Acessibilidade / Reportar erro

Cardiologia baseada em evidência

PONTO DE VISTA

Cardiologia baseada em evidência

Edgar Guimarães Victor e André de Marco

Recife, PE

Pós-graduação de Medicina Interna – UFPE

Endereço para Correspondência Endereço para Correspondência Edgar Victor Av. Beira Mar 138/101 54160-230 Jaboatão – PE E-mail: evictor@truenet.com.br, edgardvictor@cardiol.br

O conceito de medicina baseada em evidência recomenda o uso consciente e crítico dos melhores dados científicos disponíveis no auxílio da tomada de decisões sobre a condução individual de cada paciente. O seu objetivo é o de promover uma melhor prática da medicina, com suporte em evidências atualizadas e consistentes, para resolução mais rápida e eficiente das enfermidades, visando melhor qualidade de vida dos pacientes. Neste processo há um estreito relacionamento entre a experiência clínica pessoal do médico, as evidências geradas por pesquisas sistemáticas e as necessidades do paciente como indivíduo.

Relatos de medicina baseada em evidência (MBE) datam da antiga medicina chinesa. Considere-se, porém, o tempo medido em séculos, que marca as diferenças entre a medicina inicialmente associada a rituais místicos da prática moderna da medicina baseada em evidência.

Os princípios de respeito ao conhecimento adquirido haviam sido estabelecidos pela escola de Hipocrates, na Grécia, que salientava ainda a preservação dos valores da ética e do talento, no exercício da profissão, e enumerou como premissas: 1) as doenças são fenômenos naturais, não místicos; 2) o exame do paciente deve consistir da observação sistematizada das suas queixas, dos sinais e sintomas em conjunto ao exame físico; 3) os preceitos da ética serão sempre respeitados.

Esses fundamentos constituem, ainda hoje, a base da profissão médica.

Na cardiologia baseada em evidência, como em qualquer outra área de concentração em medicina, são seguidos princípios hoje consolidados e internacionalmente aplicados. Considere-se, entretanto, que as evidências referenciadas da cardiologia de hoje provêm de contribuições pontuais, através dos séculos. De idéias, hipóteses, descobertas, invenções e achados, desde a medicina renacentista de Vesalius (1543), de William Harvey (1628), de Heberden (1772), de Stokes (1846), de Einthoven (1903), até o acúmulo exponencial de conhecimentos da segunda metade do século XX. Na cardiologia, a partir dos anos 80, ocorreu uma volumosa série de estudos randomizados, todos designados por acrônimos, que contribuíram para ressaltar a validade de dados obtidos, transformados como evidências, na evolução de conhecimentos, o que ocorreu, por exemplo, com a série ISIS , desde o ISIS-1 (First International Study of Infarct Survival - 1986). Este estudo envolveu 16000 pacientes para avaliar o efeito do betabloqueador atenolol, sobre a mortalidade, na primeira semana e em 20 meses, pós-infarto do miocárdio. A evidência dos seus resultados mostrou a importância do uso do medicamento e em que circunstâncias não deveriam ser usados os betabloqueadores no infarto agudo. A seqüência de estudos deste tipo, com acrônimos tão diversos, trouxe evidências não só em relação a medicamentos, como a procedimentos de cardiologia não invasiva, na cardiologia intervencionista, em técnicas cirúrgicas e de abordagem de doenças nos diversos campos da cardiologia.

A influência da medicina baseada em evidência, consolidada há pouco mais de 10 anos (Guyatt, 1992), cresceu rapidamente, no mesmo ritmo vertiginoso da produção de artigos médicos científicos, em periódicos e livros texto, mas, sobretudo, graças à explosão da internet. O processo de mudança nos conceitos clássicos da prática médica pretendeu atender às necessidades de uma classe de profissionais, esmagada por ofertas maciças de novos conhecimentos, em contrapartida a jornadas de trabalho longas, extenuantes, quase sempre mal recompensadas. Ao médico assoberbado por plantões e pela necessidade de múltiplos empregos, resta pouco tempo para atualizações e dedicação à educação continuada. Na outra ponta dessa linha, encontra-se o perigo do uso cego de protocolos e diretrizes da medicina baseada em evidência, produzidos pelas sociedades médicas, por entidades do governo, por grupos hospitalares e até mesmo pelas operadoras de seguro. A aplicação de diretrizes e protocolos, dissociada de capacidade critica ou de condições de avaliação mais profunda, por quem a utiliza, tem merecido uma jocosa comparação com a aplicação de receitas de cozinha. É necessário ter-se em mente que a medicina baseada em evidência propõe uma estratégia de busca consciente de informações, conforme a demanda. Os problemas identificados em cada paciente, durante as consultas, devem ser transformados em autoperguntas, sejam a respeito do diagnóstico, da forma de tratamento, do prognóstico e de como realizar a prevenção - isto feito de forma simples e concisa, com propósito prático. A partir daí, o profissional irá pesquisar, na literatura pertinente, informações qualificadas que possam dar respostas às suas perguntas. As evidências encontradas devem ser, então, avaliadas de forma crítica, a fim de ser conferida sua validade frente àquela particular situação clinica.

A medicina baseada em evidência vem sendo incluída nos currículos de graduação médica em todo o mundo, seja de forma direta, através de disciplina responsável por ensinar a aplicação de seus princípios, ou através de clubes de revista e discussões de casos clínicos. Com a utilização generalizada da medicina baseada em evidência, discussões têm ocorrido no que diz respeito à segurança e qualidade de vida do paciente quando da aplicação dos conhecimentos gerados, inclusive aqueles contidos em diretrizes e protocolos. A aplicação dos conhecimentos deveria ser realizada com foco especial à fase de análise crítica das informações, observando a adequação à situação de seu paciente, não só do ponto de vista clínico, mas biopsico-social. Um estudo conduzido na década de 60 apresentou a condição de saúde de 1000 indivíduos de uma comunidade. Os dados concluíram que 75% apresentavam alguma enfermidade, mas que apenas 25% necessitariam de acompanhamento médico em nível primário. Desse grupo, apenas 1% foi referenciado para especialistas ou hospitais da região e 0,1% foi encaminhado para instituições terciárias e de ensino, salientado-se, ainda, que os grandes estudos randomizados e controlados são, em sua maioria, conduzidos em populações de hospitais terciários, tornando-se evidente a dificuldade de importar incondicionalmente as suas conclusões para os pacientes do dia a dia. Desta forma, a experiência clínica, o bom senso e o talento de cada profissional deveriam estar presentes na importante tarefa de trazer a evidência científica à realidade da prática clínica.

Como os elementos principais da medicina baseada em evidência apóiam-se em dados estatísticos, a visão humana e os parâmetros subjetivos do bom senso e do talento tendem a ser desvalorizados. Se a medicina baseada em evidência realmente melhora o cuidado ao paciente e reduz os desfechos de morbimortalidade é uma pergunta que não pode ser concretamente respondida, à falta de pesquisas conduzidas com este intuito, evidentemente, por motivos éticos. Não seria permissível, por exemplo, durante o desenvolver de um projeto de pesquisa, privar o grupo controle dos benefícios comprovados de uma determinada medicação. Apesar desta ressalva, estudos populacionais randomizados em diversas áreas de concentração da medicina apontam para os melhores resultados em pacientes tratados de uma forma baseada em evidência.

Estabelecer uma relação humana, ter contato direto com o doente e seus familiares, ver, ouvir, palpar, auscultar, sentir o paciente, intervir de forma correta, ética: tudo faz parte de um conjunto obrigatório de valores na profissão do médico. Associar esses princípios à prática da medicina baseada em evidência significa, simplesmente, obediência à medicina hipocrática de Kos.

Referências

1. Hersh WR, Hickam DH. How Well Do Physicians Use Electronic Information Retrieval Systems? A Framework for Investigation and Systematic Review JAMA. 1998; 280: 1347-1352.

2. Hatala R, Guyatt G. Evaluating the teaching of evidence-based medicine. JAMA. 2002; 288: 1110-1112.

3. Rosser WW. Application of evidence from randomised controlled trials to general practice. LANCET. 1999; 353 :661-664.

4. Porto, CC & Dantas F. AC = e [ BEM + (MBV)2 ]. Uma equação matemática para a arte clínica. Rev Soc Brás. CI. Med. 2003; 02: 33-34

5. Every NR, Hochman J, Becker R, Kopeckys, Cannon CPA. Critical Pathway - A Review. Circulation. 2000;101: 461-5.

6. Wolff SH. The need for perspective in evidence – based medicine. JAMA. 1999; 282 : 2358 – 63.

7. What Evidence ? - Editorial Comment. ACC Current J. Review. 2000; 9: 95-97.

  • Endereço para Correspondência
    Edgar Victor
    Av. Beira Mar 138/101
    54160-230
    Jaboatão – PE
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2004
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br