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Algumas considerações sobre a pirâmide invertida da formação médica brasileira e suas conseqüências para o treinamento em cardiologia

PONTO DE VISTA

Algumas considerações sobre a pirâmide invertida da formação médica brasileira e suas conseqüências para o treinamento em cardiologia

Pedro José Negreiros de Andrade

Hospital Universitário Walter Cantídio – UFC - Fortaleza, CE

Correspondência Correspondência: Pedro José Negreiros de Andrade Rua Francisco Holanda 992/1101 60130-040 Fortaleza, CE E-mail: pedroneg@cardiol.br

Há pouco mais de seis anos, uma importante mudança de paradigma ocorreu na residência médica brasileira. Essa mudança, definida pela Comissão Nacional de Residência Médica, foi a exigência de dois anos de residência prévia em Clínica como pré-requisito para todas as chamadas subespecialidades da Medicina Interna, entre as quais a Cardiologia. Essas novas regras representaram a implantação no Brasil de um modelo de pós-graduação inspirado nos programas de treinamento norte-americanos, os quais requerem não apenas dois, mas três anos de residência prévia em Clínica Médica antes do ingresso nas chamadas "subespecialidades clínicas"1-3. Essas mudanças foram corroboradas pela Sociedade Brasileira de Cardiologia, que passou a valorizar o treinamento em Clínica Médica na avaliação curricular para concessão do título de especialista4. Apesar de alguns argumentos em contrário, entre os quais o fato de nossos cursos de Medicina terem duração de seis anos e não os quatro do modelo norte-americano, os benefícios pareciam óbvios. Em primeiro lugar, dessa mudança deveriam resultar especialistas com melhor formação, a qual seria necessariamente mais longa. Os médicos formados nas novas regras seriam capazes de atuar como clínicos e como especialistas, aumentando o número de generalistas no mercado. Em segundo, a mudança deveria implicar uma valorização da residência em Clínica Médica, a qual seria, a partir daí, transformada em indispensável porta de entrada para as subespecialidades clínicas. Em terceiro, contribuiria para o fim da chamada especialização precoce, sabidamente nefasta. Lembro-me, como se fosse hoje, de que na ocasião parabenizei enfaticamente o Dr. Antonio Carlos Lopes, então presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM), por ter sido ele um dos seus maiores defensores e, conseqüentemente, um dos responsáveis pela implantação das novas regras5.

Passados vários anos dessa mudança no paradigma, venho aqui, como ex-entusiasta da sua adoção, trazer à comunidade médica brasileira alguns questionamentos em relação a ela. Tais questionamentos não se referem ao caráter indiscutivelmente desejável do pré-requisito (que, aliás, reconheço, melhoraram a qualidade dos cardiologistas clínicos formados), mas sim à sua absoluta obrigatoriedade e à pirâmide invertida decorrente da sua adoção.

Em relação à formação de melhores especialistas, ainda que parcialmente adequada, a mudança merece alguns questionamentos. Se para um profissional que pretende se dedicar à medicina de consultório ou a cuidar de doentes internados o pré-requisito de dois anos é altamente recomendável, para um médico que deseja fazer um longo treinamento em eletrofisiologia invasiva ou cardiologia intervencionista, assim como para os que desejam se dedicar à pesquisa, ingressando pós-residência em mestrados ou doutorados, estes dois anos talvez sejam excessivos. Nessas situações, um ano prévio de Clínica Médica talvez fosse suficiente. É interessante lembrar que a quase totalidade dos expoentes da medicina brasileira foi formada em uma época em que não havia a obrigatoriedade do pré-requisito em Clínica Médica. Antes não se exigia nada, o que era, evidentemente, um erro. Depois passou-se a exigir um ano de treinamento em Clínica Médica, o qual era realizado dentro da própria instituição formadora. Com isso, os programas tinham duração de três anos, sendo o primeiro em Clínica Médica e os outros dois nas subespecialidades. Mais tarde, os profissionais assim formados continuavam o seu treinamento através de mestrados e doutorados, residências em métodos complementares, ou mesmo Fellowships no exterior.

O fato é que a maioria dos programas de excelência do sul do país, como os da UFRJ, da USP-São Paulo, da Unifesp, tinham até há pouco essas características. O maior mérito desse modelo de treinamento era que ampliava as possibilidades de formação. Os médicos podiam ingressar em residências nas subespecialidades clínicas por dois caminhos: de forma direta, com o treinamento incluindo um ano em medicina geral, ou após prévia residência de dois anos em Clínica Médica. Além disso, embora muitos egressos da residência em Clínica Médica persistissem como internistas, não eram poucos, dentre eles, os que adquiriam treinamento nas subespecialidades clínicas por meio dos chamados "cursos de especialização com treinamento em serviço". Eu mesmo fui professor de um curso desse tipo na UFC, o qual, trabalhando com ex-residentes de clínica médica, formou excepcionais cardiologistas, todos eles com boa formação clínica. Havia ainda uma terceira opção de treinamento para os egressos de residência em Clínica Médica: os excelentes "mestrados com treinamento em serviço", como os que eram oferecidos pela UFRJ e pela Unifesp.

Tais programas eram uma opção adicional de treinamento formando igualmente especialistas com bom embasamento clínico (atualmente tais "mestrados com treinamento em serviço" parecem estar admitindo egressos de residência em subespecialidades em vez de Clínica Médica, tornando redundante e excessivamente longa a preparação para a docência). Seja como for, as oportunidades de treinamento para os recém-formados eram maiores que as atuais, as quais se encontram hoje absurdamente reduzidas pelo "leito de Procusto" da obrigatoriedade dos dois anos de pré-requisito em Clínica.

No que tange ao fim da especialização precoce, quero dizer enfaticamente que, na prática, isso não aconteceu. Muitos residentes de clínica médica continuam a se comportar como especialistas precoces. Qual o preceptor em cardiologia que não deparou com um futuro dermatologista ou endocrinologista absolutamente desinteressado em aprender as sutilezas da ausculta cardíaca? Além disso, para não ficar simplesmente vazios, a maioria dos chamados "Cursos de Especialização", assim como as "residências médicas" não credenciadas pelo MEC (as aspas são nossas, visto que apenas programas credenciados pelo MEC podem, rigorosamente, ser chamados de residência médica) são forçados a admitir médicos sem nenhum treinamento prévio em Clínica Médica. Os médicos que aderem a tais programas continuarão a ser especialistas precoces e, o que é pior, mal formados, não sendo a sua formação geralmente aceita como válida.

Quanto ao esperado aumento do número de clínicos, parece mais do que evidente que ocorreu justamente o contrário. Tendo em vista a facilidade de obter residência em subespecialidades clínicas (novamente a pirâmide invertida), a quase totalidade dos residentes de Clínica Médica opta por uma delas, estando, em conseqüência, a figura do Clínico puro em vias de desaparecer. Parece uma triste evidência que a Clínica Médica deixou, na prática, de ser uma especialidade (exceto para alguns profissionais excepcionais), passando a ser um mero caminho em direção à subespecialização.

Um único aspecto aparentemente positivo resultou da obrigatoriedade dos dois anos de pré-requisito: a residência em Clínica Médica obteve uma indiscutível valorização. Lamento dizer, no entanto, que ela talvez tenha sido excessiva. Diferentemente dos Estados Unidos, onde praticamente todos os médicos formados ali conseguem ingressar em algum programa de residência (sobrando inclusive vagas para médicos estrangeiros), os médicos brasileiros caminham para se dividir em duas castas: as dos que ingressam em programas de residência médica e a dos que ficam de fora. Esses últimos são obrigados a ingressar (muitas vezes sem nenhuma vocação ou treino prévio em medicina de família) nos Programas de Saúde da Família (PSF), sendo contratados por prefeituras sem direitos trabalhistas ou planos de carreira.

Todos somos testemunhas da incontável quantidade de excelentes alunos que ficam de fora de programas de residência médica, permanecendo marginalizados quanto a treinamento e, conseqüentemente, futuro profissional. Infelizmente, com a aplicação rigorosa do pré-requisito, o número de recém-formados excluídos da residência se tornou maior, gerando deformidades, como a proliferação dos famigerados "cursinhos" para ingresso na Residência.

Quem se der ao trabalho de consultar a internet por intermédio do Google nas páginas referentes a programas de Residência médica credenciados pelo MEC (consultando simplesmente Residência Médica e MEC) verificará que para um universo de mais de 12 mil médicos formados nós temos apenas 980 vagas de residência em Clínica Médica em 177 programas. Esse número é obviamente pouco. Enquanto isso, somente em Cardiologia existem 304 vagas em 76 programas. Já para o conjunto das subespecialidades da Medicina Interna são oferecidas 1.316 vagas em 561 programas (tab. I).

Considerando que um dos motivos da mudança foi adotar o modelo norte-americano, é interessante lembrar que nos Estados Unidos, para um número de médicos formados não muito superior aos nossos existem 408 programas de Medicina Interna e 21.451 vagas2, decorrendo daí a importação pelos programas americanos dos chamados Foreign Medical Graduates. Eis aí a demonstração inequívoca do absurdo da existência, em nosso país, de uma pirâmide invertida no sistema de residência médica. O problema torna-se ainda mais sério pelo fato de alguns concludentes da residência de Clínica Médica desistirem de fazer uma subespecialidade clínica, permanecendo como internistas ou migrando para especialidades não-clínicas. A pirâmide é mais invertida ainda, tendo em vista a existência de um bom número de "Cursos de especialização" em subespecialidades médicas, os quais ficariam simplesmente sem candidatos se exigissem o desejável pré-requisito em Clínica Médica.

Parece óbvio ser conseqüência disso a existência de grande número de vagas de residência em subespecialidades clínicas que simplesmente não são preenchidas. Entrada na residência extremamente difícil, vagas ociosas nas subespecialidades e recémformados talentosos marginalizados ou submetidos a um treinamento inadequado, eis um absurdo que, por si só, clama por soluções. Por incrível que pareça, existem várias opções a escolher para solução do problema:

a) Dobrar o número de vagas em residências básicas (Clínica Médica e Cirurgia Geral, visto que problema similar existe nas subespecialidades cirúrgicas). Essa é uma justa e urgente solicitação por parte dos estudantes de Medicina. Apesar de ser, na opinião dos defensores do pré-requisito (entre os quais eu me incluía até pouco tempo) a melhor solução para o problema, esbarra no fato de que levaria algum tempo para ser implementada, dada a dificuldade de bolsas e programas.

b) Até que isso seja atingido (aumento das bolsas e programas), flexibilizar as atuais regras, com os dois anos de clínica continuando a ser uma recomendação, mas deixando de ser uma obrigatoriedade absoluta. Permitir-se-ia assim que as instituições reservassem 50% das suas vagas para formandos de qualificação excepcional, os quais fariam apenas um ano de residência de Clínica Médica, dentro das velhas normas, seguido de dois anos nas subespecialidades. É, sem dúvida, a melhor opção para os críticos da exigência do prérequisito. No caso da Cardiologia, essa mudança não implicaria, necessariamente, uma redução no período de treinamento. Isso porque o profissional assim formado poderia optar por entrar no mercado, atuando como cardiologista clínico, ou realizar treinamentos adicionais em métodos mais complexos como hemodinâmica, ecocardiografia ou eletrofisiologia. Os com vocação para a pesquisa e a docência poderiam também ingressar em programas de mestrado ou doutorado, sem que se tornasse excessivamente longa a sua formação. Ressalte-se que o maior benefício dessa mudança é que, se aplicada a todas as subespecialidades clínicas, teríamos, em um passe de mágica, alargado o funil de entrada, com conseqüente duplicação das vagas para ingresso em programas de residência em áreas clínica. A exeqüibilidade dessa medida fica patente, tendo em vista que para algumas subespecialidades clínicas (Dermatologia e Neurologia) esse modelo foi adotado (resolução CNMR 07/2004)). É interessante lembrar que nos Estados Unidos permitia-se, no tempo em que lá fiz residência, que médicos com qualidades excepcionais cumprissem um ano a menos de residência em Clínica antes de ingressarem nas subespecialidades. Segundo proposta feita recentemente por Valentin Fuster4, deveria haver, na Cardiologia, redução em um ano do pré-requisito em Clínica Médica, aliada à criação de um ano de treinamento com características intermediárias entre a Medicina Interna e a Cardiologia, o qual seria seguido pelo Fellowship tradicional. Por que não fazer algo semelhante no Brasil?

c) Tornar mais atrativa a residência em Medicina da Família, a qual atualmente apresenta também vagas ociosas. Uma medida simples seria o pagamento de melhores salários por parte dos PSF a médicos com treinamento formal em Medicina de Família. A outra seria permitir que egressos de programas de residência em Medicina de Família pudessem ter seu treinamento considerado como pré-requisito para residência em subespecialidades da Clínica Médica. O mérito maior dessas medidas seria a valorização do treinamento e da própria condição de médico participante dos PSF. Esses seriam estimulados a ter um treinamento adequado, deixando de ser caracterizados como profissionais de segunda categoria (o que é um equívoco e uma tragédia).

d) Estimular as instituições que oferecem "cursos de especialização com treinamento em nível de residência" (as chamadas residências não-credenciadas) a alongarem seus programas de treinamento para três anos, incluindo um ano inicial de Clínica Médica. No caso da Cardiologia isso resultaria em uma enorme melhora na qualidade dos especialistas formados em tais programas, aliada à sua melhor adequação às normas da SBC5 (que exige um ano de treinamento em Clínica Médica para dispensa da prova prática para Título de Especialista). Além disso, com um ano prévio de Clínica Médica os profissionais assim formados estariam mais bem preparados para o mercado de trabalho, que muitas vezes exige clínicos gerais e não subespecialistas.

As conseqüências danosas da exigência rígida dos dois anos de pré-requisito ficam aqui expostas, assim como as várias opções para minimizar a crise atual de vagas. Dada a extrema gravidade da atual situação, deixo às lideranças das Sociedades de Especialidade (entre as quais a SBC) e à Comissão Nacional de Residência Médica a responsabilidade de escolher quais as melhores opções para solução do problema.

REFERÊNCIAS

1. Langton LO, Toskes PP, Kimbal HM. Future roles and training of Internal Medicine Subspecialists. Ann Intern Med 1996; 140: 686-91.

2. Zerbini CAF. Residência e estágio médico nos Estados Unidos em Medicina Interna. Rev Bras Clin Terap 2000; 26: 115-18.

3. Fuster V, Nash IS. The generalist/cardiovascular specialist: a proposal for a new training track. Ann Intern Med 1997; 127: 630-4.

4. Moretti MA, Maciel BC, Malachias MVB et al. Normatização para a concessão de título de especialista em Cardiologia e de área de atuação em Cardiologia. Arq Bras Cardiol 2004; 82(supl. III): 1-10.

5. Lopes AC, Moreira, FT. Duração do Pré-requisito e acesso a programas de residência Médica em especialidades Clínicas. Rev Bras Clin Terap 2000; 26:110-114

6. Residências médicas credenciadas pelo Mec em:http://www. tudoresidenciamedica.hpg.ig.com.br/vagas/vagasmec.htm

Recebido em 03/08/05

Aceito em 17/10/05

  • Correspondência:
    Pedro José Negreiros de Andrade
    Rua Francisco Holanda 992/1101
    60130-040 Fortaleza, CE
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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