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Custo anual do manejo da cardiopatia isquêmica crônica no Brasil: perspectiva pública e privada

Resumos

OBJETIVO: Estimar o custo anual do manejo da doença arterial coronária (DAC) em valores do SUS e convênios. MÉTODOS: Estudo de coorte, incluindo pacientes ambulatoriais com DAC comprovada. Considerou-se para estimar custos diretos: consultas, exames, procedimentos, internações e medicamentos. Valores de consultas e exames foram obtidos da tabela SUS e da Lista de Procedimentos Médicos (LPM). Valores de eventos cardiovasculares foram obtidos de internações em hospital público e privado com estas classificações diagnósticas em 2002. O preço dos fármacos utilizado foi o de menor custo no mercado. RESULTADOS: Os 147 pacientes (65±12 anos, 63% homens, 69% hipertensos, 35% diabéticos e 59% com IAM prévio) tiveram acompanhamento médio de 24±8 meses. O custo anual médio estimado por paciente foi de R$ 2.733,00, pelo SUS, e R$ 6.788,00, para convênios. O gasto com medicamentos ($ 1.154,00) representou 80% e 55% dos custos ambulatoriais, e 41% e 17% dos gastos totais, pelo SUS e para convênios, respectivamente. A ocorrência de evento cardiovascular teve grande impacto (R$ 4.626,00 vs. R$ 1.312,00, pelo SUS, e R$ 13.453,00 vs. R$ 1.789,00, para convênios, p<0,01). CONCLUSÃO: O custo médio anual do manejo da DAC foi elevado, sendo o tratamento farmacológico o principal determinante dos custos públicos. Essas estimativas podem subsidiar análises econômicas nesta área, sendo úteis para nortear políticas de saúde pública.

custo da doença; análise econômica; doença arterial coronariana; coorte


OBJECTIVE: To estimate the annual cost of coronary artery disease (CAD) management in Public Health Care System (SUS) and HMOs values in Brazil. METHODS: Cohort study, including ambulatory patients with proven CAD. Clinic visits, exams, procedures, hospitalizations and medications were considered to estimate direct costs. Values of appointments and exams were obtained from the SUS and the Medical Procedure List (LPM 1999) reimbursement tables. Costs of cardiovascular events were obtained from admissions in public and private hospitals with similar diagnoses-related group classifications in 2002. The price of medications used was the lowest found in the market. RESULTS: The 147 patients (65±12 years old, 63% men, 69% hypertensive, 35% diabetic and 59% with previous AMI) had an average follow-up of 24±8 months. The average estimated annual cost per patient was R$ 2,733.00, for the public sector, and R$ 6,788.00, for private and fee-for-service plans. Expenses with medications (R$ 1,154.00) represented 80% and 55% of outpatient costs, and 41% and 17% of total expenses, in public and non-public sectors, respectively. The occurrence of cardiovascular event had a great impact (R$ 4,626.00 vs. R$ 1,312.00, in SUS, and R$ 13,453.00 vs. R$ 1,789.00, for HMOs, p<0.01) on the results. CONCLUSION: The average annual cost of CAD management was high, being the pharmacological treatment the main determinant of public costs. Such estimates may subsidize economical analyses in this area, and foster related healthcare policies.

cost of illness; economical analysis; coronary artery disease; cohort


ARTIGO ORIGINAL

Custo anual do manejo da cardiopatia isquêmica crônica no Brasil. Perspectiva pública e privada

Rodrigo A. Ribeiro; Renato G. B. Mello; Raquel Melchior; Juliana C. Dill; Clarissa B. Hohmann; Angélica M. Lucchese; Ricardo Stein; Jorge Pinto Ribeiro; Carisi A. Polanczyk

Hospital das Clínicas de Porto Alegre, Hospital Moinhos de Vento e Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre, RS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rodrigo Antonini Ribeiro Rua Vitor Hugo, 266/401 90630-070 - Porto Alegre, RS E-mail: raribeiro@via-rs.net

RESUMO

OBJETIVO: Estimar o custo anual do manejo da doença arterial coronária (DAC) em valores do SUS e convênios.

MÉTODOS: Estudo de coorte, incluindo pacientes ambulatoriais com DAC comprovada. Considerou-se para estimar custos diretos: consultas, exames, procedimentos, internações e medicamentos. Valores de consultas e exames foram obtidos da tabela SUS e da Lista de Procedimentos Médicos (LPM). Valores de eventos cardiovasculares foram obtidos de internações em hospital público e privado com estas classificações diagnósticas em 2002. O preço dos fármacos utilizado foi o de menor custo no mercado.

RESULTADOS: Os 147 pacientes (65±12 anos, 63% homens, 69% hipertensos, 35% diabéticos e 59% com IAM prévio) tiveram acompanhamento médio de 24±8 meses. O custo anual médio estimado por paciente foi de R$ 2.733,00, pelo SUS, e R$ 6.788,00, para convênios. O gasto com medicamentos ($ 1.154,00) representou 80% e 55% dos custos ambulatoriais, e 41% e 17% dos gastos totais, pelo SUS e para convênios, respectivamente. A ocorrência de evento cardiovascular teve grande impacto (R$ 4.626,00 vs. R$ 1.312,00, pelo SUS, e R$ 13.453,00 vs. R$ 1.789,00, para convênios, p<0,01).

CONCLUSÃO: O custo médio anual do manejo da DAC foi elevado, sendo o tratamento farmacológico o principal determinante dos custos públicos. Essas estimativas podem subsidiar análises econômicas nesta área, sendo úteis para nortear políticas de saúde pública.

Palavras-chave: custo da doença, análise econômica, doença arterial coronariana, coorte

As doenças cardiovasculares são as principais causas de morte no Brasil. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do DATASUS do Ministério da Saúde, o coeficiente de mortalidade por doenças cardiovasculares é de aproximadamente 442/100.000 habitantes1.

Além disso, a doença arterial coronariana (DAC) está associada a importante morbidade. A necessidade de internações hospitalares, procedimentos diagnósticos e terapêuticos, acompanhamento médico e tratamento farmacológico continuado determinam um impacto econômico expressivo, segundo fontes governamentais. Estimativas dos custos desses eventos são essenciais para estudos de avaliação econômica e custo-efetividade das tecnologias direcionadas ao manejo da cardiopatia isquêmica.

Em diversos países, o custo direto, relacionado ao manejo de pacientes portadores de doença arterial coronariana, tem sido descrito como elevado. No Reino Unido, foi calculado o custo do manejo da angina pectoris pelo Sistema Nacional de Saúde (National Health Service - NHS), no ano de 2000, com base em gastos com admissões hospitalares, procedimentos de revascularização, consultas ambulatoriais, visitas a emergência e tratamento farmacológico prescrito. Em 634.000 indivíduos avaliados (1,1% da população), o custo direto do manejo da angina atingiu 669 milhões de libras (1,3% dos gastos totais do NHS), 32% dos gastos com internação hospitalar e 35%, com procedimentos de revascularização2. Nos Estados Unidos, por exemplo, o custo anual estimado para o tratamento de eventos relacionados à cardiopatia isquêmica foi de US$ 15.540,00 para infarto não-fatal, US$ 2.569,00, para angina estável, e US$ 12.058,00, para angina instável, no ano de 19983.

No Brasil, a maioria das informações sobre o impacto econômico da cardiopatia isquêmica é proveniente de banco de dados administrativos do DATASUS. Embora possuam um número expressivo de registros e cobertura nacional, os dados refletem os gastos do Sistema Único de Saúde com esta doença e não consideram, necessariamente, todos os recursos utilizados. Além disso, apresentam a principal limitação de registros administrativos: baixa confiabilidade das informações. Neste contexto, o objetivo desse estudo é estimar o custo anual do manejo usual de pacientes com doença isquêmica crônica do coração em dois cenários de prestação de serviço em saúde no Brasil: sistema público e medicina suplementar de convênios e privado. Para tal, foram utilizados dados de uma coorte de pacientes com cardiopatia isquêmica atendidos, periodicamente, em um ambulatório especializado.

Métodos

O ambulatório de cardiopatia isquêmica do nosso hospital é especializado no atendimento de pacientes com coronariopatia crônica. Atualmente, a coorte é composta por, aproximadamente, 400 pacientes com diagnóstico de doença arterial coronariana (DAC), definido pela presença de, pelo menos, um dos seguintes fatores: história documentada de infarto do miocárdio, revascularização do miocárdio cirúrgica ou percutânea, lesão >50% em pelo menos uma artéria coronária avaliada por angiografia, ou presença de indivíduos com angina e teste não-invasivo positivo para isquemia. A maioria dos indivíduos consiste de pacientes hospitalizados previamente na instituição por um evento cardíaco agudo. Por ser um centro de referência na região, 10 a 15% do seu atendimento é direcionado a casos encaminhados pelos postos de saúde da Secretaria Municipal, sendo o restante dos encaminhamentos de outros serviços do hospital. O seguimento da coorte em estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Instituição.

Os pacientes recebem acompanhamento de equipe multidisciplinar, sendo todo o manejo realizado no ambulatório, incluindo suporte nutricional, orientações sobre fatores de risco para DAC e controle farmacológico e não-farmacológico da doença, solicitação e realização de exames4-6. Os pacientes são manejados segundo as recomendações vigentes de diretrizes e consensos de especialistas, havendo revisão periódica de protocolos de atendimento. Pacientes estáveis são reavaliados periodicamente a cada 3 a 6 meses.

Para o presente estudo, foram selecionados, dentro da coorte do ambulatório, todos os pacientes atendidos após janeiro de 2000, acompanhados por pelo menos 12 meses, com um número mínimo de três consultas no período. Dos 245 pacientes arrolados, após janeiro de 2000, 147 preenchiam os demais critérios de inclusão.

As informações clínicas desta amostra são provenientes da coleta de dados de rotina do ambulatório de cardiopatia isquêmica. Para cada atendimento, é preenchido um cadastro padronizado na primeira consulta, onde são registradas informações sobre a história da doença atual; fatores de risco para DAC; história médica e cardiológica pregressa; eventos, exames e procedimentos cardiológicos prévios; tratamentos prévio e corrente. Nas consultas subseqüentes, que ocorrem com intervalo médio de três meses, são registrados: sinais e sintomas atuais; novos eventos, incluindo dados de internação; procedimentos realizados no período; exames de imagem, laboratoriais e exames cardiológicos; e tratamento farmacológico corrente.

Todos os dados referentes a exames, procedimentos e internações foram conferidos no sistema informatizado do hospital (AGH - Aplicativo de Gestão Hospitalar), para otimizar a confiabilidade dos dados e minimizar a perda de informação. Visto que somente os exames realizados após janeiro de 2000 estão disponíveis neste sistema, os pacientes que tivessem iniciado acompanhamento no ambulatório antes dessa data, por conseguinte com possibilidade de terem realizado exames não registrados neste sistema, foram excluídos do estudo.

Para este estudo, foi adotada a perspectiva de dois pagadores, público e privado/convênios no Brasil. Eles são o reflexo de valores cobrados para prestação de serviços e não, necessariamente, refletem custos, mas podem servir como uma aproximação do custo de oportunidade de cada sistema. Os valores do tratamento foram avaliados por dois sistemas de remuneração: os valores do Sistema Único de Saúde (SUS) e os da Lista de Procedimentos Médicos (LPM)7, e são referidos como custos para terceiros. Os custos unitários estimados serviram como base para o cálculo do custo total, estimado pelo produto do custo unitário e a quantidade de cada item utilizado.

Foram avaliados os custos do tratamento farmacológico, exames de laboratório, cintilografia miocárdica perfusional, ecocardiografia com Doppler de fluxo em cores, eletrocardiograma de repouso e de esforço, cateterismo cardíaco esquerdo com cineangiocoronariografia, consultas ao ambulatório e à emergência e internações por intercorrências da doença ou para realização de procedimento de revascularização.

Os valores do tratamento farmacológico foram baseados no custo do medicamento genérico de menor preço no mercado. Em casos de medicamentos com inexistência de produto genérico no mercado, o custo foi baseado no valor de marca de menor preço. Os custos de exames laboratoriais, exames de imagem, métodos gráficos e consultas foram retirados da tabela vigente do SUS e tabela da LPM de 1996 (corrigida 1999), apresentados na tabela I.

Os custos de internações e revascularização não foram baseados em coleta de dados primários dos pacientes do ambulatório, mas em valores médios cobrados por diagnóstico para casos semelhantes. Estas estimativas foram obtidas da conta analítico-financeira de casos semelhantes, atendidos em um hospital público e um hospital particular no Brasil, ou seja, o valor efetivamente cobrado pelo prestador de serviço (tab. II). Na perspectiva do pagador público, foram obtidos custos médios para as intervenções considerando a prestação de serviço por um hospital SUS do Brasil. Para estas estimativas, foram analisados 436 casos de procedimentos percutâneos, 159 cirurgias de revascularização (CRM), 58 infartos agudo do miocárdio, 262 internações por síndrome coronariana aguda e 476 casos de insuficiência cardíaca, no ano de 2002 (tab. II). Em hospital privado, foram analisados, no ano de 2002, 17 casos de angina instável, 10 infartos agudos, 20 casos de insuficiência cardíaca, 58 revascularizações percutâneas e 27 CRMs, para obtenção de gastos médios com cada procedimento (tab. II), além da inclusão dos honorários de profissionais autônomos previstos na tabela LPM 967.

Os custos foram calculados como produto entre os recursos utilizados e o valor unitário de cada produto. O custo total do período de seguimento foi então divido pelo número de anos que o paciente foi acompanhado, obtendo-se o valor anual médio. Os dados são expressos como valores médios (medianos) em reais (R$) por ano de acompanhamento. Os custos relacionados com manejo ou controle de outras doenças concomitantes ou custos indiretos, como tempo despendido com o tratamento e improdutivo, não foram incluídos nas análises.

Os custos foram avaliados em sua totalidade e subdivididos em gastos com manejo ambulatorial (todos os exames feitos de ambulatório, consultas, tratamento farmacológico) e hospitalar (internações e revascularização). Para ambas estimativas, parciais e total, foram avaliados potenciais preditores clínicos de maior custo: presença de diabete melito, hipertensão, tabagismo, dislipidemia, sexo, idade e infarto do miocárdio prévio.

Os dados descritivos estão relatados como percentual para variáveis categóricas e média, com intervalo de confiança ou mediana e variação inter-quartis (IQR), para variáveis contínuas. Os custos estão representados como média (para representar a melhor estimativa por paciente) e em mediana (para representar a melhor estimativa de custo de um paciente típico). As variáveis com distribuição não normal sofreram transformação logarítmica para atingir uma distribuição mais normal. Os valores ambulatoriais e totais foram comparados por teste T de Student para amostras independentes. Os valores hospitalares, mesmo após transformação logarítmica, ficaram desviados e foram avaliados com teste de Mann-Whitney. A análise bivariada e multivariada foi realizada com testes de modelos lineares (GLM), que não pressupõe normalidade de resíduos. Um valor de p<0,05 foi considerado estatisticamente significativo.

Resultados

Foram selecionados 147 pacientes que preenchiam os critérios de inclusão, com acompanhamento médio de 24±8 meses; suas características na entrada no estudo estão descritas na tabela III. No seguimento destes pacientes, 63 (43%) realizaram cateterismo (total de cateterismos: 70), 33 (22%) foram submetidos à intervenção coronariana percutânea (ICP) (total de ICPs: 39), 15 (10%) realizaram cirurgia de revascularização miocárdica (CRM) e 47 (32%) foram internados por causas cardiovasculares (total de internações: 69).

A média do custo anual do atendimento nesta amostra, com base nos valores pagos pelo SUS, foi de R$ 2.733,00±2.307,00 [mediana R$ 1.771,00], sendo o custo do manejo ambulatorial responsável por 54,4% deste total (tab. IV). Os gastos com o tratamento farmacológico cardiovascular foram os maiores contribuintes para o custo do tratamento anual do cardiopata isquêmico (R$ 1.154,00), representando 77,5% dos custos ambulatoriais e 42% do total (fig. 1). O tratamento farmacológico consistiu de combinações de antiagregantes, antianginosos, antidiabéticos, anti-hipertensivos e hipolipemiantes para a maioria dos pacientes (tab. V). Em média, os pacientes usavam 4,4±1,3 (mediana 4 e IQR 3-5) diferentes classes de fármacos, a um custo médio anual de R$ 1.154,00 [mediana R$ 1.126,00 e IQR R$ 812,00 - R$ 1.446,00]. Indivíduos com eventos cardiovasculares tiveram um custo 3 vezes maior que aqueles sem eventos descritos no período (R$ 4.626,00 vs. R$ 1.312,00, p=0,001).


Nos valores do sistema de medicina suplementar, a média do custo por paciente foi de R$ 6.788,00±7.842,00 [mediana R$ 2.670,00], sendo que os gastos hospitalares corresponderam a 69% deste valor (tab. IV). As internações representaram 34% do total hospitalar e 23% do geral, percentual semelhante à CRM - 28% do gasto hospitalar e 20% do total, e à revascularização percutânea - 31% e 21%, respectivamente. O impacto da presença de eventos no total dos custos foi muito expressiva (R$ 13.453,00 versus R$ 1.788,00; p<0,001). Na análise das parcelas do custo ambulatorial, o tratamento farmacológico ainda foi seu maior determinante, mesmo assumindo os menores valores de mercado (fig. 1). Entretanto, o mesmo correspondeu a 55% do gasto ambulatorial, percentual menos expressivo que na avaliação do SUS.

Na análise de preditores de risco cardíaco, pelo ponto de vista do sistema público, hipertensão arterial sistêmica e sexo feminino tiveram uma associação com maior custo no manejo ambulatorial (tab. VI). Indivíduos com diabete melito tiveram uma tendência a um maior custo. No que tange ao custo anual total do tratamento, somente a presença de hipertensão arterial obteve associação positiva com maior custo. Na análise dos mesmos preditores pelos valores do sistema de convênios, nenhuma dessas associações manteve significância estatística (dados não apresentados).

Na medida que esta coorte de pacientes é composta de um grupo de alto risco e, neste período analisado, 44% dos casos tiveram algum evento maior (internação e/ou procedimento de revascularização), não necessariamente os dados globais são representativos de outras populações. Para avaliar o impacto desta variável nos dados, foi feita uma estimativa do custo total do manejo da cardiopatia isquêmica, variando-se a probabilidade de eventos no grupo de 0% a 50%, e os resultados encontrados estão ilustrados na figura 2.


Discussão

É de conhecimento público o fato da doença arterial coronária gerar gastos diretos e indiretos para governos, planos de saúde e para um número muito significativo de pacientes que, por anos, têm convivido com gastos crescentes e infindáveis no setor saúde. Nesta coorte ambulatorial de pacientes com coronariopatia crônica, tratados de acordo com as evidências da literatura científica, os custos anuais se mostraram muito elevados. Através destes dados observados, mostramos que os principais determinantes no quesito dispêndio se relacionam ao tratamento farmacológico crônico e às intervenções invasivas (cateterismo cardíaco e procedimentos de revascularização), tanto para os pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde, como para aqueles que são atendidos por diferentes planos de saúde e assistência privada, configurando a medicina suplementar no país. No entanto, chama a atenção que o custo total e parcial anual do manejo desta enfermidade difere, em muito, na comparação entre os gastos atribuídos à coronariopatia vivenciados pelos pacientes do SUS e àquele relacionado à área privada. Este fato é mais expressivo ainda quando o paciente apresenta um evento coronário agudo e necessita de internação ou intervenção. Enquanto no SUS o custo, em média, triplica para convênios e particulares o mesmo é multiplicado por sete. Por outro lado, independente do prestador, o custo com tratamento farmacológico representa um percentual elevado no custo anual total.

Assumindo a premissa que estes valores não devem reduzir nos próximos anos, com os avanços tecnológicos e as descobertas constantes na área, o futuro é bastante preocupante. Em um país com uma renda per capita de R$ 9.380,00 (US$ 3.330,00) e salário mínimo de R$ 260,00, somente a prestação de assistência em saúde por sistemas estáveis pode arcar com estas despesas, assegurando que terapias, que, comprovadamente, têm impacto em morbidade e mortalidade, sejam oferecidas a esta população. Mesmo assim, parece claro que as despesas com tratamento farmacológico crônico assumiram um montante expressivo para estes pacientes. Neste estudo, não diferenciamos quem adquiriu o fármaco - parte pode ter sido subsidiada pelas farmácias públicas, mas, na nossa experiência, a maioria tem sido de responsabilidade do próprio paciente e seus familiares5. Formas de subsidiar ou reduzir os preços dos fármacos devem ser perseguidas para assegurar a assistência ambulatorial destes pacientes. Ao contrário de outras doenças, é de especular-se que um percentual expressivo da nossa população não possa garantir o manejo farmacológico regular nos patamares descritos neste estudo. Em um estudo anterior, demonstramos nesta mesma coorte de pacientes que, para aqueles atendidos no sistema público, os custos com fármacos é um dos motivos mais freqüentes de não adesão ao tratamento prescrito5.

Estudos semelhantes no Brasil são escassos e comparações com outros países devem ser conduzidas com cautela, na medida que a simples conversão monetária dos achados não reflete poder aquisitivo da população8,9. Na comparação de indicadores econômicos entre países, tem sido recomendada a conversão para dólares internacionais, ou seja, um dólar internacional (UI) equivale ao mesmo poder de compra de um dólar americano nos Estados Unidos. Usando esta recomendação da Organização Mundial da Saúde para conversão em unidades internacionais [purchasing power parity (PPP): 1 UI$=R$ 0,776, em 2000], os custos com manejo de DAC teriam sido estimados em UI$ 3.522,00 e UI$ 8.747,00, para o setor público e privado, respectivamente.

Um estudo semelhante, realizado nos EUA2, estimou que a média de custo por paciente com doença arterial coronariana, em 5 anos, é de aproximadamente US$ 15.000,00, valor anual de US$ 3.000,00, ou seja, semelhante aos valores convertidos descritos neste estudo para o setor público e, de modo surpreendente, inferiores aos pagos pelo setor privado no Brasil. Esta análise, baseada em estimativas governamentais americanas, descreve que o custo anual para o manejo de DAC era ainda mais baixo para casos ambulatoriais, U$ 2.569,00 para angina estável e, em casos sem eventos, de U$ 1.051,00 por ano2. Dados do Reino Unido apontam para valores anuais mais baixos para tratamento farmacológico de casos com angina ou pós-evento agudo, de <311 (~US$ 560,00)10. Parece que, ajustando para diferenças monetárias, o custo da DAC para população brasileira é superior ao descrito em outros países, especialmente o acompanhamento ambulatorial, desconsiderando eventos e intervenções.

No Reino Unido, no ano de 2000, foi estimado um gasto de 669 milhões de libras como custo direto do manejo da angina pectoris, sendo que 32% dos gastos foram com internação hospitalar e 35%, com procedimentos de revascularização3. No Brasil, estimamos que mais da metade dos gastos com DAC são destinados ao manejo ambulatorial (53%). Estas diferenças não são de modo algum surpreendentes, pois, embora a população para qual foi estimado o custo fosse de alto risco, com percentual elevado de eventos, os custos relacionados a intervenções é menor no nosso País. Relatos de outras doenças apontam para remuneração proporcionalmente inferior para profissionais de saúde no Brasil.

De modo semelhante a outros setores, variáveis clínicas não se mostraram fortes preditores de custos. Neste estudo, apenas hipertensão arterial sistêmica, diabete melito e sexo feminino se relacionaram com maiores gastos. A relação entre a presença de hipertensão, o maior gasto no manejo ambulatorial e maior custo anual total pode ser explicado por um número maior de drogas utilizadas. O grande impacto que a ocorrência de eventos causou nos custos é também compreensível, devido à necessidade de internação, realização de exames de imagem mais complexos e de procedimentos de revascularização.

Algumas limitações do nosso estudo devem ser mencionadas. Os pacientes incluídos são atendidos em um ambulatório especializado no atendimento de cardiopatia isquêmica, com controles rígidos e freqüentes, e com apoio multidisciplinar, ou seja, todos recebem o tratamento preconizado pelas diretrizes atuais. Além disso, grande parte dos pacientes recebe parte da terapia farmacológica de forma gratuita nos postos de saúde, facilitando seu acesso aos protocolos de atendimento padronizados para cardiopatia isquêmica. Isso não se reflete em todas as partes do país, podendo haver uma subestimativa do impacto econômico, na medida que o acesso a atendimentos médicos e tratamentos são contingenciados por outros fatores que não a demanda.

Em conclusão, demonstramos, através de um estudo prospectivo e observacional, que o custo da doença arterial coronariana é elevado tanto para o setor público, quanto privado. Os dois principais determinantes do alto custo são as internações com instabilização da doença e o manejo farmacológico crônico. Comparações com outros países, ajustando para diferenças monetárias e poder aquisitivo, apontam, de modo inesperado, para custos mais elevados que aqueles relatados por países desenvolvidos. O reconhecimento deste fato deveria reforçar a busca de medidas mais efetivas de subsídio e/ou redução dos preços de fármacos, sob o ônus de não conseguirmos oferecer a melhor evidência científica a nossa população.

7. http://www.calcmed.com.br/tabelasnet/tabelas_convenios.asp, acessado em 30/06/2004.

9. http://www3.who.int/whosis/cea/prices/ppp.cfm, acessado em 28/09/2004.

Enviado em: 12/11/2004

Aceito em: 09/02/2005

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  • Endereço para correspondência

    Rodrigo Antonini Ribeiro
    Rua Vitor Hugo, 266/401
    90630-070 - Porto Alegre, RS
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2005

    Histórico

    • Recebido
      12 Nov 2004
    • Aceito
      09 Fev 2005
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