Acessibilidade / Reportar erro

Segurança do transplante autólogo, intra-arterial, de células mononucleares da medula óssea na fase aguda do acidente vascular cerebral isquêmico

Resumos

O acidente vascular cerebral (AVC) é a terceira causa de óbito e a principal causa de incapacidade em indivíduos adultos. Embora a mortalidade do AVC esteja diminuindo em alguns países, a morbidade tem aumentado em razão do envelhecimento da população e do aumento da sobrevida dos pacientes¹. O tratamento com ativador do plasminogênio tissular recombinante (rt-PA) é eficaz quando instituído em até 3 horas após o início dos sintomas², porém seu uso está limitado a cerca de 5% dos pacientes na fase aguda do AVC isquêmico. Além disso, nenhum agente para neuroproteção teve sua eficácia comprovada em estudos clínicos em humanos. Portanto, outras estratégias terapêuticas precisam ser desenvolvidas. Em modelos animais, o uso de células-tronco correlacionou-se com melhora funcional após o AVC³. Publicações recentes têm demonstrado a segurança do tratamento com células mononucleares da medula óssea (CMMO) injetadas via intracoronária em pacientes portadores de cardiopatia isquêmica aguda ou crônica4,5. Baseado nesses dados iniciais, há crescente interesse no estudo do transplante com CMMO na fase aguda do AVC. Relatamos o primeiro caso de transplante autólogo de CMMO via intra-arterial na fase aguda do AVC isquêmico.


Stroke is the third cause of death and the leading cause of disability in adult subjects. Although stroke mortality has been declining in some countries, stroke morbidity has been increasing due to the aging of population and patients improved survival.¹ Treatment with recombinant tissue plasminogen activator (rtPA) is successful provided it is administered within 3 hours of symptoms onset,² but its use is limited to about 5% of the patients with acute ischemic stroke. Furthermore, no neuroprotective agent has yet been proven effective in human clinical trials. The development of other therapeutic strategies is, therefore, warranted. The use of stem cells in animal models has led to functional improvement following stroke.³ Recent publications have shown that bone marrow mononuclear cells (BM-MNC) therapy through intracoronary injection is a safe procedure in patients with acute or chronic ischemic heart disease.4,5 Based on these preliminary data, there has been growing interest in the study of BM-MNC transplantation for acute ischemic stroke. We report the first case of intra-arterial autologous BM-MNC transplantation for acute ischemic stroke.


RELATO DE CASO

Segurança do transplante autólogo, intra-arterial, de células mononucleares da medula óssea na fase aguda do acidente vascular cerebral isquêmico

Maria Lúcia Furtado de Mendonça; Gabriel R. de Freitas; Suzana Alves da Silva; Aquiles Manfrim; Carlos Henrique Eiras Falcão; Constantino Gonzáles; Charles André; Hans Fernando Rocha Dohmann; Radovan Borojevic; Rosália Mendez Otero

Hospital Pró-Cardíaco, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto do Milênio de Bioengenharia Tecidual - Rio deJaneiro, RJ

Correspondência Correspondência Hans Fernando Rocha Dohmann Av. Nossa Senhora de Copacabana, 2/602 22010-120 - Rio de Janeiro, RJ E-mail: hdohmann@cardiol.br ou diretoria.cientifica@procardiaco.com.br

RESUMO

O acidente vascular cerebral (AVC) é a terceira causa de óbito e a principal causa de incapacidade em indivíduos adultos. Embora a mortalidade do AVC esteja diminuindo em alguns países, a morbidade tem aumentado em razão do envelhecimento da população e do aumento da sobrevida dos pacientes1. O tratamento com ativador do plasminogênio tissular recombinante (rt-PA) é eficaz quando instituído em até 3 horas após o início dos sintomas2, porém seu uso está limitado a cerca de 5% dos pacientes na fase aguda do AVC isquêmico. Além disso, nenhum agente para neuroproteção teve sua eficácia comprovada em estudos clínicos em humanos. Portanto, outras estratégias terapêuticas precisam ser desenvolvidas. Em modelos animais, o uso de células-tronco correlacionou-se com melhora funcional após o AVC3. Publicações recentes têm demonstrado a segurança do tratamento com células mononucleares da medula óssea (CMMO) injetadas via intracoronária em pacientes portadores de cardiopatia isquêmica aguda ou crônica4,5. Baseado nesses dados iniciais, há crescente interesse no estudo do transplante com CMMO na fase aguda do AVC.

Relatamos o primeiro caso de transplante autólogo de CMMO via intra-arterial na fase aguda do AVC isquêmico.

RELATO DO CASO

Mulher negra, 54 anos, com história de hipertensão arterial sistêmica e AVC isquêmico, em tratamento regular com fenitoína, foi internada no setor de emergência de outra instituição, 6 horas após o início de hemiparesia direita e afasia global. Tomografia computadorizada de crânio (TC) evidenciou lesão isquêmica aguda no território da artéria cerebral média (ACM) esquerda.

No terceiro dia após o AVC, depois de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelo marido e pelo filho, a paciente foi transferida para o Hospital Pró-Cardíaco. Na internação, a pressão arterial sistêmica era de 110 x 70 mmHg e a freqüência cardíaca, de 85 bpm. O exame neurológico evidenciou afasia global, hemiparesia e hemi-hipoestesia fácio-bráquio-crural direita com sinal de Babinski ipsilateral. Os reflexos profundos eram vivos e simétricos. A pontuação na escala do National Institute of Health Stroke Scale Score (NIHSS) foi 17; pontuação na escala de Rankin modificada (mRS) foi 4 e no índice de Barthel, 5. Ressonância magnética (RM) cerebral, incluindo a seqüência de difusão, confirmou lesão recente no território do ramo posterior da artéria cerebral média esquerda e lesão antiga na região do ramo posterior da artéria cerebral média direita (fig. 1). O uso de fenitoína foi mantido. Aspirina e heparina de baixo peso molecular para profilaxia de trombose venosa profunda foram associadas ao esquema terapêutico. Os exames de sangue de rotina foram normais. A paciente foi submetida a Doppler transcraniano (DTC) na internação que evidenciou patência das artérias intracranianas. Eletrocardiograma, ecocardiograma transtorácico e transesofágico, Doppler e duplex scan de carótidas e vertebrais foram normais.


A paciente foi selecionada para o protocolo de pesquisa, fase I, da "Segurança e Exeqüibilidade do Transplante Autólogo de Células Mononucleares da Medula Óssea na Fase Aguda do Acidente Vascular Cerebral Isquêmico", aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Pró-Cardíaco e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) em 30 de junho de 2004, e registrado sob o número CNS/9396.

No quarto dia, antes do procedimento de injeção, a imagem de RM nas seqüências de difusão e perfusão sugeriu haver uma área de penumbra isquêmica ocupando parte do território da artéria cerebral média esquerda. Tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) cerebral com Tc-99m mostrou hipoperfusão nas regiões parietal e occiptal esquerda (fig. 2A); tomografia com emissão de pósitrons com Fluorine-18-2-Fluoro-2-Deoxy-d-glucose (FDG-PET) demonstrou uma área de hipometabolismo no lobo parietal esquerdo e parte dos lobos parietal e occipital direito (fig. 3A). EEG evidenciou atividade delta polimorfa temporal esquerda, e DTC revelou velocidade de fluxo normal na ACM esquerda.


TRANSPLANTE CELULAR

Aproximadamente 4 horas antes do procedimento de injeção, foram aspirados 50 ml de medula óssea da crista ilíaca posterior, sob sedação e analgesia local. As CMMO foram isoladas por meio de gradiente de densidade em solução de Ficoll-Paque Plus (Amersham Bioscienses). As CMMO foram lavadas com solução salina heparinizada contendo albumina humana 5% e filtradas através de uma peneira de nylon 100 µm para remoção dos agregados celulares. Essas células foram cuidadosamente suspensas em solução salina e albumina humana 5% para injeção. Uma pequena fração da suspensão celular foi usada para contagem celular e teste de viabilidade com azul de "trypan". A viabilidade celular foi > 90%, assegurando a qualidade da suspensão celular. A caracterização post-hoc dos fenótipos celulares foi realizada por meio de citometria de fluxo e análise funcional de uma segunda fração de células6. A fim de se determinar a presença de linhagens progenitoras mesenquimais, as unidades formadoras de colônias de fibroblasto foram quantificadas conforme previamente descrito6. Culturas em meios de cultivo para fungos e bactérias foram negativas.

A paciente foi encaminhada ao laboratório de intervenção cardiovascular aproximadamente trinta minutos antes do retorno das células ao hospital. Após arteriografia cerebral e cateterização da ACM esquerda, foram injetados cerca de 30x107 CMMO. Não havia obstrução da ACM esquerda ou de seus ramos. Um volume total de 3 ml, contendo 10x107 CMMO/ml, foi injetado na ACM em um intervalo de dez minutos. Durante todo o procedimento, a paciente foi monitorizada com DTC e EEG, os quais não evidenciaram sinais de microembolização (DTC) ou alterações eletroencefalográficas (EEG).

ACOMPANHAMENTO

A paciente foi submetida, no sétimo dia após o transplante, aos exames complementares não-invasivos realizados antes do procedimento. Houve uma discreta diminuição da área isquêmica na seqüência de difusão da RM e de hipoperfusão pelo SPECT (fig. 2B). O FDG-PET mostrou um aumento do metabolismo no córtex parietal esquerdo (fig. 3B). O EEG não evidenciou atividade epileptiforme. No exame neurológico a paciente apresentou melhora parcial da hemiparesia direita e da compreensão da linguagem. A paciente foi tratada com gatifloxacina durante dez dias em razão de sinusite maxilar, e foi iniciada quetiapina 12,5 mg para tratamento de insônia. No 29º dia de seguimento, dia da alta hospitalar, a pontuação do NIHSS foi de 14; a pontuação da escala de Rankin modificada foi de 3 e o índice de Barthel, 60. No 60º dia de acompanhamento, os escores foram de 9; 3 e 60, respectivamente.

DISCUSSÃO

Essa foi a primeira paciente incluída em nosso estudo clínico, de fase I, da "Segurança e Exeqüibilidade do Transplante Autólogo de CMMO na Fase Aguda do Acidente Vascular Cerebral Isquêmico". Esse estudo tem por objetivo incluir dez pacientes no grupo-tratado e cinco pacientes no grupo-controle. Até o presente, este é o primeiro relato de transplante intra-arterial de CMMO na fase aguda do AVC.

Estudos consistentes sobre o uso de células-tronco na fase aguda do AVC foram realizados em modelos experimentais de isquemia focal3. Em ratos adultos, submetidos a oclusão transitória ou permanente da artéria cerebral média, diferentes tipos de células-tronco (medula óssea de camundongos, medula óssea humana, cordão umbilical humano etc.), administrados por via intravenosa ou intra-arterial, resultaram em diminuição da área isquêmica e melhor recuperação funcional comparados ao grupo-controle.

Kondziolka e cols.7 estudaram a segurança e exeqüibilidade do transplante intraparenquimatoso de 2 a 6 x 106 neurônios derivados de teratocarcinoma humano em doze pacientes com AVC de núcleos da base e déficit motor estabelecido. Não ocorreram efeitos adversos em doze meses de acompanhamento. A pontuação na escala européia de AVC (European Stroke Scale Score) melhorou em seis pacientes, e seis dos onze exames de PET-scan realizados seis meses após o procedimento evidenciaram um aumento na captação de FDG no local implantado. Um dos pacientes faleceu de infarto agudo do miocárdio 27 meses após o transplante, e estudo anatomopatológico evidenciou a existência de neurônios derivados das células transplantadas8.

As células-tronco têm capacidade de auto-renovação, de diferenciação em múltiplas linhagens celulares, e podem ser obtidas de fontes embrionárias, fetais ou adultas. O tipo celular ideal para reparo neuronal ainda é motivo de debate. As células-tronco adultas autólogas da medula óssea possuem algumas vantagens em relação às células-tronco embrionárias e outros tipos celulares: não existe risco de rejeição, não estão ligadas à formação de teratomas como as células embrionárias, e não estão relacionadas aos problemas éticos e legais9.

É desconhecido o mecanismo pelo qual as células transplantadas poderiam melhorar a recuperação funcional. Não está claro se essas células se diferenciam em neurônios ou funcionam como pequenas bombas produtoras de citocinas e fatores tróficos que estimulariam a neurogênese e angiogênese3. Redução da apoptose na área de penumbra isquêmica também tem sido proposta3. A monitorização das CMMO mediante emprego de marcadores radioativos ou magnéticos pode oferecer mais informações quanto ao mecanismo de ação das células-tronco10.

O nosso estudo de fase I foi desenhado para avaliar a segurança e exeqüibilidade do procedimento de transplante intra-arterial de CMMO em pacientes na fase aguda do AVC isquêmico. Portanto, não é possível afirmar se a evolução clínica favorável, assim como os resultados da RM e do PET estão ligados ao transplante de CMMO ou à recuperação neurológica espontânea. Melhora do edema cerebral ou recanalização arterial espontânea pode estar relacionada à melhora neurológica precoce. Mais informações sobre a segurança do procedimento serão disponíveis após a inclusão dos dez pacientes do estudo.

O uso de células autólogas da medula óssea para o tratamento do AVC é uma opção de baixo custo, relativamente simples e facilmente aplicável, caso sejam comprovadas sua segurança e eficácia. Pelo fato de o AVC ter enorme impacto social e econômico, causar importante incapacidade e sofrimento pessoal e familiar, e de não existir tratamento eficaz de amplo alcance, estudos clínicos de fase II e fase III, multicêntricos, randomizados, com transplante autólogo de células mononucleares da medula óssea, são urgentemente necessários.

Recebido em 15/12/04

Aceito em 25/07/05

  • 1. de Freitas GR, Bezerra DC, Maulaz AB, Bogousslavsky J. Stroke: background/ epidemiology/ aetiology/ avoiding recurrence. In: Barnes M, Dobkin B, Bogousslavsky J, eds. Recovery after Stroke. Cambridge: Cambridge University Press; 2005. 1-46.
  • 2. The National Institute of Neurological Disorders and Stroke t-PA Stroke Study Group. Tissue plasminogen activator for acute ischemic stroke. N Engl J Med 1995; 333: 15817.
  • 3. Chopp M, Li Y. Treatment of neural injury with marrow stromal cells. Lancet Neurol 2002; 1: 92-100 (Revisão).
  • 4. Perin EC, Dohmann HFR, Borojevic R et al. Transendocardial, autologous bone marrow cell transplantation for severe, chronic ischemic heart failure. Circulation 2003; 107: 2294-302.
  • 5. Wollert KC, Meyer GP, Lotz J et al. Intracoronary autologous bone-marrow cell transfer after myocardial infarction: the BOOST randomised controlled clinical trial. Lancet 2004; 364: 141-8.
  • 6 Coutinho LH, Gilleece MH, de Wynter EA et al. Clonal and long-term cultures using human bone marrow. In: Testa NG, Molineux G, eds. Haemopoiesis: A Practical Approach. New York, NY: Oxford University Press; 1993. 84-5.
  • 7. Kondziolka D, Wechsler L, Goldstein S et al. Transplantation of cultured human neuronal cells for patients with stroke. Neurology 2000; 55: 565-9.
  • 8. Nelson PT, Kondziolka D, Wechsler L et al. Clonal human (hNT) neuron grafts for stroke therapy: neuropathology in a patient 27 months after implantation. Am J Pathol 2002; 160: 1201-6.
  • 9. Korbling M, Estrov Z. Adult stem cells for tissue repair - a new therapeutic concept? N Engl J Med 2003; 349: 570-82 (Revisão).
  • 10. Hofmann M, Wollert KC, Meyer GP et al. Monitoring of bone marrow cell homing into the infarcted human myocardium. Circulation 2005; 111: 2198-202.
  • Correspondência

    Hans Fernando Rocha Dohmann
    Av. Nossa Senhora de Copacabana, 2/602
    22010-120 - Rio de Janeiro, RJ
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Jan 2006

    Histórico

    • Recebido
      25 Jul 2005
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br