarram nas alterações de coagulação causadas pela circulação extracorpórea. Os métodos propostos para minimizar a perda sanguínea em cirurgia cardíaca incluem o uso de cell saver3, autotransfusão4, circuitos revestidos de heparina5, filtro de leucócitos6, drogas anti-fibrinolíticas7, entre outros. Os inconvenientes destes métodos residem no seu elevado custo para a ampla implementação rotineira.

O advento da revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea tem trazido renovado interesse, pela incorporação de nova tecnologia e conhecimento de seus resultados, comprovando sua exeqüibilidade em um grande grupo de pacientes8. Estudos recentes9,10 sugerem que esta técnica reduza o sangramento no pós-operatório, a necessidade de transfusão e os custos hospitalares. A literatura é escassa de trabalhos que analisem especificamente o sangramento como uma vantagem da revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea, tendo implicações relevantes em termos de morbidade no pós-operatório.

O objetivo deste trabalho foi estudar de forma comparativa a revascularização do miocárdio com e sem circulação extracorpórea, em relação ao sangramento no pós-operatório e a necessidade de transfusão de sangue e hemoderivados.

Métodos

De novembro de 2001 a fevereiro de 2002, 186 pacientes consecutivos foram incluídos num estudo prospectivo não randomizado, que analisou portadores de insuficiência coronariana com indicação de tratamento cirúrgico. Foram excluídos pacientes com procedimentos cirúrgicos associados.

Os pacientes foram divididos em dois grupos, de acordo com o tipo de revascularização do miocárdio realizada, que ficou a critério da equipe clínico-cirúrgica responsável por cada caso, sendo que os autores não tiveram participação alguma no processo de escolha do tipo de tratamento cirúrgico realizado.

O grupo A foi constituído por 116 pacientes submetidos a revascularização miocárdica com circulação extracorpórea e o grupo B por 69 pacientes sem circulação extracorpórea. O sexo masculino predominou em ambos os grupos, 93 (80,2%) pacientes no grupo A e 47 (68,1%) no grupo B. As idades variaram entre 37 e 84 (média 62,5 ± 10,4) anos no grupo A e entre 43 e 84 (média 64,9 ± 10,8) anos no grupo B. Nenhum dos pacientes necessitou, por motivos de dificuldade técnica, a conversão da revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea para com circulação extracorpórea.

Os pacientes do grupo A foram anestesiados e preparados de maneira convencional. A via de acesso foi a esternotomia mediana, seguida de pericardiotomia longitudinal. A circulação extracorpórea foi instituída após a administração de heparina 4 mg/kg de peso a fim de obter um tempo de coagulação ativado (TCA) > 480s. Na nossa instituição realiza-se canulação da aorta ascendente em locais livres de processos ateromatosos, e canulação venosa dupla ou com cânula de dois estágios no átrio direito, de acordo com a preferência do cirurgião. O fluxo arterial é mantido por volta de 2,4 l/m2/min-1, a fim de manter a pressão arterial média entre 50 e 70 mmHg. A maioria dos cirurgiões da nossa instituição adota a hipotermia sistêmica leve, mas alguns têm preferência pela normotermia. A proteção miocárdica realizada foi a cardioplegia sanguínea fria ou normotérmica, ou ainda o pinçamento intermitente da aorta, dependendo da preferência da equipe cirúrgica. Após a saída de circulação extracorpórea e a reposição de volume do priming, a heparina circulante foi neutralizada através da administração de protamina na proporção de 1:1 em relação à heparina.

Os pacientes do grupo B foram anestesiados e preparados da mesma maneira que os do grupo A, tomando-se alguns cuidados em relação a manutenção de uma volemia adequada (administração de soluções colóides preferencialmente) e controle da frequência cardíaca através da administração de metoprolol intravenoso. Todos os pacientes foram submetidos a esternotomia mediana convencional, com extensão cutânea reduzida, para fins estéticos. Após a abertura do pericárdio e a dissecção dos enxertos a serem utilizados na revascularização miocárdica, a heparina foi administrada na dose de 2 mg/kg de peso, a fim de manter o tempo de coagulação ativado duas vezes o valor basal. O garroteamento da artéria coronária a ser revascularizada foi realizado rotineiramente na porção proximal do vaso. Foi utilizado fio de polipropileno 4-0 ou fio de Silastic (Quest Medical, Inc., Dallas, TX), ancorado em tubos delicados de silicone e tracionados cuidadosamente previamente à arteriotomia pelo risco de lesão vascular11. A realização das anastomoses distais foi realizada com o auxílio de estabilizador Octopus III (Medtronic, Minneapolis, MN). O uso de shunt intracoronariano foi empregado na maioria dos casos, especialmente em artérias de grande calibre e nas responsáveis por suprimento sanguíneo numa área significativa do miocárdio, na ausência de circulação colateral. A anastomose proximal dos enxertos venosos foi realizada através de clampeamento parcial da aorta ou em anastomoses em Y com a artéria torácica interna. Após a realização da última anastomose, a heparina circulante foi neutralizada através da administração de protamina na proporção de 0,5:1 em relação à heparina.

A mensuração do sangramento no pós-operatório foi determinada através da soma do débito de todos os drenos torácicos, a partir do momento do fechamento do tórax durante período de 24h. O manejo pós-operatório foi todo realizado através de equipe multidisciplinar, incluindo o cardiologista, intensivista, cirurgião cardiovascular e hematologista. Coube a este último a orientação em relação a indicação de transfusão de hemocomponentes. Não houve nenhuma influência dos autores deste trabalho em relação à correção de distúrbios de coagulação no pós-operatório, indicação de transfusão de sangue e/ou hemoderivados ou revisão cirúrgica de hemostasia. Cada caso era analisado individualmente em relação à necessidade de hemotransfusão, levando-se em consideração as condições hemodinâmicas, o volume de sangramento, a idade do paciente, e a história de distúrbios hemorrágicos. Os profissionais envolvidos no cuidado pós-operatório não tinham conhecimento em relação à execução deste estudo e aos seus objetivos.

Assim, de forma geral, foram adotados critérios em relação à transfusão de hemocomponentes. O sangramento considerado significativo (150 ml/h) no pós-operatório imediato foi tratado de acordo com o resultado do coagulograma. As alterações de laboratório na ausência de sangramento não indicaram nenhum tipo de tratamento. O uso de protamina esteve indicado no alargamento dos níveis de tromboplastina parcial ativada (TTPA) ou do tempo de coagulação ativada, quando disponível ou na suspeita de recirculação da heparina. Quando ocorreram alterações da atividade de protrombina (AP) ou da relação de normalização internacional (RNI), esteve indicada a transfusão de plasma fresco congelado. A contagem de plaquetas abaixo de 100 mil por microlitro na presença de sangramento foi indicativa da transfusão deste componente. O hematócrito abaixo de 28% foi corrigido através de transfusão de concentrado de hemáceas. Todavia, pacientes jovens, com reserva miocárdica, níveis até de 20% foram tolerados sem a necessidade de transfusão. A indicação de revisão cirúrgica de hemostasia seguiu certas variações individuais, mas via de regra foi estabelecida quando a perda sanguínea fosse > 500 ml na 1º hora, > 300 ml por 2h consecutivas ou maior que 1 litro nas primeiras 8h.

No sentido de determinar a homogeneidade entre os grupos, estes foram comparados em relação a diversas características pré-operatórias (tab. I) e intra-operatórias (tab. II). As características pré-operatórias incluiram idade, sexo, peso, altura, presença de hipertensão arterial, fração de ejeção abaixo de 50% estimada pelo ecocardiograma bidimensional, classe funcional (Canadian Cardiology Society), insuficiência renal crônica em tratamento dialítico, uso de aspirina, heparina, trombolíticos ou inibidores da proteína IIb/IIIa e coagulograma com contagem de plaquetas. As características intra-operatórias analisadas foram cirurgia de emergência, reoperações, uso de ácido å amino capróico e número de artérias torácicas internas e total de pontes utilizadas na revascularização miocárdica.

A análise estatística foi realizada através do software Statview (Berkeley, CA). Os dados foram expressos através de média e desvio padrão ou em percentagens. O valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo. Os testes exato de Fisher e o chi quadrado foram utilizados na análise de variáveis categóricas e os testes t de Student e de Wilcoxon nas variáveis contínuas.

Resultados

A tabela I expressa a comparação entre os grupos A e B em relação a características pré e intra-operatórias. Os dois grupos foram considerados comparáveis em relação a todas as características, exceto pelo maior número de anastomoses distais (p=0,0004) no grupo A, e maior atividade de protrombina (p=0,04) e relação de normalização internacional (p=0,03) no grupo B, embora seus valores estivessem dentro dos limites de normalidade em ambos os grupos.

No sentido de eliminar essas diferenças entre os grupos, ambos foram submetidos a seleção pelo método de probabilidades, sendo selecionado subgrupo de 140 pacientes. O grupo A1 foi constituído por 71 pacientes e o grupo B1 por 69 pacientes. As características pré-operatórias e intra-operatórias foram estatisticamente semelhantes, como demonstrado nas tabelas II e III.

Tanto o volume total de sangramento em 24h (p=0,001), quanto aquele indexado para a superfície corpórea (p=0,004) foram respectivamente maiores no grupo A1 (609,6 ± 395,8 ml; 331,8 ± 225,8 ml/m2) em relação ao grupo B1 (437,2 ± 315 ml; 241 ± 173,9 ml/m2). Embora a necessidade de transfusão não fosse significativamente diferente entre os grupos (p=0,1), a quantidade transfundida de concentrado de hemáceas foi maior no grupo A1 (p=0,01). Não houve diferença estatisticamente significativa em relação à quantidade transfundida de plasma fresco congelado, crioprecipitado, concentrado de plaquetas e a necessidade de revisão cirúrgica de hemostasia (tab. IV).

A figura 1 expressa a maior necessidade de transfusão de concentrado de glóbulos no grupo A1, em relação ao grupo B1. Esta diferença foi mais pronunciada quando foram utilizadas 3 ou mais unidades de concentrado de hemáceas por paciente.


Discussão

O sangramento no pós-operatório da cirurgia cardíaca continua sendo problemático, particularmente com o advento de procedimentos mais complexos, com períodos prolongados de circulação extracorpórea e intervenções em pacientes agudamente descompensados. O sangramento e a reexploração cirúrgica resultante, com frequente politransfusão associada, são responsáveis por elevação dos índices de morbidade e mortalidade em cirurgia cardíaca12,13.

Apesar da melhoria nos métodos de seleção de doadores, há um risco relacionado a transfusão de sangue e seus componentes, como infecções virais, indução de reações transfusionais de origem imunológica, e a supressão do sistema imune14.

O sangramento perioperatório está relacionado a lesão cirúrgica de vasos sanguíneos e defeitos dos mecanismos hemostáticos. A maioria destes últimos está ligada a exposição de elementos figurados do sangue ao circuito extracorpóreo. Comprovadamente, a circulação extra-corpórea causa alterações de hemostasia, relacionadas a redução do nível de fatores de coagulação, estimulação da fibrinólise, indução de plaquetopenia, coagulação intravascular disseminada e disfunção plaquetária, além de efeitos na heparina e protamina circulantes15.

Desta maneira, evitar o uso da circulação extracorpórea, teria teoricamente vantagens em relação ao sangramento no pós-operatório. Relatos recentes9,10 da literatura têm confirmado esta hipótese.

A cirurgia de revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea tem se destacado progressivamente no tratamento da insuficiência coronariana, com resultados excelentes8,16,17. Em meados da década de 90, movida pelas vantagens da cirurgia minimamente invasiva18, com recuperação mais rápida e superioridade estética, sua aplicabilidade restringia-se ao tratamento de lesões uniarteriais, restritas ao ramo interventricular anterior da artéria coronária esquerda. O desenvolvimento tecnológico, em especial o uso de estabilizadores19, aliado à experiência cirúrgica20, permitiu o tratamento de artérias posteriores do coração21 com segurança, ampliando a aceitação da técnica entre os cirurgiões e cardiologistas. Recentemente, devido a sugestão de que a revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea reduza a morbidade no tratamento cirúrgico da insuficiência coronariana, as indicações se expandiram para pacientes multiarteriais22, de alto risco23, renais crônicos24, idosos25 e com disfunção ventricular26.

O fato da revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea estar associada a menor morbidade é tema controverso27,28, porém a maioria dos autores defende a hipótese. O impacto em relação a custos hospitalares é evidente, estimulando ainda mais os estudos comparativos entre as técnicas. Nos últimos anos, a literatura tem sido enriquecida por várias casuísticas de diversos centros nacionais e internacionais, analisando o tema. Contudo, as limitações metodológicas desses estudos impedem que conclusões definitivas sejam alcançadas, havendo carência de estudos prospectivos, randomizados, com metodologia cuidadosa. A execução de um estudo destas características deveria incluir pacientes que tivessem características clínicas semelhantes, e que pudessem ser tratados por ambas as técnicas. Desde que as indicações da revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea têm sido ampliadas, os critérios de inclusão seriam difíceis de serem estabelecidos. Por outro lado, se os critérios de exclusão forem muito amplos, pela baixa incidência de complicações no pós-operatório, seriam necessários milhares de pacientes em cada grupo a fim de obter significância estatística.

A expansão nas indicações da revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea tem trazido repercussões no atendimento. Os estudos comparativos do final da década de 9023 demonstraram que os pacientes referidos para revascularização miocárdica com circulação extracorpórea, tradicionalmente, eram mais graves, em relação ao número de fatores de risco, extensão da aterosclerose coronariana e sistêmica, mais idosos, mais sintomáticos e propensos a operações de urgência. O cenário atual tem mudado drasticamente, e a nossa casuística reflete muito bem esta tendência. Os dois grupos foram considerados comparáveis, exceto pelo maior número de pontes no grupo com circulação extracorpórea, o que pode, indiretamente, indicar maior extensão da coronariopatia, já que seguimos por princípio o conceito de revascularização completa do miocárdio. Não houve diferenças em relação a presença de disfunção ventricular, reoperações de coronária, cirurgia de emergência, uso de artéria torácica interna, refletindo a reprodutibilidade da revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea em diversas situações clínicas.

As diferenças encontradas inicialmente entre os grupos puderam ser eliminadas pela seleção de um subgrupo com características pré e intra-operatórias semelhantes, o que enriqueceu os resultados desta casuística. Assim, houve maior sangramento e transfusão de concentrado de glóbulos no grupo com circulação extracorpórea. Não foram avaliadas as repercussões deste achado em relação a morbidade e mortalidade. Nader e cols.9, estudando retrospectivamente 2 grupos similares de pacientes, encontraram menor sangramento e transfusões no grupo revascularização miocárdica sem circulação extracorpórea. Atribuem este achado à heparinização parcial neste grupo. Em nossa opinião, o fator determinante por esta diferença seja as alterações de coagulação desencadeadas pela circulação extracorpórea. Embora não tivéssemos avaliado o tempo coagulação ativado no pós-operatório, comparando entre os dois grupos, o grupo sem circulação extracorpórea recebeu neutralização parcial da heparina, havendo teoricamente maior tendência a sangramento deste grupo se somente este fator fosse considerado.

Ascione e cols.10, em estudo prospectivo randomizado em grupos de baixo risco pré-operatório, encontraram sangramento 1,6 vezes maior no grupo com circulação extracorpórea do que no sem circulação extracorpórea. Menos de 20% dos pacientes deste último necessitaram de transfusão sanguínea, comparado a mais da metade do primeiro grupo. A repercussão desses resultados em relação a custos hospitalares foi significativa, concordante com outros estudos16. Todavia, apesar de terem encontrado menos transfusões no grupo sem circulação extracorpórea, Sabik e cols.28 tiveram custo direto 13% maior neste grupo, atribuído a custo de equipamentos e maior tempo cirúrgico.

As limitações do nosso estudo incluem a falta de randomização dos grupos, com critérios definidos de seleção dos pacientes. Houve ainda variabilidade de equipes cirúrgicas, implicando na técnica cirúrgica, de perfusão e, principalmente, na experiência dos auxiliares, com efeito direto sobre a revisão de hemostasia previamente ao fechamento do tórax. Além disso, as doses de heparina e protamina não foram uniformes nos dois grupos, podendo influenciar os resultados diretamente.

Conclui-se que a revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea apresenta vantagens em relação a revascularizaçào do miocárdio com circulação extracorpórea, em relação ao menor sangramento no pós-operatório e menor necessidade de transfusão de concentrado de glóbulos, e suas repercussões podem ser inúmeras, principalmente em relação a minimização de fatores mórbidos e de custos hospitalares. Outros fatores de morbidade deveriam ser analisados em estudos prospectivos randomizados, no sentido de definir o real papel da revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea no tratamento cirúrgico da insuficiência coronariana.

Recebido para Publicação em 17/8/03

Aceito em 3/12/03

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  • Endereço para Correspondência
    Fernando A. Atik
    Av. Chibaras, 626/101
    Cep 04076-003- São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Aceito
      03 Dez 2003
    • Recebido
      17 Ago 2003
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