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Artéria coronária única submetida a angioplastia com implante de Stent

Resumos

Relatamos caso de rara anomalia de artéria coronária direita saindo do terço médio da artéria descendente anterior com lesão obstrutiva ateromatosa proximal, imediatamente antes da emergência da coronária direita. O paciente foi submetido a angioplastia com implante de Stent na descendente anterior com sucesso. Há relatos de apenas 7 casos desta anomalia de distribuição na literatura, porém nenhum com tratamento de revascularização percutânea.


We report the case of a rare anomaly of the right coronary artery originated from the middle third of the left anterior descending (LAD) coronary artery with a proximal atheromatous obstructive lesion immediately before the emergence of the right coronary artery (RCA). The patient underwent successful angioplasty with stent implantation in the left anterior descending coronary artery. Only 7 cases of this anomaly of distribution have been reported in the literature, but none of them was treated with percutaneous revascularization.


RELATO DE CASO

Artéria coronária única submetida a angioplastia com implante de Stent

Ian C. D. Teixeira; Alexandre X. Brant; Alexandre Ares; Bruno Sarbi; Isaac Moscoso; Adnan A. Salman; Salvador A. B. Cristóvão; João B. Oliveira Neto; Maria Fernanda Z. Mauro; José A. Mangione

São Paulo, SP

Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo e Disciplina de Cardiologia da Faculdade de Medicina de Mogi das Cruzes

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ian C. D. Teixeira Rua Santa Madalena, 220/84A Cep 01322-020 — São Paulo, SP E-mail: upyr@bol.com.br

RESUMO

Relatamos caso de rara anomalia de artéria coronária direita saindo do terço médio da artéria descendente anterior com lesão obstrutiva ateromatosa proximal, imediatamente antes da emergência da coronária direita. O paciente foi submetido a angioplastia com implante de Stent na descendente anterior com sucesso. Há relatos de apenas 7 casos desta anomalia de distribuição na literatura, porém nenhum com tratamento de revascularização percutânea.

As anomalias das artérias coronárias ocorrem em 1 a 2% da população, constituindo um tipo raro, mas importante, de doença coronariana não aterosclerótica. Sua presença pode implicar na ocorrência de morte súbita aos esforços e aumentar o risco de trauma arterial coronariano durante procedimentos cirúrgicos, além de que certos tipos de anomalia levam à isquemia miocárdica 1.

A artéria coronária única (ACU), descrita como artéria coronária isolada, não apresenta predominância entre os sexos, constituindo-se uma entidade rara, com incidência de 0,024% quando isolada e de 0,03 a 0,04% quando associada a outras anormalidades cardíacas 2-4. Apresenta, como característica principal, a sua origem da raiz da aorta através de um óstio único, sem evidência de um segundo óstio, sendo então responsável pela irrigação de todo o coração, independente de sua distribuição2. Obstruções ateroscleróticas proximais nesses casos podem inferir em graves conseqüências para o paciente4.

Neste trabalho relatamos o ocorrido com paciente submetido a intervenção coronariana percutânea com implante de stent que apresentava a artéria coronária direita originando-se da artéria descendente anterior, existindo até o momento somente 7 casos descritos na literatura, nenhum deles submetidos a angioplastia coronariana5.

Relato de Caso

Homem de 73 anos, branco, serrador aposentado, natural e residente em Maria da Fé-MG, diabético tipo II, hipertenso e ex-tabagista há 20 anos, foi encaminhado ao nosso serviço para coronariografia por apresentar história de precordialgia opressiva aos grandes esforços, irradiada para membro superior esquerdo, atenuada por repouso e sem fatores agravantes há 1 ano. Observará que há 2 meses o padrão da dor evoluíra progressivamente para desencadeamento em repouso.

Ao exame físico não apresentava alterações, exceto a ausculta cardíaca com ritmo regular em três tempos por presença de B4. A telerradiografia do tóráx era normal. O eletrocardiograma em repouso (fig. 1) mostrou ritmo sinusal, SÂQRS +70º, freqüência cardíaca 75bpm, sem alterações da repolarização ventricular. Durante o teste ergométrico (fig. 2), ocorreu significativo infradesnivelamento de 3 mm do segmento ST na derivação MC5 com carga de 1,7 mph 10% aos 3min, caracterizando resposta isquêmica miocárdica ao exercício.



Submetido a coronariografia pela técnica de Sones em 14/07/2003, que demonstrou artéria coronária esquerda com origem no seio de Valsalva esquerdo, dividindo-se em artéria circunflexa que atingia terço distal do sulco atrioventricular esquerdo com lesões obstrutivas de 90% no terço distal e de 80% no terço proximal de um pequeno ramo ventricular posterior; e artéria descendente anterior (DA), atingindo o terço médio do sulco interventricular posterior com lesão obstrutiva de 90% no terço proximal. Verificou-se que a artéria coronária direita (CD) originava-se logo após essa obstrução e mostrava-se de paredes lisas sem lesões obstrutivas (fig. 3 e 4). Na ventriculografia esquerda notou-se aumento do volume sistólico final por hipocinesia anteroapical moderada (fig. 5).




Pelo fato da lesão na artéria descendente anterior colocar grande área miocárdica em risco, o paciente foi medicado com ácido acetilsalicílico 200mg/dia e clopidogrel 300mg em dose de ataque, e 24h após a coronariografia foi realizada a intervenção coronariana percutânea (ICP) da lesão localizada na DA. O procedimento foi efetuado pela via femoral, utilizando-se cateter balão 2,5x20mm para pré-dilatação da lesão, seguido de implante de Stent AVE S7 3,5x12mm com pressão final de liberação de 12 atmosferas. O procedimento foi realizado com sucesso, fluxo coronariano TIMI III e lesão residual de 0% (fig. 6).


A evolução hospitalar transcorreu sem intercorrências clínicas, recebendo alta 24h após a intervenção.

Discussão

A anomalia coronariana é uma entidade anatômica que, na maioria das situações, associa-se a uma determinada cardiopatia congênita, não havendo diferença entre os sexos na sua incidência. Pode ser classificada em três tipos: anomalias de origem, anomalias de terminação e anomalias de distribuição (grupo do caso descrito)6.

Anomalias coronarianas de origem são as anomalias onde se observa sistema coronariano no mínimo biarterial, com uma coronária saindo de um grande vaso ou de outra coronária. A anomalia mais comum, correspondendo a 90% dos casos dessa alteração anatômica, é o padrão de circulação onde a coronária descendente anterior (DA) emerge do tronco pulmonar6.

Uma modificação desse padrão é a emergência da coronária esquerda a partir do tronco pulmonar (2,5 a 4,6% das cardiopatias congênitas). Apesar de ter sido relatada por Brooks em 1886, Bland, White e Garland em 1933 descreveram pela primeira vez sua síndrome clínica e hemodinâmica. Em mais de 90% dos casos, a coronária esquerda emerge do seio posterior da artéria pulmonar7. Sua fisiopatologia foi estabelecida por Edwards, que observou a existência de colaterais da coronária direita (CD) para a coronária esquerda e a ocorrência de possível "shunt" esquerdo-direito8. O sintoma mais comum é a angina de peito, seja por inexistência de colaterais adequadas ou por fenômeno de "roubo de fluxo" para o tronco pulmonar. Se o indivíduo sobrevive à infância, o risco de morte súbita persiste em até 80 a 90% dos casos, ocorrendo por volta dos 35 anos de vida6.

A maioria dos casos de anomalia de origem produz redução de sobrevida, exceto a origem da CD do tronco pulmonar, forma mais rara e de prognóstico em geral benigno6.

As técnicas cirúrgicas mais utilizadas para o tratamento são o reimplante simples da coronária, a ligadura da coronária seguida de bypass com safena, a técnica do túnel de Takeuchi e a ligadura da coronária anômala realizada somente quando há circulação colateral suficiente, apresentando pior resultado a curto e longo prazo, pois resulta em sistema de coronária única6.

Anomalias coronarianas de terminação são as anomalias hemodinamicamente significantes mais comuns e têm como exemplo as fístulas coronarianas arteriovenosas (FCAv).

Descrita pela primeira vez por Krause em 1865, a FCAv é definida como uma anastomose direta e pré-capilar entre uma artéria coronariana maior e uma câmara cardíaca ou outro vaso maior (e.g. seio coronário, veia cava superior ou tronco pulmonar)7.

A coronária direita e o ventrículo direito são mais comumente envolvidos. É rara a drenagem para câmaras esquerdas (menos de 10% dos casos), sendo o seio coronariano e as veias brônquicas os sítios de drenagem mais raros6.

Quando existe quadro clínico, a angina do peito é o sintoma mais comum, decorrente de roubo de fluxo esquerdo-direito que desvia o sangue do sistema de alta resistência do leito capilar miocárdico para o sistema de baixas pressões da fístula7.

A indicação de correção cirúrgica depende do grau de shunt, e tem como objetivo a oclusão da FCAv sem prejuízo do fluxo coronário. As técnicas mais utilizadas são o fechamento interno da fístula, a partir da cavidade recipiente, a arteriorrafia tangencial latero-laterais (Cooley e Ellis, 1962), a ligadura distal simples da coronária (Bjork e Crafoord, 1947), a ligadura proximal e distal da coronária e a ligadura com realização de bypass.

Se o tratamento cirúrgico não for realizado quando indicado, a probabilidade de complicações aumenta com a idade, incluindo insuficiência cardíaca congestiva, endocardite bacteriana e, raramente, hipertensão pulmonar moderada. Também estão descritos casos de dilatação aneurismática do vaso envolvido e ruptura da fístula9.

A ocorrência de artéria coronária única (ACU), é uma anomalia raríssima, com incidência de 0,04%2. Está associada a defeito cardíaco congênito (e.g. tetralogia de Fallot, transposição dos grandes vasos, truncus arteriosus) em 40% dos casos6.

Considerada variação do normal até o século XVIII, foi Thebesius que em 1716 publicou o primeiro relato de ACU, finalmente considerada como anomalia em 1761 quando Morgagni reconheceu como normal a presença de 2 artérias coronárias principais (2 óstios). Apenas 45 casos de ACU foram descritos até 195010.

A incidência de anomalia de coronária direita (CD) e de coronária esquerda (CE) é semelhante6. Porém, o padrão ainda mais raro de ocorrência de ACU é o da CD que se origina da coronária descendente anterior (DA) com relato de somente 7 casos na literatura5. Em todos, a CD originou-se da DA após o 1º ramo perfurante septal, com trajeto anterior à via de saída de ventrículo direito e ao tronco pulmonar. Houve evidência de doença ateromatosa coronariana (DAC) em 4 casos, mas nenhum deles com relato de procedimento de revascularização percutânea10.

O prognóstico da ACU varia de excelente (sem decréscimo à sobrevida) a reservado conforme sua distribuição anatômica, inclusive com risco de morte súbita, uma vez que 15% dos seus portadores desenvolvem cardiopatia grave antes dos 40 anos. Risco que é justificado pelo trajeto da coronária anômala através da base do coração para atingir seu território de distribuição, o que pode sujeitá-la à compressão por outras estruturas ou à angulação/acotovelamento de sua origem. Considera-se ainda, que há maior possibilidade de desenvolvimento de aterosclerose do que em coronárias normais2,4,6,8,9.

Quando se desenvolve DAC, as conseqüências são significativas e o prognóstico é grave se a obstrução for proximal, posto que o óstio é único e não há possibilidade de circulação colateral6.

A indicação de revascularização deve ser considerada na existência de sintomas (i.e. angina), mesmo na ausência de DAC, em razão da considerável chance de infarto agudo do miocárdio e de morte súbita7.

Concluindo, o caso aqui relatado consiste de uma anomalia de distribuição com CD originando-se do 1/3 proximal da DA (o tipo mais raro descrito na literatura) logo após uma lesão ateromatosa importante que colocava em risco grande área de musculatura miocárdica. Destaca-se o papel importante da coronariografia neste contexto, definindo com precisão a anatomia coronariana e permitindo que o tratamento percutâneo com implante de Stent fosse realizado com sucesso e excelente evolução hospitalar, apesar da gravidade do caso devido a este tipo raro de anomalia.

Recebido para a Publicação em: 13/12/2003

Aceito em: 26/01/2004

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  • Endereço para correspondência

    Ian C. D. Teixeira
    Rua Santa Madalena, 220/84A
    Cep 01322-020 — São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 2005

    Histórico

    • Aceito
      26 Jan 2004
    • Recebido
      13 Dez 2003
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