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Doença aterosclerótica difusa desmascarada pela avaliação fisiológica invasiva da circulação coronária

Resumos

Sabe-se que a aterosclerose coronária é um processo difuso, pouco visível à angiografia. Este artigo descreve um paciente com angina estável, três meses após infarto agudo do miocárdio (IAM), e uma lesão severa na artéria descendente anterior (ADA), evidenciada pela cinecoronariografia. A reserva de fluxo fracionada do miocárdio (FFR), obtida através de medidas pressóricas intracoronárias, foi 0,37 durante a hiperemia máxima, demonstrando claramente a existência de isquemia. Um stent foi implantado na ADA e, a despeito do excelente resultado angiográfico, a FFR pós-stent foi apenas 0,75, o limite mínimo abaixo do qual existe isquemia. Quando a corda guia pressórica (pressure wire - PW) foi lentamente recuada da porção distal da ADA para sua porção proximal, notou-se um aumento contínuo e gradativo na pressão intracoronária, o que indica claramente aterosclerose difusa e não estenose focal. Não se notava gradiente no local do stent. O paciente foi mantido em tratamento médico e permanece assintomático até o momento.


It is known that coronary atherosclerosis is a diffuse process, very little visible at angiography. This article describes a stable angina patient, three months after acute myocardial infarction (AMI), and a severe lesion in anterior descending artery (ADA), evinced by coronariography. Myocardial fractional flow reserve (FFR), obtained through intracoronary pressure measurements, was 0.37 during maximum hyperemia, clearly showing the presence of ischemia. A stent was implanted in ADA and, despite the excellent angiographic result, post-stent FFR was only 0.75, the minimum limit, below which there is ischemia. When the pressure wire (PW) was slowly drawn back from the distal portion of ADA to its proximal portion, a continuous and gradual increase in intracoronary pressure was noted, which clearly indicates diffuse atherosclerosis and not focal stenosis. A gradient was not observed at the stent place. The patient was kept under medical treatment and has been asymptomatic so far.


RELATO DE CASO

Doença aterosclerótica difusa desmascarada pela avaliação fisiológica invasiva da circulação coronária

Diffuse atherosclerotic disease unmasked by invasive physiologic assessment of coronary flow

Fernando Mendes Sant'Anna; Expedito E. Ribeiro da Silva; Leonardo Alves Batista; Fábio Machado Ventura; Carlos Alberto Mussel Barrozo; Nico H.J. Pijls

Santa Helena Hospital do Coração - Cabo Frio, RJ - Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (FMUSP) - São Paulo, SP e Catharina Hospital - Eindhoven, Holanda

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Fernando Mendes Sant'Anna Rua Safira 20, Portinho, Cabo Frio 28915-400 - Cabo Frio, RJ E-mail: fernandomendes@cardiol.br

RESUMO

Sabe-se que a aterosclerose coronária é um processo difuso, pouco visível à angiografia. Este artigo descreve um paciente com angina estável, três meses após infarto agudo do miocárdio (IAM), e uma lesão severa na artéria descendente anterior (ADA), evidenciada pela cinecoronariografia. A reserva de fluxo fracionada do miocárdio (FFR), obtida através de medidas pressóricas intracoronárias, foi 0,37 durante a hiperemia máxima, demonstrando claramente a existência de isquemia. Um stent foi implantado na ADA e, a despeito do excelente resultado angiográfico, a FFR pós-stent foi apenas 0,75, o limite mínimo abaixo do qual existe isquemia. Quando a corda guia pressórica (pressure wire – PW) foi lentamente recuada da porção distal da ADA para sua porção proximal, notou-se um aumento contínuo e gradativo na pressão intracoronária, o que indica claramente aterosclerose difusa e não estenose focal. Não se notava gradiente no local do stent. O paciente foi mantido em tratamento médico e permanece assintomático até o momento.

ABSTRACT

It is known that coronary atherosclerosis is a diffuse process, very little visible at angiography. This article describes a stable angina patient, three months after acute myocardial infarction (AMI), and a severe lesion in anterior descending artery (ADA), evinced by coronariography. Myocardial fractional flow reserve (FFR), obtained through intracoronary pressure measurements, was 0.37 during maximum hyperemia, clearly showing the presence of ischemia. A stent was implanted in ADA and, despite the excellent angiographic result, post-stent FFR was only 0.75, the minimum limit, below which there is ischemia. When the pressure wire (PW) was slowly drawn back from the distal portion of ADA to its proximal portion, a continuous and gradual increase in intracoronary pressure was noted, which clearly indicates diffuse atherosclerosis and not focal stenosis. A gradient was not observed at the stent place. The patient was kept under medical treatment and has been asymptomatic so far.

Estudos anatomopatológicos e com ultra-som intravascular demonstraram que, quando uma estenose é visível à angiografia, o restante da circulação coronária está freqüentemente acometido por aterosclerose difusa, embora tal fato possa muitas vezes não ser identificado pela coronariografia1-4.

De Bruyne e cols. mostraram que artérias coronárias epicárdicas com aterosclerose difusa, ao contrário das coronárias normais, mostram, freqüentemente, uma queda pressórica contínua ao longo de seus trajetos, reduzindo a reserva de fluxo fracionada do miocárdio (FFR) e contribuindo para causar isquemia miocárdica e perfusão anormal, durante o exercício e/ou vasodilatação farmacológica. Tal fato pode ser identificado pelas medidas de pressão intracoronárias5.

A FFR pode ser definida como o produto da divisão entre o fluxo coronariano hiperêmico máximo na presença de uma estenose e este mesmo fluxo na ausência de estenose, e é calculada dividindo-se a pressão média no leito distal da artéria coronária (Pd) pela pressão média em aorta (Pa) durante hiperemia máxima (FFR=Pd/Pa)6. Quanto maior a resistência ao fluxo, maior o declínio na pressão distal e, logo, menor a FFR. A FFR é um índice de resistência ao fluxo ao longo do vaso epicárdico e não é afetada por mudanças na pressão arterial, freqüência cardíaca e outras patologias. Mesmo na presença de doença de microcirculação, a FFR ainda fornece informação sobre a resistência (anormal) ao fluxo ao longo da artéria, dado aquele estado de disfunção da microcirculação. A FFR e suas características foram muito bem estudadas e validadas nos últimos anos7-9. O mais importante é saber que uma FFR menor que 0,75 está associada a lesões capazes de provocar isquemia e possui uma acurácia de quase 100%8,9.

O presente relato descreve um paciente com angina estável que apresentava uma estenose importante na artéria descendente anterior (ADA). A FFR medida foi 0,37, sendo indicativa de isquemia importante. Um gradiente pressórico focal acentuado estava presente no local da estenose. Após tratamento dessa lesão por angioplastia com implante de stent, a FFR melhorou significativamente, porém seu valor continuou dentro da área onde se pode provocar isquemia. No entanto, o traçado pressórico coronariano obtido com a pressure wire, durante hiperemia máxima (curva de retração), não mostrou gradiente na área onde o stent foi implantado, mas sim um aumento contínuo e gradual da pressão média intracoronária do leito distal para o terço proximal da ADA, típico de doença aterosclerótica difusa. Este artigo pretende demonstrar como a FFR pode desmascarar a doença aterosclerótica difusa após tratamento de uma lesão focal.

Relato do Caso

Paciente do sexo masculino, 58 anos, com história de infarto agudo do miocárdio (IAM) em 25 de janeiro de 2004, evoluindo com dor precordial típica aos esforços moderados (angina estável CCS 2). Fatores de risco: hipercolesterolemia e hipertensão arterial sistêmica. Exame físico normal. O eletrocardiograma (ECG) de repouso mostrava ondas Q com ausência de ondas R de V1 a V4.

Ecocardiograma evidenciava apenas discreta hipocinesia de parede anterior e função ventricular levemente deprimida.

Na cinecoronariografia, podíamos observar importante estenose no terço proximal da ADA, quantificada em 90% pela estimativa visual (fig. 1). Como o paciente estava sintomático e a função ventricular esquerda era praticamente normal, foi indicada angioplastia coronária com implante de stent na ADA.


A avaliação fisiológica invasiva da circulação coronária, através da utilização da pressure wire (PW), é realizada de rotina em nosso Serviço de Hemodinâmica, como uma ferramenta adicional e extremamente importante para confirmar a presença de isquemia coronária e checar o implante adequado (ótimo) do stent. Uma corda guia de 0,014 polegadas, desconectável, equipada com um sensor de pressão de alta fidelidade (Pressure Wire4, Radi Medical Systems, Upsala, Suécia) foi introduzida na ADA e, após administração intravenosa de adenosina na dosagem de 140 µg/kg/minuto, foi obtido o traçado pressórico apresentado na figura 2. Durante a hiperemia máxima, a FFR da ADA foi 0,37 e a curva de retração mostrou claramente, dentro da ADA, exatamente no local da estenose, a ocorrência de uma queda súbita de pressão registrada pela pressure wire (fig. 2).


A lesão foi pré-dilatada com um balão de 2.5 mm de diâmetro e dois stents (diâmetros 3.0 mm e 2.5 mm) foram implantados na ADA, de modo a cobrir todo o segmento doente. Após excelente resultado angiográfico (fig. 3), a FFR foi medida de novo e seu valor subira para 0,75, justamente no limiar mínimo abaixo do qual se pode provocar isquemia. No entanto, quando a pressure wire foi recuada do terço distal para o proximal da ADA, durante hiperemia máxima, não mais se observava um gradiente focal dentro da artéria ou através do stent, mas apenas uma subida contínua e progressiva da pressão intracoronária (fig. 4), o que é típico de doença aterosclerótica difusa (e não de lesão focal) e, conseqüentemente, não mais tratável através de angioplastia coronária. O paciente foi, então, mantido em tratamento clínico e está evoluindo bem, assintomático, até o momento.



Discussão

As artérias coronárias normais são caracterizadas pela ausência de qualquer declínio de pressão ao longo de seus trajetos, mesmo sob hiperemia máxima8,9. Na doença aterosclerótica difusa, pode-se observar uma queda pressórica progressiva durante a hiperemia que pode, inclusive, ser responsável por isquemia5.

No paciente do presente caso, uma estenose muito importante (tanto anatômica, quanto funcional) estava presente na ADA, o que foi confirmado pela súbita queda na pressão intracoronária durante hiperemia, quando o sensor da pressure wire cruzava a lesão (fig. 2). Após o implante de stent nesta lesão focal, o fluxo sangüíneo, através da mesma, aumentou em mais de 100% (0,37 ® 0,75) e, devido a este aumento, a doença aterosclerótica difusa (antes não observada) foi então desmascarada.

É importante mencionar que a ocorrência de embolização distal da microcirculação coronária, devido ao implante de stent, poderia causar um falso aumento (e não diminuição) no valor final da FFR10, não tendo tido, assim, qualquer participação no resultado alcançado.

Esse caso ensina duas importantes lições – 1) A avaliação fisiológica (ou funcional) da ADA confirmou que os stents foram implantados adequadamente (não havia gradientes através dos mesmos). Sem esta observação fundamental, queixas residuais, porventura apresentadas, seriam certamente atribuídas a implante inadequado dos stents e poderiam provocar outras intervenções nos locais onde estes foram implantados (como, por exemplo: dilatação com balões de diâmetro maior e/ou com altas pressões); 2) Doença aterosclerótica difusa na ADA foi desmascarada por tratamento adequado de uma lesão focal, o que foi provado pela curva de retração durante hiperemia máxima.

Esses achados têm importantes implicações na avaliação do implante adequado do stent. Já foi demonstrado, tanto por ultra-som intravascular, quanto por medidas pressóricas intravasculares, que a presença de uma estenose focal está quase sempre associada com algum grau de doença aterosclerótica difusa da circulação coronária2-5. Mesmo após tratamento bem sucedido de uma estenose focal, um gradiente residual ao longo da artéria pode permanecer e a FFR medida na porção distal da coronária pode ser anormal (<0,75). Logo, para avaliar se o stent restabeleceu totalmente a condutância de um segmento previamente estenótico, a FFR desse segmento deve ser calculada dividindo-se a pressão logo após o stent pela pressão imediatamente antes do mesmo, durante uma manobra de retração da corda guia sob hiperemia máxima. O gradiente pressórico entre as duas bordas do stent indica o estado do stent propriamente dito, enquanto a curva de retração registrada ao longo do vaso indica a condutância de todo o segmento epicárdico da artéria coronária em questão, incluindo o segmento aonde foi implantado o stent5. Esta última informação é importante para sabermos se esta artéria poderá induzir isquemia.

Embora esteja bem estabelecido por estudos recentemente publicados11 que a FFR pós-stent tem importantes implicações prognósticas, temos que estar conscientes que, especialmente em pacientes com doença multiarterial e alguns tipos de patologias associadas (diabetes, por exemplo), é impossível, algumas vezes, obtermos resultados fisiológicos ideais (FFR>0,94) após implante de stent e tal fato deve-se à presença de aterosclerose difusa ao longo do vaso e não ao implante inadequado da endoprótese.

Enviado em 07/11/2004

Aceito em 04/03/2005

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  • Endereço para correspondência

    Fernando Mendes Sant'Anna
    Rua Safira 20, Portinho, Cabo Frio
    28915-400 - Cabo Frio, RJ
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Recebido
      07 Nov 2004
    • Aceito
      04 Mar 2005
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