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Terapia de células-tronco no infarto agudo do miocárdio, através de perfusão coronariana retrógrada: uma nova técnica

RELATO DE CASO

Terapia de células-tronco no infarto agudo do miocárdio, através de perfusão coronariana retrógrada. Uma nova técnica

Stans Murad-Netto; Rogério Moura; Luiz José Martins Romeo; Antônio Manoel Neto; Neison Duarte; Fernando Barreto; André Jensen; Roberto Fernandez Viña; Francisco Vraslovik; Andrin Oberdan; Frederico Benetti; Jorge Saslavsky; Marcelo Fernandez Viña; José Geraldo Amino

Rio de Janeiro, RJ

Instituto do Coração e da Criança do Rio de Janeiro - RJ, Fundacion Don Roberto Fernandez Viña/Centro Cardiovascular San Nicolas - Argentina, Georgetown University (Department of Oncology and Imunology) - Washington - EUA, Universidade Federal Fluminense - Niterói - RJ

Endereço para correspondência Endereço para Correspondência Stans Murad-Netto Av. Hildebrando de Araújo Góes, 600 Cep 22050-000 Rio de Janeiro E-mail: drstans@uol.com.br

Apresentamos nova técnica de infusão de células-tronco retrógrada pelo seio coronariano, em homem de 63 anos, com história familiar positiva de doença coronariana e antecedente de infarto agudo do miocárdio. O procedimento foi bem sucedido e o paciente saiu da UTI, 48h após sem complicações.

Células-tronco adultas retiradas da medula óssea estão sendo usadas no tratamento da isquemia e do infarto agudo do miocárdio, melhorando a função ventricular e/ou a perfusão miocárdica e/ou diminuindo o tamanho do infarto1-4.

Apresentamos uma nova técnica de infusão retrógrada de células-tronco pelo seio coronariano para tratamento do infarto agudo do miocárdio, utilizada pela primeira vez em seres humanos.

Duas vias de aplicação de células-tronco vêm sendo usadas: 1) infusão intracoronariana anterógrada. Giordano5 fez observações a respeito desta via de infusão: "o endotélio da microcirculação coronariana é contínuo e apresenta uma barreira à passagem de macromoléculas ao miocárdio"; outra área de possível resistência "é o segmento vascular entre a artéria onde se faz a infusão e o segmento venoso capilar; 2) via transendocárdica usando cateter NOGA e mapeamento eletromecânico para identificar o miocárdio viável, onde então as células mononucleares são injetadas6.

Introduzimos uma terceira via, a perfusão coronariana retrógrada. Demonstramos que, após injeção de uma solução de corante cardiogreen ou de material de contraste no seio coronariano e, particularmente, numa veia coronariana cuja artéria correspondente esteja obstruída, o fluxo se dirige com grande facilidade e maior volume de forma retrógrada, para a área capilar irrigada por esta artéria (baixa resistência) e pouco ou nada indo à área capilar das artérias coronárias normais não ocluidas7,8. Seguindo estas observações, a equipe de hemodinâmica iniciou o tratamento do infarto do miocárdio com injeção de células-tronco de medula óssea, de forma retrógrada, através do seio coronariano.

Relato de Caso

Paciente do sexo masculino, 63 anos, obeso, diabético, hipertenso, dislipêmico e com história familiar positiva para doença coronariana e antecedente de infarto do miocárdio em parede inferior há 4 anos. Há 12 dias apresentou quadro de infarto agudo do miocárdio em parede anterior, com evolução de 14h. Foi submetido à angioplastia com colocação de stent com sucesso, mas, começou a queixar-se de cansaço aos pequenos esforços e dispnéia paroxística noturna.

O eletrocardiograma mostrou bloqueio de ramo esquerdo do 3º grau; o ecocardiograma demonstrou aumento cavitário, acinesia anterior e inferior, com fração de ejeção de 24%. A cintilografia miocárdica com tálio 201 exibiu fibrose anterior e inferior. O cateterismo cardíaco evidenciou ventrículo com volumes, significantemente aumentados às custas de acinesia anterior e inferior, discinesia apical. Na angiografia, a fração de ejeção era de 25% e a Pd2 do ventrículo esquerdo de 34mmHg. A artéria coronária direita mostrava lesão difusa em seu segmento proximal e oclusão distal. Tronco da coronária esquerda sem obstrução, artéria circunflexa com irregularidades parietais e ramos marginais ocluídos, opacificando-se por homocolaterais. Artéria descendente anterior difusamente lesada a partir da junção dos segmentos médio e distal. O 1º ramo diagonal de médio calibre mostrava lesão severa na origem.

Face ao quadro descrito, foi proposto ao paciente e seus familiares a possibilidade da injeção de células-tronco, derivadas da medula óssea através da veia descendente anterior por via retrógrada, a fim de promover miogênese e angiogênese. Obtido consentimento do paciente e do comitê de ética subordinado ao governo e Ministério da Saúde Argentino para realização da técnica.

Sob anestesia geral, foi feita punção da crista ilíaca e aspiração de medula óssea.

A camada superior (concentrado de leucócitos, contendo mononucleares) foi separada dos eritrócitos por centrifugação e as células vermelhas reinfundidas no paciente. Posteriormente, a camada leucocitária foi processada para obter um enriquecimento em células mononucleares, pelo método de separação por gradiente de densidade (FICOL-HYPAQUE). O volume de recontagem foi satisfatório (13x106). O procedimento foi realizado de forma totalmente asséptica e a quantificação das células positivas foi feito pelo marcador de superfície celular CD34+, correlacionado com a pluripotencialidade e capacidade de diferenciação de células precursoras da subpopulação.

Grande quantidade de sangue da medula óssea, foi extraída com o objetivo de obter-se suficiente quantidade de células-tronco, evitando-se o risco de contaminação e diferenciação celular.

Técnica de administração das células-tronco seguiu as fases: 1) punção da veia jugular externa direita, seguida de colocação de um introdutor tamanho 8F; 2) infusão de 5.000UI de heparina; 3) cateterismo do seio coronariano, usando cateter guia Amplatz 8; 4) corda guia 0,014 e cateter balão tamanho 50x20 foram introduzidos avançando até o segmento distal da veia coronariana descendente anterior; 5) um cateter balão foi posicionado e inflado a 8 atm, no terço médio da veia coronariana descendente anterior e a corda guia retirada; 6) infusão de 40ml de células-tronco com pressão de 6 atm, através do lúmen do cateter balão, por 5 minutos. Não houve efeitos adversos; 7) o balão permaneceu insuflado até 15 minutos após o término da infusão de células-tronco; 8) após a desinsuflação do balão uma injeção de contraste foi realizada. Foi demonstrada predominância da opacificação do segmento médio e distal da veia coronariana descendente anterior e seus ramos diagonais; 9) retirada do cateter balão e cateter guia. O paciente permaneceu na UTI por 48h, sem complicações (fig. 1, 2, 3 e 4).





Discussão

Iniciamos nossos estudos sobre retroperfusão coronariana através do seio coronariano, em 1962, no Serviço do Dr. Gofredo Gensini, em Syracuse NY. Em abril de 1962, Murad-Netto, Di Giorgi e Gensini G. apresentaram no 22nd Annual Clinical Meeting do American College of Chest Physicians, Syracuse, NY, um filme, "Motion picture studies of the coronary venous circulation", resultante de um trabalho experimental, em 25 cães com tórax aberto cirurgicamente, onde a artéria descendente anterior era ocluída em sua origem ao mesmo tempo em que um cateter de duplo lúmen, o proximal conectado a um balão e o distal livre para injeção de contraste ou do corante cardiogreen, era posicionado no seio coronariano. O balão era posicionado e inflado após a desembocadura da veia descendente posterior, ocluindo o seio coronariano e, simultaneamente, o corante era injetado através do lúmen livre do cateter, mostrando a distribuição predominante do corante para a área isquêmica da descendente anterior ocluída. Quando a injeção era realizada na veia descendente anterior, a distribuição para a área isquêmica tornava-se mais evidente. Essas observações eram filmadas pelo aparelho convencional de cineangiocardiografia.

Com a mesma intenção de promover revascularização miocárdica, os autores injetaram em seio coronariano H2O2 que tornava vermelho o sangue venoso coronariano, mas produzia fibrilação ventricular nos cães.

Gensini e cols7 concluíram: "que os estudos de retroperfusão coronariana permitiam a avaliação da circulação venosa coronariana, sendo a técnica inócua. O fácil acesso ao seio coronariano, por cateterismo e, conseqüentemente, aos capilares e ao miocárdio por injeção retrógrada, oferecia uma via de acesso também para novos métodos de diagnóstico e de terapêutica com eletrólitos e medicamentos". Posteriormente, em maio de 1962, este mesmo trabalho foi apresentado no Eleventh Annual Convention of the American College of Cardiology7.

Em 1973, Murad-Neto apresentou no "II Simpósio Nacional sobre Aterosclerose" em São Paulo, Brasil, sua experiência em 20 pacientes com graus variáveis de obstrução coronariana, nos quais foram realizadas injeções de contraste em seio coronariano, depois de ocluido por balão, mostrando a distribuição predominante do mesmo para as áreas onde a obstrução coronariana era significativa. A opacificação era ainda mais evidente quando ocluída também, simultaneamente, a veia cava inferior8. Em nenhum dos casos estudados houve qualquer tipo de complicação.

Iniciamos o uso da via retrógrada através do seio coronariano para administração de células-tronco no Serviço do Dr. Fernandez Viña, na Argentina. Até este momento realizamos esta técnica de transplante de células-tronco em dois pacientes com infarto agudo do miocárdio.

Concluímos que a terapia de infusão de células-tronco para o tratamento do infarto agudo do miocárdio através da perfusão retrógrada da veia coronária é viável e delineia a possibilidade de que o sistema venoso coronariano, facilmente acessível por cateterismo direito, possa ser uma via de entrada para a terapêutica do miocárdio isquêmico e para outros fins diagnósticos e terapêuticos, visando o acesso de medicamentos ao tecido miocárdico.

Referências

1. Körbling M, Estrov Z. Adult stem cells for tissue repair. A new therapeutic concept? N Engl J Med. 2003; 349:570-82.

2. Strauer BE, Brehm M, Zeus T, et al. Repair of infarcted myocardium by autologous intracoronary mononuclear bone Marrow cell transplantation in humans. Circulation. 2002; 106: 1913-8.

3. Stamm C, Westphal B, Kleine H-D, et al. Autologous bone-Marrow stem-cell transplantation for myocardial regenaration. Lancet. 2003; 361:45-6.

4. Assmus B, Schachinger V, Tempe C, et al. Transplantation of progenitor cells and regeneration enhancement in acute myocardial infarction. Circulation. 2002; 106: 3009-17.

5. Giodano FJ. Retrograde coronary perfusion: a superior route to deliver therapeutics to the heart? J Am Coll Cardiol. 2003; 42:1129-31.

6. Perin PC, Dohman HFR, Borojevic R, et al. Transendocardial autologous bone marrow cell transplantation for severe, chronic ischemic heart failure. Circulation. 2003; 107: 2294 -302.

7. Gensini G, Di Giorgi S, Murad S. The coronary circulation: a roentgenographic study Booth # 91 Eleventh Annual Convention. The American College of Cardiology, 1962 Denver, Colorado.

8. Murad – Netto S. Importância do cateterismo do seio coronário no diagnóstico da insuficiência coronária.II Simpósio Nacional sobre aterosclerose coronária. São Paulo,1973 Editor J. Eduardo M.R. Sousa pg 63-7.

Recebido para Publicação em 05/01/2004

Aceito em 27/05/2004

  • Endereço para Correspondência
    Stans Murad-Netto
    Av. Hildebrando de Araújo Góes, 600
    Cep 22050-000
    Rio de Janeiro
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2004
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