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Fatores de risco cardiovascular no Brasil: os próximos 50 anos!

EDITORIAL

Fatores de risco cardiovascular no Brasil: os próximos 50 anos!

Carisi Anne Polanczyk

Porto Alegre, RS

Hospital de Clínicas de Porto Alegre - UFRGS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Carísi A. Polanczyk Hospital de Clínicas de Porto Alegre Rua Ramiro Barcelos, 2350 - S/ 2225 Cep 90035-007 - Porto Alegre, RS E-mail: cpolanczyk@hcpa.ufrgs.br; carisi@hmv.org.br

Há mais de 55 anos, uma cidade dos Estados Unidos, Framingham em Massachusetts, foi selecionada pelo governo americano para ser o local de um estudo cardiovascular. Foram inicialmente recrutados 5.209 residentes saudáveis entre 30-60 anos de idade para uma avaliação clínica e laboratorial extensiva. Desde então a cada 2-4 anos, esta população e, atualmente as gerações descendentes, é reavaliada cuidadosamente e acompanhado em relação ao desenvolvimento de doença cardíaca. O consagrado estudo de Framingham foi uma das primeiras coortes onde foi demonstrando a importância de alguns fatores de risco para o desenvolvimento de doença cardíaca e cerebrovascular 1. Parece inconcebível, mas antes do Framingham, a maioria dos médicos acreditava que aterosclerose era um processo de envelhecimento inevitável, a hipertensão arterial um resultante fisiológico deste processo que auxiliava o coração a bombear o sangue pelas artérias com lúmen reduzido. Foram mais de 1.000 publicações somente nesta coorte de paciente e milhares de outras que nos levaram, ao longo das últimas décadas, para um entendimento detalhado e aprofundado das características individuais e ambientais relacionadas com maior probabilidade de doença cardíaca 2. Estudos estes que confirmaram a importância do tabagismo, níveis elevados de colesterol LDL, baixos de HDL, diabete melito, hipertensão arterial sistêmica, história familiar, obesidade, sedentarismo, obesidade central, síndrome plurimetabólica e ingesta de álcool como fatores fortemente relacionados com aterosclerose e suas manifestações clínicas.

Após estas centenas de observações, podemos explorar duas questões chaves. Em primeiro lugar, se há novas descobertas na área, novos estudos elucidando o papel de fatores de risco ou continua tudo igual. Segundo, se existe algum indicativo que a epidemiologia da doença cardiovascular e seus fatores determinantes são diferentes no Brasil em relação a outros países do mundo. Recentemente, tivemos novas evidências na área que merecem uma discussão.

O estudo INTERHEART foi um estudo de caso-controle internacional, delineado para avaliar de forma sistematizada a importância de fatores de risco para doença arterial coronariana ao redor do mundo. Foram 262 centros em 52 países dos 5 continentes, onde pacientes com infarto agudo do miocárdio (IAM) nas primeiras 24 horas foram pareados (idade e sexo) para controles hospitalares e comunitários 3. Nesta avaliação, nove fatores de risco explicaram mais de 90% do risco atribuível para IAM. De modo surpreendente tabagismo e dislipidemia (aferida pela relação ApoB/ApoA1) compreenderam mais de dois terços deste risco. Fatores psicossociais, obesidade central, diabetes, hipertensão foram também significativamente associados, embora com algumas diferenças relativas nas diferentes regiões estudadas. Dados contemporâneos que confirmaram os fatores de risco tradicionais, previamente estabelecidos, em todas regiões do mundo e todos grupos étnicos.

O estudo de Avezum e cols., publicado neste fascículo dos Arquivos, também teve os objetivos e metodologia muito semelhante ao INTERHEART 4. Os achados dos autores confirmam a importância dos fatores de risco tradicionais (tabagismo, hipertensão arterial sistêmica, diabete melito, obesidade central, níveis de LDL e HDL colesterol, história familiar coronariana) na associação com IAM. Em outra avaliação publicada pelos mesmos autores, no estudo AFIRMAR, desenvolvido em 104 hospitais de 51 cidades no Brasil, os achados foram praticamente idênticos 5. Através destes dados, temos as evidências que a predisposição para doença aterosclerótica nos Brasil é muito semelhante àquela observada em países da Europa e América do Norte.

Com oportunidade única, podemos comparar diretamente os resultados obtidos na população de São Paulo com aqueles avaliados ao redor do mundo. Um dos aspectos interessantes a ser analisado é o impacto relativo de cada fator de risco na ocorrência do desfecho. Conforme relatado pelos autores, o tabagismo, obesidade central, hipertensão arterial e perfil lipídeo, fatores potencialmente controláveis, foram importantes detentores de risco nesta amostra da população brasileira. Infelizmente no estudo de São Paulo não estão descritas as prevalências dos fatores de risco no grupo de casos e controles, para uma melhor estimativa do perfil da população incluída. Tabagismo foi um dos principais preditores de risco, com prevalência quase 6 vezes maior nos casos que nos controles, um impacto muito maior que no INTERHEART, onde a razão de chances (RC) foi de 2,9 vezes. No INTERHEART, 26,8% dos controles eram tabagistas versos 45% dos casos. Dados do estudo AFIRMAR em 104 hospitais brasileiros, demonstraram risco próximo a 4 com a presença de tabagismo ativo (> 5 cigarros/dia). Na medida que todos estes estudos avaliaram casos de IAM, parte da diferença com o trabalho de Avezum e cols. pode ter ocorrida pela seleção dos casos e/ou controles com prevalências diferentes de tabagismo. Além de existir a possibilidade do acaso na associação, pois o intervalo de confiança abrange as estimativas dos outros trabalhos.

A história familiar também conferiu uma chance maior de IAM no estudo de São Paulo (RC 2,33) que no INTERHEART (RC 1,5). Na medida que o estudo internacional inclui outros fatores relacionados com estilo de vida, fatores ambientais e psicológicos, parte do risco relacionado à história familiar pode ser atribuída a estes outros fatores e características genéticas ao invés de um mecanismo próprio independente. Todos os demais fatores de risco identificados são em sua magnitude semelhante a outras estimativas epidemiológicas. Hipertensão arterial sistêmica, diabete melito, obesidade central e perfil lipídico, cada um contribuiu para um aumento de duas a três vezes nas chances de infarto do miocárdio.

Entretanto, é importante discorrer sobre o que o estudo não mostrou. Alguns fatores tradicionais avaliados não foram significativos, como ingesta de álcool, atividade física e características sócio-demográficas. Conforme apontado pelos autores, parte da ausência de associação observada pode ser devida ao baixo poder estatístico em um modelo com variáveis certamente correlacionadas. Embora os autores estimaram o tamanho da amostra para detectar risco superior a 2, estes cálculos são baseados em analises univariadas e é muito difícil contemplar todo potencial confundimento e co-linearidade das variáveis. Ingesta moderada de álcool tem se mostrado protetora para eventos cardiovasculares e o INTERHEART apontou para uma redução de risco de 10%, de modo semelhante à prática de atividade física regular. No estudo AFIRMAR a proteção conferida pelo álcool moderado foi maior, de 40% em relação a não ingesta.

Características sócio-demográficas, renda familiar, nível de escolaridade, têm sido relacionados ao desenvolvimento de doença cardiovascular. É conhecido que os fatores de risco tendem a ocorrer com maior freqüência e maior número em populações com menor poder econômico e cultural 6. Mesmo em países desenvolvidos estas associações são relatadas. Dados recentes de um estudo americano demonstraram que presença de 2 ou mais fatores de risco são mais freqüentes entre aqueles com baixa escolaridade (53%) em comparação com aqueles com curso superior (26%) 7. O mesmo também relatado em amostras populacionais brasileiras 8-10. No estudo AFIRMAR, renda elevada e formação superior conferiu proteção. Cabe ressaltar, conforme elegantemente apontado por Avezum e cols., que estudos do tipo caso-controle são muito sujeitos a vieses e, de um modo geral, a sua interpretação deve ser conduzida com cautela.

Aplicabilidade dos resultados na prática

O surpreendente no cenário das doenças cardiovasculares é o quanto conseguimos avançar no entendimento de todo espectro das doenças: mecanístico, fisiopatológico, diagnóstico, prognóstico e terapêutico, com alicerce sólido nos fundamentos da medicina baseada em evidência. A preocupação é o quanto estamos realmente traduzindo esta informação para melhorar a saúde da população. Felizmente após 5 décadas de entendimento dos fatores relacionados a gênese das doenças do coração, tem sido observado ao redor do mundo um melhor controle dos fatores de risco e uma redução dos coeficientes de mortalidade. Dados de Framingham mostraram uma redução de 59% na mortalidade por doença coronariana no período de 1950 a 1999 11. No Brasil, os resultados ainda são muito dispares, algumas regiões com uma tendência para redução nos coeficientes de mortalidade por doença isquêmica e cerebrovascular, enquanto outras apresentam índices em franca ascensão 12. Políticas de saúde baseadas nestas evidências devem ser consolidadas e implementadas. Várias iniciativas do Ministério da Saúde foram adotadas para reduzir o impacto das doenças não-transmissíveis na população brasileira. Desde o rastreamento de diabete melito em nível nacional, implementação de campanhas sobre hipertensão arterial sistêmica, aplicação de protocolos para manejo agressivo da dislipidemia em coronariopatas, entre outros. Precisamos agora trazer estas iniciativas de modo permanente e continuado, ao invés de espasmos, e não somente para alguns por algum tempo, mas para todos o tempo todo. Devemos ser críticos e reconhecer que o que vem sendo feito não é suficiente para eliminarmos a fração de doença potencialmente previníveis. Se medidas de prevenção primária e secundária forem adotadas de modo mais enérgico, tudo indica que a epidemiologia das doenças cardiovasculares pode ser modificada drasticamente nos próximos 50 anos, depende de nós clínicos e gestores.

Pesquisas futuras

Se por um lado é muito bom, contarmos com a contribuição original de Avezum e cols. é importante reconhecermos que precisamos dar vários passos a frente. Enquanto fatores de risco tradicionais estão sendo confirmados na nossa população, pesquisas aprofundando este detalhamento estão sendo conduzidas ao redor do mundo. Atualmente, pesquisadores estão buscando as bases moleculares das doenças, novos fatores de risco e o seu papel no desenvolvimento da doença cardíaca, com ênfase na identificação de aterosclerose subclínica. Estudos epidemiológico-clínicos estão a procura de alterações genéticas responsáveis por hipertensão arterial e dislipidemias, entre outras condições. Novos marcadores neuro-humorais e inflamatórios têm sido descritos e parecem também estar fortemente relacionados com variáveis comportamentais, como estilo de vida e características sócio-demográficas. Estas informações têm sido utilizadas para estabelecer escores de predição clínica para identificar individualmente pessoas com maior risco para eventos. Enfim, são inúmeras as frentes de pesquisas internacionais sobre risco cardiovascular. O fomento a pesquisa clínico-epidemiológico no Brasil deve entender este cenário, para que dados obtidos na nossa população façam parte das descobertas, pois não podemos ficar mais 50 anos atrás!

Referências

1. http://www.framingham.com/heart/backgrnd.htm, acessado em 13/2/2006.

2. Kannel WB. Lessons from curbing the coronary artery disease epidemic for confronting the impending epidemic of heart failure. Med Clin North Am 2004; 88: 1129-33.

3. Yusuf S, Hawken S, Ounpuu S et al. INTERHEART Study Investigators. Effect of potentially modifiable risk factors associated with myocardial infarction in 52 countries (the INTERHEART study): case-control study. Lancet 2004; 364: 937-52.

4. Avezum A, Piegas LS, Pereira JC. Fatores de risco associados com infarto agudo do miocárdio na região metropolitana de São Paulo. Uma região desenvolvida em um país em desenvolvimento. Arq Bras Cardiol 2005; 84: 206-213.

5. Piegas LS, Avezum A, Pereira JC et al. AFIRMAR Study Investigators. Risk factors for myocardial infarction in Brazil. Am Heart J 2003; 146: 331-8.

6. Duncan BB, Schmidt MI, Polanczyk CA, Menegue S. Altas taxas de mortalidade por doenças não transmissíveis em populações brasileiras - uma comparação internacional. Rev Ass Médica Brasileira 1992; 38: 138-44.

7. CDC. Racial/ Ethnic and Socioeconomic disparities in multiple risk factors for heart disease and stroke – United Sates, 2003. MMWR 2005; 54: 113-117.

8. Duncan BB, Schmidt MI, Achutti AC, Polanczyk CA, Benia LR, Maia AAG. Socioeconomic Distribution Of Non-Communicable Disease Risk Factors In Urban Brazil - The Case Of Porto Alegre. Bulletin Of The Panamerican Health Organization 1993; 27: 337-49.

9. Polanczyk CC, Duncan BB, Schmidt MI, Homrich R, Achutti AC. Fatores de risco para doenças não transmissíveis em área metropolitana na região Sul do Brasil. Prevalência e simultaneidade. Rev Saúde Pública de São Paulo 1993; 27: 143-8.

10. Lessa I, Araújo MJ, Magalhães L, Almeida Flho N, Aquino E, Costa MC. Clustering of modifiable cardiovascular risk factors in adults living in Salvador (BA), Brazil. Rev Panam Salud Publica 2004; 16: 131-7.

11. Fox CS, Evans JC, Larson MG, Kannel WB, Levy D. Temporal trends in coronary heart disease mortality and sudden cardiac death from 1950 to 1999: the Framingham Heart Study. Circulation 2004 Aug 3; 110: 522-7.

12. Mansur AP, Souza MF, Timerman A, Ramires JA. Trends of the risk of death due to circulatory, cerebrovascular and ischemic heart disease in 11 Brazilian capitals from 1980 to 1990? Arq Bras Cardiol 2002; 79: 269-84.

  • Endereço para correspondência
    Carísi A. Polanczyk
    Hospital de Clínicas de Porto Alegre
    Rua Ramiro Barcelos, 2350 - S/ 2225
    Cep 90035-007 - Porto Alegre, RS
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      Mar 2005
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