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Caso 05/2004 - Morte súbita precedida por dispnéia intensa em mulher de 70 anos portadora de hipertensão e doença coronariana

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 05/2004 - Morte súbita precedida por dispnéia intensa em mulher de 70 anos portadora de hipertensão e doença coronariana. (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP)

Carlos Eduardo Batista de Lima; Luiz Alberto Benvenuti

São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Av. Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 44 São Paulo - SP e-mail: carloseblima@ig.com.br

Mulher de 70 anos de idade, com dispnéia intensa, deu entrada no Hospital, apresentando há 6 anos, dor precordial irradiada para membro superior esquerdo, desencadeada por esforços moderados, acompanhada de dispnéia e aliviada por repouso. Com uso de medicação (mononitrato de isossorbida 40mg, atenolol 100mg, ácido acetilsalicílico 200mg e de enalapril 20mg), houve melhora dos sintomas, porém, aos 66 anos de idade, foi encaminhada ao Instituto do Coração. Sabia ser portadora de hipertensão arterial desde os 58 anos e era ex-tabagista desde os 57 anos de idade.

O exame físico (12/02/98) revelou pulso regular, 64 bpm, pressão arterial de 200/90 mm Hg e exame dos pulmões normal. O exame do coração revelou ritmo cardíaco regular, bulhas normofonéticas e sopro sistólico +/4 em área aórtica com irradiação para fúrcula. O exame do abdome foi normal, e não havia edema de membros. Os pulsos femorais eram de baixa amplitude, os demais pulsos dos membros inferiores não eram palpáveis, e havia sopro sistólico em femorais.

Na mesma data o eletrocardiograma revelou ritmo sinusal, freqüência cardíaca 46 bpm, intervalo PR 171 ms, duração de QRS de 105 ms. Havia critérios de sobrecarga atrial e ventricular esquerda (onda S em V2 de 26 mm e onda R em V5 de 36 mm), além de área eletricamente inativa em parede inferior. As ondas T foram negativas de V3 a V6 (fig 1). Havia discreta cardiomegalia à radiografia de tórax.


Os exames laboratoriais (13/02/98) revelaram hipercolesterelemia e hipertrigliceridemia (tab. I).

Foram feitos diagnósticos de angina de peito por aterosclerose coronariana, insuficiência arterial periférica, hipertensão arterial e dislipidemia, e ajustada a medicação com aumento da dose de enalapril para 40 mg diários e a associação hidroclorotiazida/amilorida (50mg/5mg). Foi indicada a cineangiocoronariografia.

O estudo hemodinâmico (20/02/98) revelou pressões do ventrículo esquerdo (sistólica/diastólica inicial/diastólica final) de 200/-/10 mmHg e de aorta (sistólica/diastólica/média) de 200/80/120 mmHg. A cineangiocoronariografia revelou oclusão da artéria coronária direita no terço médio, a qual recebia colaterais das outras artérias. Havia irregularidades no ramo interventricular anterior da artéria coronária esquerda, lesão proximal de 60% do ramo circunflexo, lesão de 70% no 1° marginal e suboclusão do 2° ramo marginal esquerdo. A ventriculografia esquerda revelou hipocinesia acentuada de parede inferior.

Foi recomendado o tratamento clínico-medicamentoso. O atenolol foi substituído por diltiazen 60 mg diários, em razão da insuficiência vascular periférica, e acrescentados 10 mg de pravastatina.

Nova avaliação laboratorial (abril 1998) revelou baixos níveis de HDL-colesterol (tab. I). A angina de peito cedeu com esse tratamento, contudo persistiram as queixas de claudicação intermitente e, inicialmente, houve dificuldade no controle da pressão arterial. Hipotireoidismo foi detectado em avaliação laboratorial (fev 2000): TSH de 9,3 UI/ml, T3 de 1 ng/ml, T4 de 5,4 ng/dl.

O eletrocardiograma de 14/03/02 não revelou alteração significativa em relação ao exame de 1998 (fig 2) e a reavaliação laboratorial (set 2002), controle adequado da dislipidemia (tab. I).


Em novembro de 2002, acordou à 1:30h da manhã, com intensa falta de ar. Telefonou para o Serviço de Resgate do Corpo de Bombeiros da Cidade de São Paulo pedindo socorro. Seguiu-se parada cardiorrespiratária. Foram iniciadas as manobras de reanimação e trazida ao hospital pela ambulância do Resgate. Deu entrada ao pronto socorro às 3h em parada cardiorrespiratória em assistolia, e constatado óbito.

Aspectos Clínicos

O caso em questão apresenta-nos uma mulher de 70 anos de idade, com antecedentes de doença arterial coronariana estabelecida com infarto do miocárdio prévio, de idade indeterminada, insuficiência vascular periférica, hipertensão arterial sistêmica grave e dislipidemia que procurou assistência médica com história de dispnéia importante, enquanto dormia, vindo a falecer logo em seguida, configurando quadro de morte súbita de etiologia a esclarecer. A presença de sintomas prévios, no caso dispnéia, auxilia nos, direcionando-nos às causas básicas que fazem parte do seu diagnóstico diferencial, como o edema agudo dos pulmões, arritmias cardíacas e tromboembolismo pulmonar.

As principais condições cardiovasculares associadas à morte súbita são doença aterosclerótica coronariana, miocardiopatia dilatada idiopática, cardiomiopatia hipertrófica, displasia arritmogênica de ventrículo direito, síndrome do QT longo e síndrome de Brugada1-4.

No caso em questão esteve presente cardiopatia estrutural secundária a infarto do miocárdio prévio, determinada pelas alterações eletrocardiográficas com área eletricamente inativa inferior e pelo cateterismo cardíaco com oclusão total de artéria coronária direita e hipocinesia acentuada de parede inferior, sendo substrato anatômico para arritmias cardíacas, seja como mecanismo de reentrada em área de fibrose miocárdica ou devido à possível disfunção ventricular. A maioria dos casos de morte súbita é atribuída a arritmias cardíacas, sendo minoria as bradiarritmias ou taquicardia ventricular sustentada monomórfica5.

Outras condições clínicas podem desencadear morte súbita, como ruptura de aneurisma de aorta, ruptura de aneurisma subaracnóideo, ruptura de parede ventricular ou tamponamento cardíaco e tromboembolismo pulmonar maciço.

A causa dominante de morte súbita na população adulta, em países desenvolvidos, é a morte de origem cardíaca por doença aterosclerótica coronariana, principalmente devido à ocorrência de arritmias ventriculares ou infarto agudo do miocárdio, sendo que episódios de fibrilação ventricular respondem por 85% dos pacientes que apresentam colapso súbito cardiovascular1. A nossa paciente, primeiramente, apresentou mal estar súbito associado a dispnéia, proporcionando tempo suficiente para pedir ajuda, o que afasta a possibilidade de fibrilação ventricular, como evento primário, porém um ritmo mais bem tolerado de taquiarritmia ventricular poderia ter ocorrido com conseqüente degeneração para fibrilação ventricular. A incidência de morte súbita é de aproximadamente um em 100.000 na população geral, entretanto essa freqüência varia com a idade, sexo e presença ou ausência de doença cardiovascular5.

Morte súbita é manifestação comum e pode ser a primeira manifestação clínica de doença aterosclerótica coronariana e representa aproximadamente 50% do total da mortalidade por doença cardiovascular nos países industrializados5. Como a maioria dos casos de morte súbita ocorre em indivíduos com múltiplos fatores de risco para doença aterosclerótica ou sintomas isquêmicos, a diminuição da incidência desses eventos pode ser obtida com diminuição da prevalência de doença aterosclerótica coronariana na população geral6,7. A cardiomiopatia dilatada idiopática é responsável por, aproximadamente, 10% de todos os casos de morte súbita cardíaca na população adulta de países industrializados1.

Em pacientes com cardiomiopatia hipertrófica uma história familiar de morte súbita ou taquicardia ventricular sustentada, síncope recorrente, múltiplos episódios de taquicardia ventricular não sustentada e hipertrofia de ventrículo esquerdo acentuada servem como marcadores de alto risco para morte súbita cardíaca8. No caso atual, apesar dos sinais eletrocardiográficos sugestivos de hipertrofia de ventrículo esquerdo acentuada, a ausência dos outros dados e a idade da paciente tornaram esse diagnóstico pouco provável9.

Displasia arritmogênica de ventrículo direito é cardiomiopatia hereditária associada à morte súbita cardíaca, devendo ser lembrada no diagnóstico diferencial. O achado eletrocardiográfico mais comum é inversão de onda T em derivações precordiais anteriores e o mais característico, porém menos comum, é o achado de prolongamento do complexo QRS com onda Epsilon nas derivações precordiais direitas. Tipicamente, apresenta-se em adolescentes ou adultos jovens com taquiarritmias ventriculares ou falência cardíaca. A taquicardia ventricular monomórfica com padrão de bloqueio de ramo esquerdo é a mais comumente observada10.

A síndrome do QT longo congênito é doença familiar geneticamente determinada, que se caracteriza por intervalo QT prolongado e, tipicamente, por arritmias ventriculares graves mediadas por estresse, sendo a síncope ou morte súbita a apresentação mais comum, ocorrendo durante a infância ou adolescência11.

A dissecção de aorta é doença pouco comum, mas potencialmente catastrófica, devendo ser lembrada neste caso devido à presença de fatores predisponentes, como doença aterosclerótica e hipertensão arterial, porém a ausência de dor torácica torna esse diagnóstico improvável

O tromboembolismo pulmonar é uma doença de alta incidência e elevada taxa de mortalidade, e a confirmação do diagnóstico a principal dificuldade na sua abordagem. Menos de 30% dos pacientes que falecem por tromboembolismo pulmonar têm seu diagnóstico realizado em vida12. Em caso de tromboembolismo pulmonar maciço o sintoma predominate é a dispnéia acompanhada de hipotensão grave com necessidade de uso de aminas vasopressoras.

A maioria dos casos de morte súbita, comumente, ocorre numa população de pacientes sem infarto do miocárdio, porém a prevenção primária, a detecção e tratamento precoce de doença aterosclerótica coronariana pode reduzir significativamente a morte súbita cardíaca. Assim, destaca-se a importância da estratificação de risco em uma população de pacientes com doença cardiovascular pré-estabelecida, e estabelecimento de intervenções para redução do risco de morte.

(Dr. Carlos Eduardo Batista de Lima)

Hipóteses diagnósticas - 1) morte súbita de origem cardíaca: arritmia cardíaca complexa, taquicardia ventricular seguida de fibrilação ventricular; ou infarto agudo do miocárdio seguido por edema agudo pulmonar; 2) emergência hipertensiva seguida por edema agudo pulmonar; 3) tromboembolismo pulmonar maciço.

(Dr. Carlos Eduardo Batista de Lima)

Necropsia

O coração pesou 630g, notando-se intensa hipertrofia ventricular esquerda, sem dilatação cavitária. A hipertrofia era mais proeminente no septo ventricular, que mediu 2,3cm de espessura, comparado à parede livre, que mediu 1,8cm. Havia pequenas áreas focais de fibrose dispersas pelo miocárdio do ventrículo esquerdo, principalmente na região subendocárdica e cicatriz de pequeno infarto em parede posterior (fig. 3A). A via de saída do ventrículo esquerdo apresentava-se angustiada pela hipertrofia, não havendo entretanto espessamento endocárdico nessa região (fig. 3B). As artérias coronárias apresentavam aterosclerose significativa, com trombose antiga oclusiva da coronária direita (fig. 4A) e obstrução de 60% da artéria circunflexa. As valvas cardíacas não apresentavam anormalidades. O exame histológico do miocárdio detectou hipertrofia de cardiomiócitos, com desarranjo em áreas focais, não extensas (fig. 4B), e confirmou a presença de áreas focais de fibrose na região subendocárdica e na parede posterior do ventrículo esquerdo. Os rins eram atróficos, pesando 75g o direito e 70g o esquerdo, com aterosclerose de ramos arteriais parenquimatosos, esclerose de raros glomérulos e arterioloesclerose hialina (fig. 5A); os pulmões pesavam 1.185g em conjunto, demonstrando extenso edema agudo alveolar (fig. 5B). Havia ainda significativa aterosclerose da aorta, com numerosas placas calcificadas e ulceradas. A glândula tireóide não foi examinada.







(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Diagnósticos anatomopatológicos - Cardiopatia hipertensiva; aterosclerose sistêmica; cardiopatia isquêmica aterosclerótica; nefroesclerose benigna; edema agudo dos pulmões (causa terminal do óbito).

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Comentários

Trata-se de portadora de hipertensão arterial sistêmica, com repercussões morfológicas cardíacas (intensa hipertrofia ventricular esquerda) e renais (nefroesclerose benigna), associada a doença isquêmica aterosclerótica do coração, caracterizada pela presença de obstruções coronarianas, miocardioesclerose e pequeno infarto cicatrizado do ventrículo esquerdo. É bem sabido que a hipertensão arterial, e dislipidemia, constituem fator de risco para o desenvolvimento de aterosclerose severa, como no presente caso.

É interessante notar nesta paciente a presença de intensa hipertrofia ventricular esquerda, com assimetria septal, impondo-se o diagnóstico diferencial com a cardiomiopatia hipertrófica, cujo diagnóstico anatomopatológico baseou-se no achado de hipertrofia ventricular esquerda sem causa aparente, muitas vezes assimétrica, associada a presença de extensas áreas de desarranjo histológico dos cardiomiócitos13. Nenhum desses critérios esteve presente neste caso. Assim, o desarranjo histológico dos cardiomiócitos era focal e a intensa hipertrofia ventricular esquerda pode ser explicada pela sobrecarga hemodinâmica secundária à hipertensão arterial sistêmica, de difícil controle. Quanto ao aspecto assimétrico da hipertrofia, com maior espessura de um segmento ventricular, comparado aos demais, esse achado já foi relatado em 34% dos pacientes com intensa hipertrofia ventricular esquerda de etiologia hipertensiva e, portanto, não é exclusivo da cardiomiopatia hipertrófica14.

O edema agudo dos pulmões, causa terminal do óbito, foi provavelmente secundário à disfunção diastólica ventricular induzida pela intensa hipertrofia, talvez agravada por crise hipertensiva. Apesar da existência de doença isquêmica do coração, não encontramos evidências de infarto agudo do miocárdio.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Referências

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Editor da Seção: Alfredo José Mansur - e-mail: ajmansur@incor.usp.br

Editores Associados: Desidério Favarato - e-mail:dclfavarato@incor.usp.br, Vera Demarchi Aiello - e-mail: anpvera@incor.usp.br

  • Endereço para correspondência

    Av. Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 44
    São Paulo - SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2004
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