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A depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão não altera a resposta cardíaca à elevação da freqüência de contrações

Resumos

OBJETIVO: Analisar a influência da depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão (DMPIR) sobre os efeitos inotrópico e lusitrópico promovidos pela freqüência cardíaca (FC). MÉTODOS: Nove preparações de coração isolado de cães nutrido pelo sangue arterial de um outro cão e contraindo isovolumetricamente tiveram a freqüência cardíaca elevada de 60 bpm a 200 bpm, em etapas de 20 bpm. Foram avaliadas as variáveis antes (C) e depois (D) da isquemia (15 min) e reperfusão (30 min): a pressão desenvolvida durante a contração (PD), sua 1ª derivada positiva (+dP/dt) e negativa (-dP/dt), o tempo de pressão máxima (TPM), a pressão de repouso (Pr) e o tempo para a pressão desenvolvida regredir em 90% de seu valor máximo (TR90%). RESULTADOS: Os efeitos estimulantes da elevação da FC sobre o inotropismo e o relaxamento foram semelhantes em C e em D: houve aumento dos valores da +dP/dt, redução do TPM, acentuação da -dP/dt e diminuição do TR90%. A PD não sofreu alteração e a Pr se elevou. CONCLUSÃO: Os resultados confirmaram o efeito inotrópico positivo da elevação da FC (efeito Bowditch) e a ação depressora da isquemia/reperfusão. Evidenciaram ainda que a DMPIR não altera a ação estimulante do efeito Bowditch. Os resultados se adequam ao conceito vigente de que a DMPIR não compromete a cinética miocárdica do cálcio, favorecendo, a hipótese prevalente de que o decaimento da capacidade contrátil pós-isquemia/reperfusão depende de redução da responsividade dos miofilamentos ao cálcio.

depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão; efeito Bowditch; freqüência cardíaca; função sistólica; função diastólica


OBJECTIVE:To assess the influence of the postischemia/reperfusion stunned myocardium (PIRSM) on the inotropic and lusitropic effects of heart rate (HR). METHODS: Nine preparations of isolated dog hearts in isovolumic contraction and nourished by the arterial blood of another dog underwent heart rate elevation from 60 bpm to 200 bpm, in 20-bpm stages. The following variables were assessed before (B) and after (A) ischemia (15 min) and reperfusion (30 min): the pressure developed during contraction (PD), its first positive (+dP/dt) and negative (-dP/dt) derivative, the time of maximum pressure (TMP), the pressure at rest (Pr), and the time necessary for the developed pressure to decrease by 90% of its maximum value (time for relaxation - TR90%). RESULTS: The stimulating effects of HR elevation on inotropism and relaxation were similar before and after ischemia/reperfusion as follows: +dP/dt values increased, TMP decreased, -dP/dt values were intensified, and TR90% decreased. The values of PD did not change, and Pr increased. CONCLUSION: The results confirmed the positive inotropic effect of HR elevation (Bowditch effect) and the depressive action of ischemia/reperfusion. They also evidenced that PIRSM does not alter the stimulating action of the Bowditch effect, in accordance with the current concept that PIRSM does not impair calcium myocardial kinetics, favoring the prevalent hypothesis that the decrease in the contractile capacity after ischemia/reperfusion depends on the reduction of the myofilament responsiveness to calcium.

postischemia/reperfusion stunned myocardium; Bowditch effect; heart rate; systolic function; diastolic function


ARTIGO ORIGINAL

A depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão não altera a resposta cardíaca à elevação da freqüência de contrações

Orlando Sant'Ana Jr; Roberto J. Nogueira; Neif Murad; Antonio Carlos Lopes; Paulo J. F. Tucci

São Paulo, SP

Fisiologia Cardiovascular, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Paulo J. F. Tucci Rua Estado de Israel, 181/94 Cep 04022-000 - São Paulo - SP E-mail: tucci@fcr.epm.br

RESUMO

OBJETIVO: Analisar a influência da depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão (DMPIR) sobre os efeitos inotrópico e lusitrópico promovidos pela freqüência cardíaca (FC).

MÉTODOS: Nove preparações de coração isolado de cães nutrido pelo sangue arterial de um outro cão e contraindo isovolumetricamente tiveram a freqüência cardíaca elevada de 60 bpm a 200 bpm, em etapas de 20 bpm. Foram avaliadas as variáveis antes (C) e depois (D) da isquemia (15 min) e reperfusão (30 min): a pressão desenvolvida durante a contração (PD), sua 1ª derivada positiva (+dP/dt) e negativa (—dP/dt), o tempo de pressão máxima (TPM), a pressão de repouso (Pr) e o tempo para a pressão desenvolvida regredir em 90% de seu valor máximo (TR90%).

RESULTADOS: Os efeitos estimulantes da elevação da FC sobre o inotropismo e o relaxamento foram semelhantes em C e em D: houve aumento dos valores da +dP/dt, redução do TPM, acentuação da —dP/dt e diminuição do TR90%. A PD não sofreu alteração e a Pr se elevou.

CONCLUSÃO: Os resultados confirmaram o efeito inotrópico positivo da elevação da FC (efeito Bowditch) e a ação depressora da isquemia/reperfusão. Evidenciaram ainda que a DMPIR não altera a ação estimulante do efeito Bowditch. Os resultados se adequam ao conceito vigente de que a DMPIR não compromete a cinética miocárdica do cálcio, favorecendo, a hipótese prevalente de que o decaimento da capacidade contrátil pós-isquemia/reperfusão depende de redução da responsividade dos miofilamentos ao cálcio.

Palavras-chave: depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão, efeito Bowditch, freqüência cardíaca, função sistólica, função diastólica

Heyndrickx e cols1, em 1975, descreveram pela primeira vez a depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão, que viria a ser popularizada na literatura inglesa sob a denominação stunned myocardium. Estudos posteriores2-6 mostraram que a depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão é gerada por dois fatores: 1) pela ação de espécies reativas de oxigênio liberadas no momento da reperfusão e 2) pela acentuação da concentração intracelular de cálcio (calcium overload), que ocorre tanto durante a isquemia quanto durante a reperfusão. Papel relevante no despertar da depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão é desempenhado por uma protease, a calpaína, que promove lise da troponina I. Em conseqüência, se estabelece o comprometimento funcional típico da depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão: a diminuição da reatividade dos miofilamentos ao cálcio. Nesta circunstância, a afinidade de ligação da troponina com o cálcio se reduz, a quantidade do íon que se liga à troponina diminui e, conseqüentemente, há rebaixamento da contratilidade miocárdica. A latência na recuperação do inotropismo se arrasta até que se restabeleça a integridade da troponina I.

Há indicações muito convincentes de que a cinética do cálcio não se altera na depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão. Assim, já foi comprovado que a depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão não reduz o teor intracelular do íon3,4,7 e preserva as manobras fisiológicas e farmacológicas que estimulam o inotropismo por acentuarem o cálcio intracelular ([Ca]i): agonistas beta-adrenérgicos8-11, milrinone8,12, administração de cálcio5,13, potenciação pós-pausa14 e potenciação pós-extrassistólica9,13.

Há, contudo, relato de que o efeito inotrópico positivo dependente da elevação da freqüência cardíaca, estudado em segmento de miocárdio de cães submetidos à isquemia regional, é transformado em ação inotrópica negativa seguindo-se ao conjunto isquemia/reperfusão12. Em se confirmando este resultado de inversão da resposta miocárdica à elevação da freqüência cardíaca, o conceito de integridade da cinética do cálcio após períodos de isquemia/reperfusão deveria ser revisto, pois, tipicamente, a ação inotrópica ligada às oscilações da freqüência cardíaca é uma manobra fisiológica que depende, estritamente, da cinética do cálcio.

Na maioria dos mamíferos, as elevações da freqüência cardíaca despertam estímulo do inotropismo miocárdico. Esta ação estimulante da contratilidade miocárdica exercida pela freqüência cardíaca recebeu o nome de efeito Bowditch ou fenômeno treppe. Dois mecanismos fundamentam a ação inotrópica positiva do efeito Bowditch: 1) aumento da concentração intracelular de sódio, seguido de ação reversa da proteína trocadora sódio/cálcio e conseqüente elevação do cálcio intracelular ([Ca]i)15 e 2) acentuação da entrada de cálcio pelos canais lentos durante a fase 2 do potencial de ação16,17.

O objetivo deste trabalho foi reavaliar a influência de período transitório de isquemia, seguido de reperfusão, na resposta de corações isolados de cães às elevações da freqüência de contrações. Foi utilizada a preparação de coração isolado de cães nutrido pelo sangue arterial de outro cão e mantido em contrações isovolumétricas. O volume ventricular imutável desta preparação permite que se utilizem as pressões ventriculares como indicadores da contratilidade miocárdica e da complacência ventricular com apreciável fidelidade. Estando constante o volume ventricular, oscilações das pressões desenvolvidas durante as contrações apontam para variações do estado inotrópico no mesmo sentido e alterações da pressão diastólica sinalizam para modificações da complacência ventricular.

Métodos

O trabalho foi desenvolvido em corações isolados de cães (n=9) nutridos pelo sangue arterial de outro animal (fig. 1), segundo sistemática divulgada em outros trabalhos 18,19.


Dois cães, anestesiados com mistura de cloralose (60 mg/kg) e uretana (600 mg/kg) e heparinizados (500 UI/kg), foram utilizados em cada experiência: o animal do qual se extraia o coração (12-16 kg) e o que era mantido como suporte (19-23 kg), provendo o sangue arterial para o coração isolado. O animal suporte era ventilado mecanicamente e recebia doses adicionais de cloralose (6 mg/kg), uretana (60 mg/kg) e heparina (50 UI/kg) a cada hora. O pH (7,35-7,45) e as concentrações dos gases sangüíneos (pO2 > 100 mmHg; pCO2= 35-45 mmHg) eram avaliadas a cada hora e seus desvios eram corrigidos mudando-se a programação dos parâmetros ventilatórios ou pela administração de bicarbonato de sódio a 8%.

O sangue das artérias femurais do cão suporte era impulsionado por bomba de rolete para um reservatório, no qual o sangue era mantido sob pressão constante de 100 mmHg, para prover sangue para as coronárias do coração isolado, por meio de um regulador de pressão alimentado por oxigênio. Antes de perfundir as coronárias, por uma cânula colocada na aorta ascendente do coração isolado, o sangue era aquecido a 37ºC por um permutador de calor. O fluxo do seio coronariano e da circulação de Thebésio retornava para as veias jugulares do animal suporte por cateteres inseridos no tronco da artéria pulmonar e no ápice do ventrículo esquerdo, respectivamente.

Através de incisão na parede anterior do átrio direito, era injetado formol 10% (0,6-2,0 ml) na região do nó atrioventricular para promover bloqueio atrioventricular total e a freqüência cardíaca era comandada por estimulador artificial cujos eletrodos eram colocados na parede anterior do ventrículo direito. A atriostomia era fechada por sutura em bolsa previamente preparada. Este procedimento foi realizado durante oclusão temporária da linha de perfusão coronariana e a isquemia cardíaca resultante perdurou por, somente, 50-170 s. O aparelho valvar mitral era excisado, um balão de látex bastante maleável e delicado, montado em uma cânula (18 mm de diâmetro), era colocado no interior do ventrículo esquerdo e uma sutura em bolsa em torno da base do átrio esquerdo era ocluída para manter o balão no interior da cavidade ventricular. O balão era complacente e tinha dimensões suficientes para não contribuir com pressão em todo o montante de líqüido utilizado para distender o ventrículo esquerdo. A extremidade distal da cânula do balão era ocluída e transpassada por dois cateteres (15 cm de comprimento e 0,3 cm de diâmetro interno). Um dos cateteres era utilizado para controlar o volume de líquido no interior do balão e o outro era ligado a transdutor de pressão P23ID. O transdutor acoplava-se a amplificador Gold modelo 13-6615-50 para determinação das pressões ventriculares e a primeira derivada temporal da pressão ventricular (dP/dt) era obtida por amplificador Gold modelo 13-4615-71. Estas variáveis foram registradas em polígrafo Windograf.

Instalada a preparação, a freqüência de estímulos do marcapasso era regulada para 60 bpm e o volume de líquido no interior do balão era ajustado para que a pressão sistólica, observada no monitor do polígrafo, atingisse valor próximo de 70 mmHg. A freqüência do estimulador era progressivamente elevada até 200 bpm para se reassegurar que não ocorreria: a) elevação da pressão desenvolvida acima da pressão de perfusão coronariana; b) valores excessivos de freqüência de estimulações, capazes de promover desajustes da capacidade contrátil que desaconselhassem a continuidade do protocolo. Alcançada esta situação, o marcapasso era novamente programado para emitir a freqüência de estímulos considerada como basal (60 bpm), e aguardava-se intervalo de 10 a 20min, suficiente para se obter equilíbrio funcional da preparação.

Terminado o período de estabilização, efetuava-se o registro das variáveis na condição basal. Em seguida, a freqüência de estímulos do marcapasso era elevada sucessivamente, em etapas de 20 bpm, até o valor de 200 bpm. A cada aumento da freqüência de estímulos, aguardava-se um minuto para que a nova situação funcional alcançasse equilíbrio e procedia-se a novo registro das variáveis. As manobras descritas compunham a situação controle (C) do protocolo.

Na seqüência, era promovida a situação de depressão contrátil pós-isquemia/reperfusão.

Retornava-se a freqüência de estímulos ao valor basal e iniciava-se período de isquemia global do coração por oclusão da linha de perfusão coronária. Transcorridos 15min de isquemia, restabelecia-se a perfusão coronariana; o período de reperfusão foi de 30min. Durante o período de isquemia o marcapasso artificial era desligado logo após o coração ter alcançado a situação de assistolia ou fibrilação ventricular (aproximadamente 10min). No início do período de reperfusão, o sangue proveniente do coração era deixado drenar para o exterior (aproximadamente 250 ml) para que catabólitos cardíacos que pudessem ter se acumulado durante a isquemia não fossem injetados no cão suporte. Ao final dos 30min de reperfusão realizavam-se os registros das variáveis em freqüências de estímulos idênticas àquelas utilizadas quando dos registros da situação c. Estes registros representaram os dados da situação depressão (D). Em algumas experiências ocorreu fibrilação ventricular no coração isolado durante o período de isquemia ou logo no início do período de reperfusão. Quando ocorrida, procedeu-se à desfibrilação elétrica utilizando-se descarga elétrica de 10 joules.

Para efeito da análise, cada variável foi analisada sob três enfoques: 1) se a elevação da freqüência cardíaca promoveu modificação das variáveis dentro de cada condição estudada controle e depressão; 2) se a isquemia/reperfusão deprimiu a ação mecânica do coração; 3) se o comportamento das diversas variáveis foi diferente dentro de cada condição controle e depressão.

Para cada uma das variáveis foi realizada, preliminarmente, uma análise de variância (ANOVA) com medidas repetidas com um único grupo de animais, referida na literatura estatística como análise de variância em blocos20. Depois que se caracterizou a diferença entre as diversas freqüências cardíacas utilizadas (p < 0,0001), foram feitas duas partições hierárquicas da soma de quadrados dos valores das diferentes variáveis, nos diversos níveis de freqüência cardíaca. A primeira partição comparou, separadamente, para cada uma das condições C e D, as médias de cada variável obtidas nas diversas freqüências cardíacas analisadas. Esta manobra permitiu avaliar se a elevação da freqüência cardíaca promoveu modificação da variável dentro de cada condição estudada. No caso de haver significância estatística, foram utilizados contrastes ortogonais21 para testar a existência de efeitos linear, quadrático e cúbico. A outra partição testou, para cada uma das variáveis, em cada valor de freqüência cardíaca, a hipótese de igualdade de médias entre as condições C e D. Esta análise possibilitou caracterizar se a isquemia/reperfusão afetou o valor das variáveis. Nos casos em que houve diferenças significantes entre os valores das condições C e D, determinaram-se os intervalos de confiança a 95% das diferenças entre as médias alcançadas pela variável nas freqüências cardíacas de 60 e de 200 bpm nas duas condições experimentais. Foram admitidos como indicativos de comportamento diferente nas duas condições os resultados cujos intervalos de confiança a 95% não se superpuseram.

Resultados

Os dados são apresentados sob a forma de média ± erro padrão da média (x ± epm).

Pressão desenvolvida durante a contração (PD: pressão sistólica menos pressão diastólica), valor positivo máximo da dP/dt (+dP/dt) e tempo de pressão máxima (TPM: período decorrido desde o início da ascensão sistólica da curva de pressão ventricular até seu valor máximo, indicando a duração da sístole) foram utilizados para analisar a contração ventricular (fig. 2). Os valores destas variáveis na freqüência cardíaca de 60 bpm, nas condições C e D, são apresentados na tabela I.


A elevação da freqüência cardíaca despertou influências diferentes na PD e na +dP/dt tanto em C quanto em D. Em toda faixa de freqüência cardíaca analisada não se identificaram valores estatisticamente diferentes da PD em C (p = 0,2986) e em D (p = 0,7027), indicando que a PD não variou em nenhuma das condições (fig. 3A). Contrariamente, +dP/dt aumentou em ambas as condições (fig. 3B), tendo seus valores obedecidos à distribuição de uma reta ascendente em C (349 + 3,108x; p < 0,0001) e em D (268 + 2,315x; p = 0.0001). Por outro lado, os valores da PD e da +dP/dt na situação D foram significantemente menores, quando comparados àqueles verificados em C, para os mesmos níveis de freqüência cardíaca. Adicionalmente a estes resultados que caracterizam o efeito inotrópico positivo do efeito Bowditch e a ação depressora da contração promovida pelo conjunto isquemia/reperfusão, houve clara superposição entre os intervalos de confiança a 95% das diferenças entre os valores da dP/dt verificados em 60 bpm (29 mmHg/s; 249 mmHg/s) e em 200 bpm (147 mmHg/s; 366 mmHg/s), indicando que as ações inotrópicas do efeito Bowditch foram comparáveis antes e depois da isquemia/reperfusão.


Concomitantemente, como decorrência da elevação da freqüência cardíaca, houve encurtamento da contração (fig. 3C). Conforme a freqüência cardíaca variou de 60 até 200 bpm, o TPM reduziu progressivamente, seguindo uma reta descendente, em C (252 — 0,618x; p < 0,0001) e em D (247 — 0.634x; p < 0.0001). Mais ainda, não foram observadas diferenças significantes (p = 0,0782) entre os valores verificados para o TPM nas condições C e D. Estes resultados indicam que a isquemia/reperfusão não alterou a duração da contração e não afetou o encurtamento da sístole que acompanhou o aumento da freqüência cardíaca.

Tomados em conjunto, estes resultados indicam que a depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão não exerceu efeito quantitativo ou qualitativo nas modificações da função sistólica promovidas pelo efeito Bowditch. O efeito Bowditch estimulou a contração, enquanto a depressão pós-isquemia/reperfusão deprimiu esta função. Foi marcante que a isquemia/reperfusão não exerceu nenhum efeito sobre a influência da elevação da freqüência cardíaca sobre a contração ventricular.

A função diastólica ventricular foi analisada avaliando-se a complacência ventricular e o relaxamento miocárdico. Os valores assumidos pela pressão de repouso (Pr), mantendo constante o volume ventricular, foram utilizados como indicadores de flutuações da complacência ventricular. A análise do relaxamento miocárdico foi concretizada estudando-se o comportamento dos valores negativos máximos da dP/dt (-dP/dt) e o tempo necessário para que a pressão desenvolvida se reduzisse em 90% dos valores máximos (tempo de relaxamento a 90%: TR90%).

Os valores das pressões de repouso (Pr) para as diversas freqüências cardíacas nos estados C e D são apresentados na figura 4A.


Foram verificadas diferenças estatisticamente significantes entre as medias das pressões de repouso para as condições C (p < 0,0001) e D (p < 0,0001), indicando que a Pr variou quando se elevou a freqüência cardíaca. Foi verificado que a Pr comportou-se como uma função quadrática da freqüência cardíaca tanto para a condição C (y = 5.641 — 0,049x + 0,00024 x2; p = 0,0002) quanto para D (y = 5.0 — 0,032x + 0,00018x2; p = 0,0036). Comparando-se os valores médios da Pr nas condições C e D, em cada uma das freqüências, verificou-se igualdade das médias de pressão diastólica dessas duas condições nas freqüências de 60, 80, 100, 120 e 140 bpm. Para a freqüência de 160 bpm foi identificada significância sugestiva de tendência de a Pr ser maior na condição D do que na condição C (p = 0,0532) e para a freqüência de 180 bpm foi detectada diferença estatisticamente significante entre as médias das pressões de repouso das duas condições (C: 4,1 ± 0,8 mmHg; D: 5,3 ± 0,7 mmHg; p = 0,0071). Já para a freqüência cardíaca de 200 bpm não houve significância estatística (p = 0,4239) para a diferença verificada entre os valores de Pr nas duas condições. O conjunto dos resultados indica que a Pr varia com as elevações de freqüência cardíaca segundo padrões parabólicos crescentes, de concavidades superiores, não coincidentes nas condições C e D, desde que a equivalência das condições C e D só ocorre até a freqüência cardíaca de 140 bpm.

As elevações de freqüência cardíaca acarretaram incrementos progressivos nos valores absolutos da —dP/dt em C (363 + 1,438x; p < 0.0001) e em D (200 + 1,394x; p < 0.0001) (fig. 4B). Além disso, houve clara superposição dos intervalos de confiança das diferenças entre os valores da —dP/dt observados em C e em D nas freqüências de 60 bpm (97 bpm; 244 mmHg/s) e em 200 bpm (91 mmHg; 239 mmHg/s), indicando que o estímulo das propriedades lusitrópicas promovido pelo aumento da freqüência cardíaca foi comparável antes e depois de isquemia/reperfusão. Por outro lado, todos os valores de —dP/dt na situação D foram inferiores a seus respectivos valores da situação C, caracterizando o relaxamento mais lento depois da isquemia/reperfusão.

O período de relaxamento ventricular, avaliado pelo tempo de relaxamento a 90% da PD, foi reduzido em C (238 — 0.557x; p < 0.0001) e em D (249 — 0.589x; p < 0.0001) e não foram identificadas diferenças entre os pares de valores do TR90% em todos os níveis de freqüência cardíaca analisados (fig. 4C).

O conjunto dos dados da —dP/dt e do TR90% indica que o relaxamento miocárdico foi ativado pelo aumento da freqüência cardíaca. Os dados mostraram, também, que a depressão miocárdica pós-isquemia reperfusão reduziu a velocidade de relaxamento, embora não tenha ocorrido alteração do TR90%. Adicionalmente, foi evidenciado que o conjunto isquemia/reperfusão não altera a influência exercida pelo efeito Bowditch nas propriedades lusitrópicas, visto que as modificações da —dP/dt e da TR90% despertadas pelo aumento de freqüência cardíaca não foram diferentes em C e D.

Discussão

Nossos resultados caracterizaram, claramente, o efeito inotrópico positivo da elevação da freqüência cardíaca e a ação depressora da contração promovida pela isquemia/reperfusão. A ação estimulante da contratilidade ficou bem manifesta no incremento progressivo da +dP/dt que acompanhou o aumento da freqüência cardíaca. É possível argumentar que a ausência de crescimento da PD, simultaneamente à elevação da freqüência cardíaca, contraria a idéia de ação inotrópica positiva do efeito Bowditch. Esta contestação possível é contrariada por informações da literatura. Dados de outros autores22-24 já evidenciaram que a força gerada durante a sístole (indicada pelo valor máximo da PD) depende da intensidade com que a contração é gerada (melhor refletida pelo valor máximo da +dP/dt) e da duração da contração (apontada pelo TPM). Caracteristicamente, como parte integrante do efeito Bowditch, estas duas variáveis que regulam a força gerada sofrem modificações em sentidos opostos, exatamente como ocorreu em nossos experimentos: a contração se intensifica (aumentando a +dP/dt) e se encurta (diminuindo o TPM). O resultado final sobre o valor da força dependerá do predomínio de um ou de outro destes fatores, podendo ocorrer, até mesmo, a sua redução.

Por outro lado, foi nítido o efeito depressor da contração desencadeado pela isquemia/reperfusão. Após o período de 30 minutos de retomada do fluxo coronário, os valores da PD e da dP/dt foram claramente inferiores àqueles verificados na situação controle. É notável o crescimento, na literatura, de tendência a admitir as alterações da responsividade dos miofilamentos como o mecanismo patogenético mais relevante na depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão3,6,7,25,26 . Esta interpretação está se consolidando levando em conta, principalmente, a existência de demonstrações convincentes de que a oferta de cálcio para o mioplasma não está alterada depois de poucos minutos que a reperfusão miocárdica é retomada. Considere-se, ainda, como apoiador desta hipótese, o fato de a capacidade funcional do miocárdio deprimido poder ser estimulada por manobras inotrópicas que atuam sobre a cinética celular do cálcio: aminas simpatomiméticas8-11,27, milrinone12, administração de cálcio5,13, estimulação pós-extrassistólica9,13 e estimulação pós-pausa14.

A redução dos valores da —dP/dt em D contrasta com a idéia de que a cinética do cálcio não seja afetada pelo binômio isquemia/reperfusão. Este resultado não pode ser compreendido por alterações que tenham ocorrido na responsividade dos miofilamentos ao cálcio e, em princípio, sinalizaria para a possibilidade de a recaptação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático ter sido prejudicada. Contudo, resultados descritos por outros autores7,28 indicaram que, quando se analisa o relaxamento miocárdico no ventrículo intacto, outros fatores necessitam ser considerados além da responsividade dos miofilamentos e da cinética do cálcio. Os resultados destes autores indicaram que o edema miocárdico e o turgor coronariano, presentes no ventrículo intacto, conferem características de comprometimento ao relaxamento muscular que não se identificam em amostras isoladas de miocárdio. Estas informações permitem admitir que a depressão do relaxamento por nós verificada em D não deve ser associada a comprometimento da cinética intracelular do cálcio causada pelo binômio isquemia/reperfusão

Nossos resultados indicaram que isquemia global de corações isolados, seguida de reperfusão, resulta em depressão miocárdica que não altera a influência do efeito Bowditch sobre a contração e o relaxamento. Mais ainda; o encontro de equivalência de resposta ao aumento da freqüência de contrações permite concluir que nem mesmo a intensidade das respostas miocárdicas ao "treppe" é alterada no estado de depressão pós-isquemia/reperfusão.

Temos informações de apenas um único trabalho que visou estudar a influência do aumento da freqüência cardíaca sobre o miocárdio deprimido por isquemia/reperfusão12. SCHAD e cols promoveram isquemia regional no território da artéria coronária descendente anterior e compararam o desempenho sistólico do miocárdio irrigado por este vaso com o exteriorizado pelo músculo suprido pela artéria circunflexa. Seguindo-se à isquemia/reperfusão da região irrigada pela descendente anterior, verificaram que, nesse território, a elevação da freqüência cardíaca foi acompanhada de diminuição do encurtamento miocárdico. No território da circunflexa, tomado como referência de comportamento normal do miocárdio, a contração muscular foi ativada pelo aumento da freqüência de contrações. Na interpretação de seus resultados, estes autores não levaram em conta que a avaliação do desempenho sistólico nas condições experimentais utilizadas é dificultada pela interação que se estabelece entre o miocárdio deprimido e o normal. O método utilizado coloca o miocárdio deprimido contraindo em série com o miocárdio normal. Nestas condições, a contração do miocárdio normal, exacerbada pelo estímulo inotrópico, tende a estirar o miocárdio deprimido, mascarando a ativação da capacidade contrátil que possa ter ocorrido neste último.

Portanto, os nossos dados indicam que, no miocárdio canino, a depressão miocárdica após15 min de isquemia e 30min de reperfusão não impede que as respostas da contração e do relaxamento ao aumento de freqüência cardíaca se exteriorizem com características equivalentes às do miocárdio normal. Esta inferência corrobora a proposição de que a funcionalidade dos mecanismos reguladores da cinética intracelular do cálcio permanece próxima da normalidade na depressão miocárdica pós-isquemia/reperfusão.

Agradecimentos

O apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP; projeto 99/04533-4) e ao Ministério da Ciência e Tecnologia (CNPq; processo 300.692/80-3 NV) e a participação competente e dedicada do Sr. Airton Andrade Santos nos experimentos.

Recebido para a publicação em: 28/10/2003

Aceito em: 01/04/2004

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  • Endereço para correspondência

    Paulo J. F. Tucci
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 2005

    Histórico

    • Aceito
      01 Abr 2004
    • Recebido
      28 Out 2003
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