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Estratégia cirúrgica na transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto após o período neonatal

Resumos

OBJETIVO: Analisar o resultado cirúrgico em portadores de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto, operados após o período neonatal. MÉTODOS: Entre janeiro de 1998 e março de 2004 foram atendidas 121 crianças com transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto, sendo 29 (24%) após o período neonatal. A seleção para tratamento cirúrgico foi baseada na avaliação ecocardiográfica pelo cálculo da massa do ventrículo esquerdo e da configuração do septo interventricular. Das 29 crianças, 12 foram selecionadas para correção anatômica primária, 12 para correção em dois estágios, após preparo cirúrgico do ventrículo esquerdo e 5 submetidas a correção atrial. RESULTADOS: No grupo submetido à correção anatômica primária houve 1 (8,3%) óbito hospitalar por sepsis. No grupo de correção em dois estágios, 5 pacientes foram submetidos ao preparo lento, com correção 3-6 meses após o 1º estágio, ocorrendo 4 óbitos após o 1º estágio. Este fato determinou mudança no nosso protocolo, adotando-se a técnica de preparo rápido nos outros 7 pacientes, tendo todos atingido o 2º estágio. Das 8 crianças submetidas ao 2º estágio houve 1 óbito hospitalar e outro óbito tardio. A evolução clínica tardia das crianças de ambos os grupos é excelente. CONCLUSÃO: A seleção ecocardiográfica adequada da transposição de grandes artérias com septo interventricular intacto quando abordada após o período neonatal, permitiu uma orientação segura da escolha da melhor abordagem cirúrgica nestes pacientes.

transposição das grandes artérias; septo interventricular intacto; correção anatômica; preparo ventricular


OBJECTIVE: To assess the surgical results in patients with transposition of the great arteries and intact ventricular septum undergoing surgery after the neonatal period. METHODS: From January 1998 to March 2004, 121 children with transposition of the great arteries with intact ventricular septum were treated, 29 (24%) of whom after the neonatal period. Selection for surgical treatment was based on echocardiographic assessment by use of the calculation of left ventricular mass and configuration of the ventricular septum. Of the 29 children, 12 were selected for primary anatomic correction, 12 for 2-stage correction after surgical preparation of the left ventricle, and 5 underwent atrial correction. RESULTS: In the group undergoing primary anatomic correction, one (8.3%) patient died at the hospital due to sepsis. In the group undergoing 2-stage correction, 5 patients underwent slow preparation with correction 3-6 months after the first stage, 4 of whom died after the first stage. This fact caused a change in our protocol, with adoption of the rapid preparation technique in the other 7 patients, of whom all achieved the second stage. Of the 8 children undergoing the second stage, one died at the hospital and another died later. Late clinical evolution of the children in both groups is excellent. CONCLUSION: The echocardiographic selection allowed a safe choice of the best surgical approach for patients with transposition of the great arteries and intact ventricular septum after the neonatal period.

transposition of the great arteries; intact ventricular septum; anatomic correction; ventricular preparation


ARTIGO ORIGINAL

Estratégia cirúrgica na transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto após o período neonatal

Bayard Gontijo Filho; Fernando A. Fantini; Cristiane Martins; Roberto Max Lopes; Roberto de S. Thiago Pereira; Sonia Maria Rabelo; Eliana Heyden; Érika Vrandecic; Mario O. Vrandecic

Biocor Instituto - Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Bayard Gontijo Filho - Rua Felipe dos Santos, 319/1201 30180-160 - Belo Horizonte, MG E-mail: bgontijo@cardiol.br

RESUMO

OBJETIVO: Analisar o resultado cirúrgico em portadores de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto, operados após o período neonatal.

MÉTODOS: Entre janeiro de 1998 e março de 2004 foram atendidas 121 crianças com transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto, sendo 29 (24%) após o período neonatal. A seleção para tratamento cirúrgico foi baseada na avaliação ecocardiográfica pelo cálculo da massa do ventrículo esquerdo e da configuração do septo interventricular. Das 29 crianças, 12 foram selecionadas para correção anatômica primária, 12 para correção em dois estágios, após preparo cirúrgico do ventrículo esquerdo e 5 submetidas a correção atrial.

RESULTADOS: No grupo submetido à correção anatômica primária houve 1 (8,3%) óbito hospitalar por sepsis. No grupo de correção em dois estágios, 5 pacientes foram submetidos ao preparo lento, com correção 3-6 meses após o 1º estágio, ocorrendo 4 óbitos após o 1º estágio. Este fato determinou mudança no nosso protocolo, adotando-se a técnica de preparo rápido nos outros 7 pacientes, tendo todos atingido o 2º estágio. Das 8 crianças submetidas ao 2º estágio houve 1 óbito hospitalar e outro óbito tardio. A evolução clínica tardia das crianças de ambos os grupos é excelente.

CONCLUSÃO: A seleção ecocardiográfica adequada da transposição de grandes artérias com septo interventricular intacto quando abordada após o período neonatal, permitiu uma orientação segura da escolha da melhor abordagem cirúrgica nestes pacientes.

Palavras-chave: transposição das grandes artérias, septo interventricular intacto, correção anatômica, preparo ventricular

A correção anatômica ou cirurgia de Jatene1 no período neonatal é a técnica de escolha para tratamento cirúrgico da transposição das grandes artérias (TGA) com septo interventricular intacto(SIVI). A operação deve ser realizada até 15º dia de vida, podendo este período ser estendido com certa segurança até o final do 1º mês2. Após essa data, a queda progressiva da resistência vascular pulmonar recondiciona o desempenho do ventrículo esquerdo (VE) a um circuito de baixa pressão com diminuição progressiva da sua massa muscular3. A correção cirúrgica nesta circunstância pode precipitar uma descompensação ventricular significativa no pós-operatório imediato pela incapacidade do VE em assumir agudamente a circulação sistêmica. Determinar exatamente este momento é muito importante, pois freqüentemente, abordamos crianças que nos são encaminhadas para correção de transposição das grandes artérias após o 1º mês de vida, que deverão ser selecionadas, através de estudo ecocardiográfico para uma ainda possível correção anatômica primária ou para um outro tipo de correção (atrial ou anatômica em dois estágios) caso o ventrículo esquerdo não esteja adequado para assumir a função sistêmica. Neste relato analisamos nossa experiência na abordagem de crianças portadoras de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto avaliadas após o período neonatal.

Métodos

O protocolo de correção anatômica primária da transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto foi implantado em nosso serviço, de forma sistemática, a partir de janeiro de 1998 e, dois anos depois, iniciamos o processo de correção anatômica em dois estágios, após preparo ventricular, aceito pela Comissão de Ética do Instituto em março de 1999. De janeiro de 1998 a março de 2004 foram atendidas 121 crianças portadoras de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto. Das 121 atendidas, 92 (76%) foram avaliadas ainda no 1º mês de vida, todas submetidas à correção primária pela técnica de Jatene. As outras 29 (24%) crianças foram encaminhadas, depois do 1º mês de vida, devido a complicações no período neonatal ou mesmo pela demora de confirmação diagnóstica. Após avaliação clínica e ecocardiográfica foram selecionadas para tratamento cirúrgico. Doze crianças, com idade média de 45,4 dias foram encaminhadas para correção anatômica primária e outras 12, com idade média de 3,3 meses, para correção em dois estágios após realização do preparo ventricular. As outras cinco crianças, atendidas antes da correção em dois estágios, foram submetidas à correção atrial pela técnica de Senning. Nossa estratégia inicial nos casos de correção em dois estágios previa o preparo ventricular lento, segundo Yacoub e cols.4, com correção anatômica tardia, geralmente entre 2 a 6 meses após a alta hospitalar. Este procedimento foi empregado em 5 crianças. Posteriormente esta tática foi substituída pela técnica de preparo rápido preconizada por Jonas5 com correção definitiva realizada no mesmo período de internação, e empregada nos outros 7 pacientes. Os principais dados demográficos observados no grupo da correção primária e no de correção em dois estágios encontram-se na tabela I, sendo identificadas diferenças significativas apenas na idade média na época do primeiro procedimento cirúrgico e do peso médio dos pacientes nesta ocasião. Para descrição da anatomia coronariana foi utilizada a classificação de Yacoub e cols.4.

A avaliação ecocardiográfica realizada em crianças admitidas durante o período neonatal não influenciou nossa conduta, já que em todos os casos indicamos a correção anatômica primária sistemática. No grupo atendido após o período neonatal, o ecocardiograma foi o fator determinante principal na seleção para tratamento cirúrgico. Na admissão da criança foi realizado um ecocardiograma bidimensional por um único observador (aparelho marca ATL, modelo HDI-3500), sendo considerados os parâmetros: diâmetro diastólico final do VE (DDF), espessura da parede posterior (PPVE) e do septo interventricular (SIV) através dos quais calculamos a massa miocárdica do VE pela fórmula preconizada pela Sociedade Americana de Ecocardiografia3, posteriormente corrigida para a superfície corporal6. Os cortes para-esternal e subcostal foram utilizados para avaliação da configuração do SIV, classificado em 3 tipos: tipo 1= SIV abaulando para o VD, tipo 2= SIV retificado e tipo 3= SIV abaulando para o VE (banana-shape). Além disto verificamos a presença de fluxo pelo canal arterial e a existência de obstruções na via de saída do VE. Um índice de massa ventricular de 35 g/m2 foi considerado limite inferior para indicação da correção anatômica primária, associando-se a este dado a configuração do septo interventricular (tipos I ou II). A massa ventricular esquerda média do grupo de correção em 2 estágios foi de 31,3 +0,926 g/m2 (mediana=31,2), sendo que 66,7% das crianças apresentavam septo do tipo III (banana shape) e as demais apresentavam septo do tipo II. Após a realização do 1º estágio para preparo ventricular, os pacientes foram submetidos à avaliação ecocardiográfica diária e reanalisados os seguintes parâmetros: a massa ventricular, a função sistólica do VE, a configuração do SIV e a determinação do gradiente através da cerclagem da artéria pulmonar (AP) A indicação para a correção anatômica (2º estágio) foi confirmada após aquisição de massa ventricular significativa e da retificação completa do SIV.

O primeiro estágio foi realizado através de toracotomia póstero-lateral esquerda no 4º espaço intercostal. Confeccionamos a anastomose sistêmico-pulmonar com prótese de PTFE de 5 mm, interposta entre a artéria subclávia esquerda e a AP, sendo esta anastomose realizada na porção intrapericárdica da AP, após secção do ligamento arterioso e ressecção de sua base. Com esta derivação técnica, facilitamos a abordagem da prótese no 2º tempo cirúrgico e evitamos distorções e aderências junto ao ramo esquerdo da AP que necessita ser amplamente mobilizado durante a correção definitiva. Em seguida realizamos a cerclagem da AP com tira de PTFE sendo monitorizadas, simultaneamente, as pressões sistólicas da cavidade ventricular esquerda e sistêmica, estabelecendo-se como parâmetro uma relação pressão sistólica VE/sistêmica próxima de 0,7. Estabelecemos o uso sistemático de milrinona e epinefrina no per e pós-operatório imediato fazendo-se a transição para vasodilatador oral após 48 h. A evolução pós-operatória, quase sempre é complicada por síndrome de baixo débito, hipoxemia e oligúria devido a um aumento súbito da pós-carga imposto ao VE. Este quadro dura aproximadamente 48 h, exigindo cuidados críticos neste período. Após esta fase, observamos uma melhora progressiva do desempenho ventricular, acompanhada diariamente pela avaliação ecocardiográfica até se atingir os parâmetros necessários para indicação do 2º estágio.

A técnica de correção anatômica, primária ou como 2º estágio (cirurgia de Jatene)7, já foi citada. Basicamente utilizamos a circulação extracorpórea (CEC) com hipotermia moderada (28º C), associando-se a vasodilatação com nitroprussiato de sódio em regime de normofluxo arterial. A proteção miocárdica foi realizada com dose única de cardioplegia sanguínea. Foi utilizada a manobra de Lecompte em todos os pacientes, procedendo-se em seguida a reconstrução da neo-aorta. A transferência coronariana foi realizada após identificação do local do implante, determinada com a aorta distendida pelo fluxo arterial. Empregamos normalmente o reimplante em botão, sendo os retalhos do tipo trap-door indicados na presença de óstio coronariano único ou de coronárias com trajeto retro-pulmonar. A reconstrução da neopulmonar foi realizada com dois retalhos de pericárdio autólogo. O fechamento secundário do esterno foi indicado em situações de disfunção ventricular ou de sangramento aumentado.

O teste "T" de Student foi empregado para avaliar comparativamente os grupos quanto aos dados qualitativos. Os dados estão expressos na forma de mediana ou média ± desvio padrão. O nível de significância estabelecida para análise foi de 5%.

Resultado

Das 12 crianças submetidas à correção anatômica primária, apenas uma faleceu, e a mortalidade hospitalar foi de 8,3%. Tratava-se de uma criança de 34 dias de vida com anatomia coronariana do tipo IA (Yacoub) que apresentou instabilidade hemodinâmica importante, acompanhada de bloqueio átrioventricular total (BAVT) logo após a esternotomia exigindo a instalação de circulação extracorpórea em condições desfavoráveis. Após a correção, foi mantida em protocolo de esternorrafia secundária e evoluiu com síndrome de baixo débito importante, necessitando altas doses de inotrópicos. Após estabilização do quadro hemodinâmico foi realizada a esternorrafia no 3º dia pós-operatório (DPO) com boa evolução cardiovascular, porém, sobrevindo quadro de infecção pulmonar, sepsis e óbito no 8º DPO. O tempo médio de permanência na terapia intensiva dos outros pacientes foi de 5,9 dias, sendo a estadia prolongada relacionada a problemas pulmonares ou a necessidade de ajustes farmacológicos, como na transição de aminas intravenosas para drogas vasodilatadoras orais. Houve um caso de reoperação para revisão de hemostasia. Em outro paciente, foi necessária esternorrafia secundária, com reaproximação no 2º DPO. A evolução após a alta hospitalar não apresentou intercorrências nos 11 sobreviventes, todos em ótima condição clínica.

Entre os 5 pacientes submetidos ao preparo lento, houve 4 óbitos após o 1º estágio, antes de se completar a correção definitiva, sendo 1 óbito hospitalar e 3 após a alta. Esses óbitos ocorreram durante a fase inicial; o 1º ocorreu no primeiro paciente que evoluía bem e apresentou piora clínica súbita e hipoxemia severa no 1º DPO. Indicado estudo hemodinâmico que demonstrou migração da cerclagem da AP e obstrução do ramo direito da AP. A criança foi reoperada em condição crítica vindo a falecer durante a reoperação. Dos 3 óbitos ocorridos após alta hospitalar, dois ocorreram de forma súbita no 2º e 3º mês pós-operatório, respectivamente. A outra criança foi reinternada com grave infecção pulmonar, no 2º mês pós-operatório vindo a falecer 48 h depois. Das 7 crianças submetidas ao preparo rápido todas completaram o protocolo, e efetuada a correção anatômica no mesmo período de internação. Complicações pulmonares ocorreram em dois pacientes com boa resolução clínica e uma outra criança necessitou ser reoperada para revisão da anastomose sistêmico-pulmonar, que apresentava trombose junto à artéria subclávia.

A aquisição de massa ventricular esquerda foi de aproximadamente 1,6 g/dia e este ganho não ultrapassou 4,6 g/dia, com o pico máximo da hipertrofia miocárdica ocorrida em torno do 2º DPO e prolongando-se até o final da 1º semana (tab. II). Nesse momento, a massa ventricular média foi 43,7+1,1 gm/m2 (mediana=44,2). A fração de ejeção média do VE que era de 63,5% +10,9% (mediana=66,5%) no pré-operatório, apresentou queda significativa nos dois primeiros dias após o preparo, caindo para 37,0%+6,3% (mediana=39,2%), retornando gradativamente ao normal ao final de uma semana. O gradiente VE/TP médio máximo observado ao longo da 1º semana foi de 55,7±5,1 mmHg. A configuração do SIV já apresentava mudanças no 1º DPO, e após o 5º dia, 72,7% dos casos apresentavam SIV do tipo 2. Ao final de 1 semana 81,8% apresentavam SIV do tipo 1 e 18,2% do tipo 2, sempre acompanhado de ganho significativo de massa ventricular. (fig.1). Em resumo, o preparo ventricular produziu alterações hemodinâmicas e estruturais significativas no VE adequando-o à correção anatômica por volta do 10º DPO.


O intervalo entre o 1º e 2º estágio no único paciente que atingiu a correção anatômica do grupo de preparo lento foi de 104 dias. Entre os 7 pacientes submetidos à correção anatômica no mesmo período de internação, o intervalo entre os dois estágios variou de 14 a 36 dias (média=21,3 dias). O intervalo mais longo de 36 dias ocorreu em uma criança que estava traqueostomisada antes do 1º estágio e só foi submetida ao 2º estágio após resolução da traqueostomia. Em 4 pacientes, mesmo com um preparo adequado do VE já demonstrado pelo ecocardiograma, foi necessário se estender o intervalo entre os procedimentos para resolução de outros problemas clínicos, na maioria das vezes de origem pulmonar. A mortalidade hospitalar nos 8 pacientes que atingiram o 2º estágio foi de 1 (12,5%) paciente, ocorrida em criança do grupo de preparo rápido com 18 dias de intervalo entre os dois procedimentos. Essa criança apresentava anatomia coronariana de padrão clássico (tipo IA de Yacoub), e a cirurgia transcorreu sem complicações. Já no CTI apresentou BAVT e insuficiência ventricular aguda com importante repercussão hemodinâmica, sugerindo problema coronariano. Foi submetida a reabertura esternal porém permanecendo com disfunção ventricular importante, falecendo no 2º DPO. A permanência média no CTI entre os sobreviventes foi de 4,4 dias, e também as causas pulmonares foram motivo de estadia prolongada. Foi observado ainda um óbito após a alta hospitalar no 2º mês de pós-operatório em um caso que necessitou de tratamento antibacteriano prolongado sobrevindo infecção fúngica secundária. As seis crianças que permanecem em controle clínico não apresentam alterações ecocardiográficas quanto à função ventricular, regurgitação aórtica ou estenose na via de saída do VD., estando todas em excelente condição clínica.

O resultado de toda série está resumido no fluxograma demonstrado na figura 2.


Discussão

A correção neonatal da transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto pela técnica de Jatene tornou-se a principal forma de tratamento da doença. Esta abordagem foi proposta inicialmente por Paul Ebert em 1980, tornando-se uma opção definitiva de tratamento após a publicação de Castaneda e cols. em 19848, baseada na capacidade do ventrículo esquerdo de assumir a circulação sistêmica durante esse período de vida, após o qual ele perde progressivamente a sua massa muscular tornando inviável a correção anatômica primária. Não se pode definir exatamente quando o ventrículo esquerdo perde a capacidade de sustentar a função sistêmica. Vários fatores podem concorrer: a queda da resistência arteriolar pulmonar, a presença de fluxo sanguíneo pelo canal arterial, o tamanho da comunicação interatrial e a presença de obstrução na via de saída do VE. Como um número significativo de crianças são encaminhadas, tardiamente, para correção da transposição das grandes artérias, seja por dificuldades de diagnóstico precoce ou por complicações ocorridas no período neonatal, é fundamental que se determine a melhor conduta nesses pacientes. Esta avaliação deve definir se a correção anatômica primária é ainda exeqüível ou se será necessária a correção em dois estágios ou mesmo a correção em nível atrial. A importância deste fato pode ser atestada nesta nossa experiência, onde 24% das crianças portadoras de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto atendidas em pouco mais de 6 anos encontravam-se além do período neonatal. Outros relatos da literatura apresentam percentuais que variam entre 3,1%9 a 7,6%10, muito inferiores ao nosso.

A seleção ecocardiográfica é o principal método na definição do tratamento cirúrgico após o período neonatal11. Com este exame, além de se verificar o tamanho da comunicação interatrial, a presença e magnitude do fluxo pelo canal arterial e as obstruções na via de saída do VE, podemos inferir a pressão na cavidade ventricular esquerda e seu desenvolvimento muscular, que são os parâmetros principais utilizados na nossa definição. A presença de abaulamento sistólico do septo interventricular em direção à cavidade ventricular esquerda (septo tipo III ou banana shape) indica uma baixa pressão no VE, refletindo o gradiente pressórico significativo entre os 2 ventrículos. Apesar de ser um fator importante na avaliação do desempenho ventricular, não foi utilizado isoladamente já que várias crianças, ainda dentro do período neonatal, podem apresentar o VE bastante comprimido e serem submetidas à correção primária sem problemas.

A determinação da massa ventricular foi outro dado fundamental no nosso julgamento pré-operatório. Apesar de algumas limitações relacionadas ao método, referentes à forma do VE e que pode interferir no cálculo final da massa, este dado se mostrou eficaz na prática, não só na indicação cirúrgica como também na avaliação da maturação ventricular após o preparo. Utilizamos como limite inferior para indicação de correção anatômica uma massa de 35 g/m2, sendo que tal parâmetro deve ser considerado juntamente com a configuração do septo interventricular. O achado de baixa massa muscular associado a um SIV do tipo II ou III nos pacientes fora do período neonatal é para nós indicativo de correção em dois estágios. Já nos casos com SIV do tipo I ou II associado a um bom índice de massa ventricular, é indicada a correção anatômica primária.

Por não se conhecer exatamente quando o VE perde a capacidade de assumir a circulação sistêmica, torna-se difícil determinar com precisão a idade limite para se efetuar a correção anatômica nos casos de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto. Existe consenso na literatura de que a correção anatômica primária deva ser realizada até os 15 dias de vida, podendo este período ser estendido ainda com segurança até a 3ª ou 4ª semana de vida, segundo a maioria dos autores4,8,10. Já a abordagem após o período neonatal é controversa e as experiências publicadas apresentam geralmente um número pequeno de pacientes. Lacourt-Gayet e cols.12 e Iyer e cols.11 advogam a seleção clínica e ecocardiográfica para correção em 1 ou 2 estágios nestes casos. Davis e cols.10 e Ducan e cols.13 indicam a correção anatômica primária em todos os pacientes até o 2º mês de vida, baseados em uma terapêutica vasodilatadora agressiva e uso ocasional de assistência ventricular no pós-operatório. Nossa conduta nos portadores de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto foi de indicar a correção anatômica primária sistemática em todos os pacientes no período neonatal e promover a seleção ecocardiográfica para correção em um ou dois estágios, nos casos atendidos após os 30 dias de vida. Desta forma foram realizadas 104 correções anatômicas primárias, sendo 92 no período neonatal com uma mortalidade hospitalar de 6,5% e 12 após o período neonatal com uma mortalidade de 8,3%, resultado que não apresenta significância estatística (p=0,59). Dos 12 pacientes submetidos à correção anatômica primária fora do período neonatal, 11 encontravam-se na faixa etária de 30 a 60 dias de vida e apenas 1 com mais de 60 dias de vida. Portanto nossa experiência confirma ser possível realizar a correção anatômica primária, na maioria das crianças, até o 2º mês de vida, com uma mortalidade semelhante à observada no período neonatal. Apenas um paciente atendido nesta faixa etária, que apresentava parâmetros ecocardiográficos desfavoráveis, foi encaminhado para correção em dois estágios, nossa opção nesta circunstância, uma vez que não dispomos de dispositivos de assistência ventricular prolongada, que podem ser necessários no controle pós-operatório.

A indicação para correção em dois estágios ou para correção atrial prevaleceu no grupo de crianças encaminhadas após 60 dias de vida, e apenas uma entre 16 atendidas neste período foi submetida à correção primária. Para correção em dois estágios, nosso protocolo inicial previa uma correção anatômica tardia, na qual o intervalo entre os dois estágios oscilava entre 2 a 6 meses. Com esta conduta não obtivemos um resultado satisfatório; houve um óbito no pós-operatório imediato por problemas técnicos (migração da cerclagem) e outros três após a alta hospitalar, dois de forma súbita e outro por infecção pulmonar. Yacoub e cols.4, em 1980, relataram 20 casos submetidos a estadiamento tardio, com uma mortalidade imediata de 3 pacientes; 14 posteriormente submetidos ao 2º estágio ocorrendo 4 óbitos (29%). A principal vantagem do preparo lento estaria relacionada a um melhor condicionamento do VE que propiciaria melhores resultados a longo prazo, fato este que ainda necessita maiores observações. Por outro lado, o intervalo longo entre os estágios pode ser fonte de problemas com relação à presença da cerclagem, tais como distorções do tronco e ramos da artéria pulmonar e uma incidência aumentada de insuficiência aórtica tardia8,9. Outra complicação descrita com o preparo lento foi o desenvolvimento de fibroelastose ventricular e que foi causa de mortalidade após o 2º estágio14. Além desses fatores, a dificuldade de controle apropriado após a alta hospitalar de alguns pacientes também favorece a correção precoce com preparo rápido. A mudança para a estratégia de preparo rápido com realização dos dois estágios em um único período de internação melhorou sensivelmente nossos resultados, e os 7 pacientes assim conduzidos atingiram o 2º estágio. A evolução ecocardiográfica diária nos permitiu acompanhar as alterações induzidas pelo preparo ventricular estabelecendo-se com segurança o ponto de maturação ideal para a correção definitiva. Os dados encontrados na nossa amostra coincidem com os dados de outras publicações que definem o período ideal para o 2º estágio entre o 9º e o 15º dia após o preparo. Existem evidências que pacientes acima de um ano de idade possam requerer um intervalo de preparo mais prolongado para atingir o preparo ventricular adequado11,15. No nosso material, o paciente de maior idade tinha 225 dias de vida e foi submetido ao 2º estágio no 19º DPO, com ótimos parâmetros ecocardiográficos. Temos seguido a orientação de Ilbawi e cols.16, evitando-se uma cerclagem muito apertada da artéria pulmonar, o que pode induzir isquemia subendocárdica. Este detalhe facilita sensivelmente a manipulação no pós-operatório sem influenciar negativamente no preparo do VE. A possibilidade de se realizar a cerclagem ajustável da AP tem sido investigada e poderá ter boa aplicabilidade principalmente nos casos abordados tardiamente17.

Apesar da maioria dos trabalhos apresentar uma boa evolução clínica em crianças submetidas à correção após o preparo rápido VE, não se pode afirmar se a qualidade do miocárdio gerado é semelhante ou não ao nativo. Como depois de algumas semanas de vida o miócito perde a capacidade de mitose, a adaptação do VE após o preparo se dá exclusivamente por hipertrofia sem a proliferação coronariana correspondente, este fato poderá limitar o resultado a longo prazo15. De qualquer maneira, parece claro que o preparo ventricular, quando realizado mais precocemente, é mais efetivo no remodelamento do ventrículo esquerdo. Em crianças maiores de 6 meses de idade os resultados obtidos com o preparo rápido não são tão consistentes quanto aqueles realizados precocemente. Poucos serão os pacientes abordados acima de 1 ano de vida e neste caso o procedimento de escolha ainda não está definido. O preparo lento com cerclagem ajustável deverá ser a técnica mais indicada nesta situação.

Em conclusão, nossa experiência demonstra a importância de se estabelecer uma conduta cirúrgica segura para as crianças portadoras de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto, quando atendidas após o período neonatal. O ecocardiograma através da avaliação do septo interventricular e do cálculo da massa do VE é o principal método para seleção do tratamento cirúrgico. Neste grupo expressivo de pacientes, que em nosso material correspondeu a 24% de todo o grupo de transposição das grandes artérias com septo interventricular intacto, atendido em um período de pouco mais de 6 anos, foi possível a correção primária na grande maioria dos pacientes, quando atendidos até 60 dias de vida. A partir desta idade a maioria dos pacientes apresenta parâmetros ecocardiográficos desfavoráveis para correção anatômica primária. Nesta circunstância os pacientes devem ser encaminhados ou para correção ao nível atrial ou para correção anatômica em dois estágios. Na correção em dois estágios, a técnica de preparo rápido apresentou melhores resultados quando comparada ao preparo lento, tornando-se nossa opção atual para esses pacientes.

Enviado em 29/06/2004

Aceito em 23/11/2004

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  • Endereço para correspondência

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2005

    Histórico

    • Recebido
      29 Jun 2004
    • Aceito
      23 Nov 2004
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