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Estudo comparativo das avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler na evolução das lesões valvares em crianças e adolescentes portadores de febre reumática

Resumos

OBJETIVO: Comparar os exames clínico e ecocardiográfico Doppler na avaliação das lesões valvares em crianças e adolescentes com febre reumática, bem como investigar a evolução da doença segundo essas avaliações. MÉTODOS: Trata-se de estudo observacional longitudinal que englobou 258 crianças e adolescentes com diagnóstico de febre reumática, baseado nos critérios de Jones. Os pacientes foram acompanhados durante o período de 2 a 15 anos. A presença e a quantificação das lesões valvares nas fases aguda e crônica foram determinadas pelas avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler. Utilizou-se a estatística de Kappa para estimar a concordância entre as avaliações, e as evoluções clínica e ecocardiográfica Doppler da cardite e valvite, respectivamente, foram comparadas pelo teste do qui-quadrado ou de Fisher, p < 0,05. RESULTADOS: Dos 109 pacientes submetidos à avaliação ecocardiográfica Doppler na fase aguda, 31 não apresentavam clínica de cardite, mas 17 (54,8%) deles mostravam lesão valvar ao ecocardiograma Doppler (valvite subclínica). Na fase crônica, 153 dos 258 tinham exame cardiovascular normal, mas 85 (55,5%) desses mostravam lesão valvar ao ecocardiograma Doppler (valvopatia crônica subclínica). A involução das lesões valvares segundo a avaliação ecocardiográfica Doppler foi menos freqüente, ocorrendo em 10 (25,0%) dos pacientes com valvite leve e em apenas 1 (2,5%) daqueles com valvite moderada, e em nenhum com valvite grave. CONCLUSÃO: A identificação de lesões valvares na febre reumática é maior se a avaliação clínica for acrescida do exame ecocardiográfico Doppler, que também mostra menor índice de regressão das lesões valvares. O diagnóstico de valvite e valvopatia subclínicas tem implicação quanto às profilaxias secundária da febre reumática e da endocardite.

febre reumática; ecocardiografia Doppler; valvite; valvopatia reumática


OBJECTIVE: Compare clinical and Doppler echocardiographic evaluations in assessing valvular diseases in children and adolescents with rheumatic fever, as well as assess the progression of the disease in light of these assessments. METHODS: This is a longitudinal study of 258 children and adolescents diagnosed with rheumatic fever according to Jones’ criteria. The follow-up period ranged from 2-15 years. The presence and quantification of valve diseases were determined by means of clinical and Doppler echocardiographic evaluations performed during the acute and chronic phases. The Kappa statististics method was used to estimate the degree of agreement between clinical and Doppler echocardiographic evaluations. Comparisons between clinical and Doppler echocardiographic findings on the progress of carditis and valvulitis, respectively, were made using chi-square test or Fisher’s exact test, p< 0.05. RESULTS: Of the 109 patients who underwent Doppler echocardiographic evaluation during the acute phase, 31 did not present clinical evidence of carditis, but the Doppler echocardiograms of 17 (54.8%) of them showed valve lesions (subclinical valvulitis). During the chronic phase, 153 of the 258 patients had normal cardiovascular examination results; however, Doppler echocardiograms showed that 81 of them (52.9%) had valve lesions (subclinical chronic valvular diseases). Involution of the valvular lesions, as shown by Doppler echocardiographic evaluations, was less frequent and occurred in 10 (25.0%) patients with mild valvulitis, in only one (2.5%) patient with moderate valvulitis, and in none of the patients with severe valvulitis. CONCLUSION: The identification of rheumatic fever valve lesions can be enhanced when clinical evaluations are supplemented by Doppler echocardiographic examinations; also, clinical examinations are not as suitable to detect valvular lesion regression as the echocardiography. The diagnosis of subclinical valvulitis and valvulopathy influences the secondary prophylaxis of rheumatic fever and endocarditis.

rheumatic fever; Doppler echocardiography; valvulitis; rheumatic valvulopathy


ARTIGO ORIGINAL

Estudo comparativo das avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler na evolução das lesões valvares em crianças e adolescentes portadores de febre reumática

Zilda Maria Alves Meira; Eugênio Marcos Andrade Goulart; Cleonice de Carvalho Coelho Mota

Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte, MG

Correspondência Correspondência Zilda Maria Alves Meira Rua Roquete Mendonça, 184/401 31275-030 – Belo Horizonte, MG E-mail: zilda.m.a.m@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Comparar os exames clínico e ecocardiográfico Doppler na avaliação das lesões valvares em crianças e adolescentes com febre reumática, bem como investigar a evolução da doença segundo essas avaliações.

MÉTODOS: Trata-se de estudo observacional longitudinal que englobou 258 crianças e adolescentes com diagnóstico de febre reumática, baseado nos critérios de Jones. Os pacientes foram acompanhados durante o período de 2 a 15 anos. A presença e a quantificação das lesões valvares nas fases aguda e crônica foram determinadas pelas avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler. Utilizou-se a estatística de Kappa para estimar a concordância entre as avaliações, e as evoluções clínica e ecocardiográfica Doppler da cardite e valvite, respectivamente, foram comparadas pelo teste do qui-quadrado ou de Fisher, p < 0,05.

RESULTADOS: Dos 109 pacientes submetidos à avaliação ecocardiográfica Doppler na fase aguda, 31 não apresentavam clínica de cardite, mas 17 (54,8%) deles mostravam lesão valvar ao ecocardiograma Doppler (valvite subclínica). Na fase crônica, 153 dos 258 tinham exame cardiovascular normal, mas 85 (55,5%) desses mostravam lesão valvar ao ecocardiograma Doppler (valvopatia crônica subclínica). A involução das lesões valvares segundo a avaliação ecocardiográfica Doppler foi menos freqüente, ocorrendo em 10 (25,0%) dos pacientes com valvite leve e em apenas 1 (2,5%) daqueles com valvite moderada, e em nenhum com valvite grave.

CONCLUSÃO: A identificação de lesões valvares na febre reumática é maior se a avaliação clínica for acrescida do exame ecocardiográfico Doppler, que também mostra menor índice de regressão das lesões valvares. O diagnóstico de valvite e valvopatia subclínicas tem implicação quanto às profilaxias secundária da febre reumática e da endocardite.

Palavras-chave: febre reumática, ecocardiografia Doppler, valvite, valvopatia reumática

A febre reumática (FR) continua sendo a principal causa de cardiopatia adquirida na criança escolar, adolescente e adulto jovem, nos países em desenvolvimento1. A FR implica grandes gastos com a saúde por se tratar de doença crônica que necessita de acompanhamento clínico e, muitas vezes, abordagem das lesões valvares através do cateterismo cardíaco para realização de valvoplastia com cateter balão ou tratamento cirúrgico para reparo ou substituição valvar.

O prognóstico é bom, com menor índice de evolução para valvopatia crônica, na ausência de cardite e/ou de recidiva da doença. Em geral, os pacientes sem cardite não apresentarão cardiopatia crônica significativa. Entretanto, o prognóstico piora à medida que aumenta a gravidade da cardite e, na presença de insuficiência cardíaca no surto inicial da moléstia, 60% mostraram evidência de cardiopatia após dez anos2. Levando-se em conta que o diagnóstico da FR resulta de um conjunto de manifestações clínico-laboratoriais, a origem reumática das valvites ou das valvopatias crônicas subclínicas deverá ser analisada à luz desses critérios, e os achados ecocardiográficos Doppler não estão incluídos entre eles3. Além disso, o ecocardiograma Doppler, embora extremamente útil para evidenciar e quantificar alterações cardíacas, mesmo na ausência de sinais clínicos, não permite afirmar a etiologia das lesões4, embora possa sugerir a etiologia, já que as alterações ecocardiográficas Doppler do envolvimento valvar reumático são típicas.

O progresso nos métodos diagnósticos, com o advento do estudo ecocardiográfico Doppler, proporcionou melhor avaliação de lesões orovalvares. Pela análise ao modo M e bidimensional podem ser determinados, com segurança, o grau de disfunção ventricular, a presença de acometimento pericárdico e as alterações da textura valvar. A análise Doppler (mapeamento com fluxo em cores, pulsátil e contínuo) permite detectar disfunção valvar mesmo sem evidência clínica, assim como classificar o tipo e o grau da lesão valvar pela magnitude do jato de regurgitação e pela estimativa da área valvar5.

Tendo em vista a diferença entre o exame clínico e o ecocardiográfico Doppler na definição da presença e do grau de acometimento valvar, o estudo propôs quantificar o grau de acometimento cardíaco nas fases aguda e crônica da FR e estudar a evolução da doença segundo as duas avaliações.

MÉTODOS

Realizou-se um estudo observacional longitudinal, com levantamento de dados retrospectivos de 258 pacientes com diagnóstico de FR, baseado nos critérios de Jones (1992)6, e que foram atendidos no Serviço entre agosto de 1983 e dezembro de 1988. Os pacientes foram selecionados entre 392 pacientes acompanhados nos Ambulatórios específicos para atendimento de pacientes portadores de FR. A presença e quantificação das lesões valvares foi determinada pelas avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler, tanto na fase aguda quanto na crônica. Dos 258 pacientes, 109 foram submetidos a avaliação ecocardiográfica Doppler na fase aguda. Na fase crônica, considerada após pelo menos dois anos de doença, todos os pacientes tiveram o grau de envolvimento cardíaco determinado pelas avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler.

A determinação do grau de envolvimento cardíaco foi realizada em período máximo de até três meses entre a classificação clínica e a ecocardiográfica Doppler, nas fases aguda e crônica. Pela história clínica, foram definidos o início das manifestações clínicas e a caracterização das manifestações maiores e menores incluídas nos critérios de Jones. A fase aguda foi definida como o período compreendido entre o início dos sintomas e sinais e o final da 12ª semana de doença ou antes, com a normalização dos exames laboratoriais que representam as reações da fase aguda do soro.

A partir de 1994, todos os pacientes atendidos no Serviço com febre reumática aguda (FRA), mesmo sem manifestações clínicas de acometimento cardíaco, foram submetidos também a avaliação ecocardiográfica Doppler, além dos exames clínicos, radiológicos e eletrocardiográficos. Os exames ecocardiográficos Doppler incluindo as quatro modalidades – modo M, bidimensional, Doppler pulsátil, contínuo e mapeamento de fluxo em cores – foram realizados com os equipamentos ecocardiográficos Siemens CF PLUS e Hewlett - Packard (HP) versão 1.500, com sondas de 2,5, 3,5 e 5,5 MHZ.

A determinação das dimensões das câmaras esquerdas foi obtida pelo modo M, através da janela paraesternal, eixo curto. Os valores obtidos foram comparados com valores normais de referência, segundo o peso. A fração de ejeção (FE) foi avaliada pelo método de Teichholz (1964)5. Os critérios utilizados para a quantificação das regurgitações valvares foram baseados no mapeamento de fluxo em cores. Para a determinação do grau da regurgitação mitral, foi utilizada a área do fluxo regurgitante. A regurgitação mitral foi considerada fisiológica segundo os seguintes critérios: valvas de morfologia e textura normais; câmaras cardíacas de dimensões normais; discreto jato regurgitante, menor que 1 cm do nível do fechamento valvar, pela análise Doppler com mapeamento de fluxo em cores; jato de regurgitação ocupando menos que 50% da sístole pela análise ao Doppler contínuo. A regurgitação aórtica foi quantificada pela relação entre a extensão do jato regurgitante e a secção da via de saída do ventrículo esquerdo7. Quanto às lesões obstrutivas, a área valvar mitral foi determinada por meio da técnica Doppler, que se baseia no pressure half-time (PHT), na ausência de regurgitação aórtica significativa, e pela planimetria ao bidimensional e nos gradientes diastólicos máximo e médio entre o átrio esquerdo (AE) e o ventrículo esquerdo (VE).

Procedeu-se às classificações clínicas do grau de acometimento cardíaco nas fases aguda e crônica. Na fase aguda, a classificação do envolvimento cardíaco, denominada cardite, foi realizada segundo o protocolo do Serviço baseado na classificação descrita por Décourt8 e Markowitz & Gordis9. Foram considerados quatro graus de cardite: ausente, leve, moderada e grave. Na fase crônica, a presença e o grau de envolvimento cardíaco foram determinados a partir de parâmetros semelhantes aos da fase aguda, sendo denominada cardiopatia crônica e estratificada nas categorias ausente, leve, moderada e grave. Para a classificação ecocardiográfica Doppler do grau de acometimento cardíaco nas fases aguda e crônica, consideraram-se exclusivamente o grau da lesão valvar e as dimensões das câmaras cardíacas de acordo com os padrões ecocardiográficos já estabelecidos5,7,10,11. As classificações ecocardiográficas Doppler dos graus de acometimento valvar nas fases aguda e crônica, denominadas de valvite e de valvopatia crônica, foram divididas também em quatro graus: ausente, leve, moderada e grave.

O termo valvopatia aqui empregado restringe-se à análise ecocardiográfica Doppler exclusiva de lesões valvares mitral e/ou aórtica, na fase crônica da FR. A determinação de lesões das valvas tricúspide e pulmonar não foi realizada neste estudo. As lesões valvares classificadas segundo a avaliação ecocardiográfica Doppler como de grau leve a moderado foram incluídas no item de acometimento moderado e as classificadas como de grau moderado a grave foram analisadas como grave.

O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital. Os dados obtidos foram analisados com a utilização do EPI-Info 6. Foi realizado um estudo comparativo da evolução dos pacientes portadores de FR, tendo em vista as avaliações clínica, incluindo os achados eletrocardiográficos e radiológicos de tórax, e as quatro classificações das lesões valvares realizadas segundo os critérios ecocardiográficos Doppler. Para medir a concordância entre as classificações, utilizou-se a estatística de Kappa, calculando-se o valor de Kappa (K) não-ponderado. A interpretação convencional dos valores K é a seguinte: Kappa maior que 75% – concordância excelente; entre 40% e 75% – concordância de razoável a boa; Kappa abaixo de 40% – concordância fraca. As evoluções segundo as avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler da cardite e valvite, respectivamente, foram comparadas pelo qui-quadrado (c2) ou teste de Fisher. Adotou-se o nível de significância de p < 0,05.

RESULTADOS

Dos 258 pacientes incluídos no estudo, 132 (51,2%) eram do sexo masculino e 126 (48,8%) do sexo feminino, com idade no primeiro surto de FR variando entre 3,2 e 16,5 anos, média de 9,0 ± 2,6 anos e mediana de 9,0 anos. Considerando-se exclusivamente o período de seguimento dos 258 pacientes no Serviço, foram totalizados 1.383 pacientes-ano.

Na distribuição dos pacientes de acordo com os critérios de Jones, a artrite, a cardite e a coréia foram manifestações freqüentes no quadro de FRA, estando presentes em 65,5%, 56,6% e 24,0%, respectivamente. Considerando-se as manifestações maiores associadas mais comuns na apresentação da FRA, a associação de artrite e cardite foi a mais freqüente, ocorrendo em 29,8% dos 258 pacientes no primeiro surto. Apenas 2,7% dos pacientes apresentaram cardite, artrite e coréia associadas, sendo também pouco comum (4,3%) a concomitância de artrite e coréia.

Os principais achados ecocardiográficos Doppler dos 109 pacientes investigados no Serviço, durante o primeiro surto, estão listados na tabela 1. A função contrátil do ventrículo esquerdo esteve dentro dos limites da normalidade na grande maioria (99,1%), observando-se sua diminuição em apenas um paciente, cuja fração de ejeção foi de 0,52. Uma ou mais câmaras cardíacas mostraram-se aumentadas em 58 pacientes (53,2%), e o aumento combinado de AE e VE foi mais freqüente do que o aumento isolado ou global das quatro câmaras. Como apresentação isolada ou associada a outras lesões, a regurgitação mitral esteve presente em 92 (84,4%) pacientes e a regurgitação aórtica em 53 (48,6%). Entretanto, registrou-se regurgitação aórtica isoladamente em apenas três (2,7%) pacientes, não sendo observadas lesões valvares obstrutivas. A presença de derrame pericárdico foi incomum, sendo detectado em apenas quatro (3,7%) exames.

A análise por leitura diagonal da tabela 2 mostra que tanto na fase aguda quanto na crônica, a avaliação clínica tendeu a subestimar o grau do acometimento cardíaco, quando comparada à classificação do grau da lesão valvar realizada segundo os parâmetros ecocardiográficos Doppler. Na fase aguda, dezessete (54,8%) dos 31 pacientes sem evidência de envolvimento cardíaco pela avaliação clínica apresentaram lesão valvar pela avaliação ecocardiográfica Doppler (valvite subclínica). Semelhantemente, na fase crônica, 81 (52,9%) dos 153 pacientes sem evidência clínica de lesão valvar e com ECG e radiografias de tórax normais apresentaram alterações valvares ao exame ecocardiográfico Doppler (valvopatia crônica subclínica). Todos os pacientes identificados pela avaliação clínica como portadores de cardiopatia, entretanto, apresentaram valvopatia à avaliação ecocardiográfica Doppler. Houve concordância no diagnóstico do grau de lesão valvar, em ambas as avaliações, naqueles pacientes com grau de acometimento cardíaco classificado como moderado ou grave, tanto na fase aguda quanto na fase crônica.

Na análise evolutiva do envolvimento cardíaco da fase aguda para a crônica, segundo a avaliação clínica complementada pelos estudos eletrocardiográfico e radiológico de tórax, observa-se que houve maior porcentual de regressão da lesão valvar quando a cardite foi de grau leve (59,4%), menor porcentual quando de grau moderado (15,2%) e não houve registro de involução nos casos de cardite grave. Dos pacientes sem evidência clínica de cardite, oito (7,1%) mostraram alteração cardíaca pela avaliação clínica na fase crônica (tabela 3).

Considerando-se o grau de acometimento cardíaco pela avaliação ecocardiográfica Doppler, tanto na fase aguda quanto na fase crônica, a ausência de valvite indicou maior probabilidade de normalidade na fase crônica; apenas um (7,1%) dos pacientes sem lesão valvar na fase aguda evidenciou lesão valvar leve na fase crônica (tabela 4).

Como pode ser observado, a involução das lesões valvares segundo a avaliação ecocardiográfica Doppler foi menos freqüente em relação à avaliação clínica, ocorrendo em dez (25,0%) dos pacientes com lesão valvar leve (p = 0,0013) e em apenas um (2,5%) com valvite moderada (p = 0,0526). Além disso, não houve evolução para normalização ecocardiográfica Doppler das valvites graves (tabela 5).

DISCUSSÃO

Considerando-se que as valvas tricúspide e pulmonar evidenciam regurgitação (fisiológica) na maioria das crianças e adolescentes normais12,13, e que os jatos anormais de regurgitação podem ocorrer por hipertensão pulmonar, seus acometimentos na FR não foram avaliados neste estudo. A regurgitação aórtica não foi considerada fisiológica em nenhum dos pacientes. Apenas a lesão valvar foi considerada na classificação do grau do envolvimento cardíaco, mesmo na fase aguda, tendo em vista que os acometimentos pericárdico e/ou miocárdico na FRA geralmente são de grau leve e não determinam a gravidade do acometimento cardíaco reumático14-16.

Não foi encontrado na literatura estudo semelhante a esse que compara a evolução da FR em relação ao grau de lesão valvar mitral e/ou aórtica segundo as avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler. Também o teste de Kappa (K), freqüentemente empregado para medir a concordância de avaliação entre observadores, não foi empregado em estudos a respeito de comparação entre as classificações clínica e ecocardiográfica Doppler do grau de lesão valvar na FR. Refletindo a menor sensibilidade do exame clínico em relação ao ecocardiográfico Doppler na detecção de valvite e/ou valvopatia reumática crônica, os valores de Kappa foram interpretados como entre fraca e moderada concordância, dependendo do grau de envolvimento cardíaco. Nos casos graves, as avaliações clínica e ecocardiográfica Doppler foram concordantes.

Na análise do perfil de apresentação clínica da FR registrado na literatura, observa-se semelhança na distribuição de freqüência das principais manifestações maiores da FR quando se trata de primeiro surto14,17-19. A distribuição das manifestações clínicas maiores em surtos ocorridos nas décadas de 1980 e final da de 1990 em alguns estados dos Estados Unidos, tal como Utah20,21, foi semelhante à observada entre os pacientes aqui estudados, como a coréia que aqui esteve presente em 24% e em Utah em 28%, assim como os baixos índices de associação de coréia e artrite 4,0% e 4,3%, respectivamente. Na presença de cardite, o diagnóstico de FR torna-se mais fácil, principalmente se alguma outra manifestação maior estiver presente. A cardite esteve presente em 146 (56,6%) pacientes, porcentual esse semelhante ao de outros estudos, independentemente se de países desenvolvidos ou em desenvolvimento17,22,23.

Na presente investigação, 87,2% dos 109 ecocardiogramas Doppler realizados na fase aguda evidenciaram algum tipo de anormalidade, e dezessete (15,6%) pacientes não mostravam alteração ao exame cardiovascular. Ty & Ortiz24 também registraram anormalidades em 89,0% de 28 pacientes com quadro de FRA, cinco (17,9%) deles sem evidência clínica de cardite. Semelhantemente, entre os 258 submetidos ao estudo ecocardiográfico Doppler na fase crônica, 190 (73,6%) evidenciaram anormalidade valvar, e em 85 (44,7%) o exame clínico era normal. Considerando-se os resultados do estudo ecocardiográfico Doppler realizado na fase aguda de 109 pacientes, a função contrátil do ventrículo esquerdo mostrou-se levemente comprometida em apenas um paciente (0,9%), coincidindo com os resultados de Ty & Ortiz24, que observaram redução da fração de ejeção e da porcentagem de encurtamento em apenas um (3,6%) dos 28 pacientes avaliados nessa fase. Os autores atribuem esse fato ao uso de antiinflamatório e à baixa sensibilidade desses parâmetros na detecção de alterações leves da função contrátil.

Além disso, a dilatação ventricular esquerda decorrente de disfunções valvares mitral e/ou aórtica tende a superestimar essas medidas. As cavidades ventriculares esquerdas, medidas na fase final da diástole ao modo-M, mostraram-se aumentadas em 53,2% dos ecocardiogramas realizados na fase aguda. A regurgitação mitral foi a lesão predominante, ocorrendo de maneira isolada ou associada em 84,4%, em concordância os relatos da literatura20,25. A regurgitação aórtica foi detectada em 48,6% dos 109 pacientes pelo estudo ecocardiográfico Doppler, mas apenas quatorze (12,8%) apresentaram ausculta compatível com regurgitação aórtica.

Dos 258 pacientes analisados na fase crônica, 189 apresentaram algum tipo de lesão valvar mitral e/ou aórtica, sendo a regurgitação mitral (isolada ou associada) a lesão mais prevalente (97,9%), seguida pelas regurgitação aórtica associada à lesão mitral (49,2%) e a estenose mitral associada à regurgitação mitral (12,7%), não tendo sido identificado caso algum de estenose aórtica ou de estenose mitral isolada. Esses achados estão de acordo com os descritos na literatura, para investigações em pacientes com faixa etária semelhante ao desta pesquisa, observando-se que as lesões obstrutivas necessitam de maior tempo para se instalar25,26.

Décourt8 já descrevia, em sua experiência clínica com pacientes portadores de cardite de grau leve, que em cerca de 80% as manifestações cardíacas desapareciam, com evolução sem vício valvar residual. Entretanto, nos casos de cardite moderada ou grave, a cardiopatia residual seria o acontecimento mais provável. Thomas26 classicamente demonstrou que aqueles pacientes sem anormalidades cardíacas na fase aguda mantiveram exame clínico normal no período de seguimento, ao passo que nos pacientes que apresentaram sopros na fase aguda o índice de regressão variou de acordo com a intensidade destes. Semelhantemente, Majeed e cols.27 observaram o desenvolvimento de cardiopatia residual em 49% de 29 crianças que apresentaram cardite e nenhuma criança sem cardite apresentou cardiopatia reumática crônica (CRC).

Os resultados da presente investigação, em concordância com os autores anteriores, mostraram que a evolução para CRC variou com o grau de cardite. Dos 64 pacientes que apresentaram cardite leve, 38 (59,4%) não mais evidenciaram sinais clínicos de acometimento valvar. Entretanto, entre os 82 pacientes que exibiram cardite moderada ou grave, 86,6% evoluíram para CRC e todos os casos de cardite grave (100,0%) mostraram evidência clínica de CRC. Já a involução das lesões valvares, tendo em vista a avaliação ecocardiográfica Doppler nas fases aguda e crônica, foi menos freqüente. Apenas dez (25%) dos pacientes com valvite de grau leve, um (2,5%) com valvite moderada e nenhum com cardite grave apresentou exame ecocardiográfico Doppler normal na fase crônica.

O presente estudo demonstrou que o estudo ecocardiográfico Doppler é importante exame complementar na identificação e na classificação das lesões valvares, tanto na fase aguda quanto na fase crônica da FR. Considerando a avaliação ecocardiográfica Doppler, a freqüência de identificação de lesões valvares é maior e a regressão das lesões valvares é menor em relação à avaliação clínica. A identificação de lesões valvares subclínicas tem implicação no tratamento na fase aguda com relação ao repouso e acompanhamento mais próximo do paciente. Na fase crônica é importante na definição da época de suspensão da profilaxia secundária e indicação de profilaxia de endocardite.

Recebido em 05/08/04

Aceito em 29/04/05

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  • Correspondência

    Zilda Maria Alves Meira
    Rua Roquete Mendonça, 184/401
    31275-030 – Belo Horizonte, MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Jan 2006

    Histórico

    • Recebido
      29 Abr 2005
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