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Terapia celular para acidente vascular cerebral isquêmico: esperança ou panacéia?

EDITORIAL

Terapia celular para acidente vascular cerebral isquêmico: esperança ou panacéia?

Hans Fernando Rocha Dohmann; Jamary Oliveira Filho

Hospital Pró-Cardíaco, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto do Milênio de Bioengenharia Tecidual - Rio de Janeiro - RJ

Correspondência Correspondência Hans Fernando Rocha Dohmann Av. Nossa Senhora de Copacabana, 2/602 22010-120 – Rio de Janeiro – RJ E-mail: diretoria.cientifica@procardiaco.com.br

Células-tronco são definidas como células que mantêm a capacidade de auto-replicação e diferenciação em múltiplas linhagens1. Estas células, presentes em proporções variáveis em órgãos adultos, teoricamente podem dar origem a qualquer tecido vivo de um organismo. Embora o conceito de transplante de células-tronco não seja novo, vem tendo um interesse crescente com este tipo de terapia, após a demonstração de que a medula óssea adulta poderia fornecer uma quantidade suficiente de células multipotentes para um transplante autólogo2. Entretanto, o otimismo relacionado a qualquer novo tratamento deve ser avaliado com cautela.

Na edição de janeiro/06 dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia (Vol. 86, págs. 52-55), Mendonça e cols. relataram o primeiro transplante autólogo de células-tronco derivadas da medula óssea em paciente com acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico. Apesar dos resultados parecerem sugerir que o procedimento tenha sido seguro, exeqüível e resultado em um aumento precoce do metabolismo na região cerebral afetada pela isquemia, o simples relato de caso não deve receber um título que defina estes atributos. Portanto, tais termos devem ser suprimidos do título, o que já foi feito na versão eletrônica dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Ainda mais quando sabemos que a análise da fase aguda do AVC isquêmico é um desafio e os autores corretamente enfatizaram que os achados nesta paciente podem ser secundários à recuperação espontânea. Em uma série de casos local, por exemplo, 61% dos pacientes apresentaram recuperação espontânea para independência completa (medida pelo escore de Rankin < 3)3. Além disso, nesse relato de caso, houve recanalização espontânea da artéria cerebral média, evidenciado pelo Doppler transcraniano, o qual é um preditor de bom prognóstico4,5.

Exames de neuroimagem para avaliação da evolução do AVC nesta paciente também foram realizados e incluíram ressonância magnética, cintilografia (SPECT) e tomografia computadorizada com emissão de pósitrons (PET) cerebral. Tais imagens também devem ser interpretadas no contexto da evolução natural do AVC isquêmico agudo. O padrão mais freqüente em pacientes com AVC agudo é que a área de necrose (core) é envolvida por uma área de hipoperfusão de tecido cerebral isquêmico, mas ainda viável (penumbra)6. Este padrão normalmente persiste por 24h. As células localizadas na zona de penumbra morrem progressivamente e o core se expande em aproximadamente, toda a área de hipoperfusão inicial6. A melhora da hipoperfusão inicial é esperada na maioria dos pacientes com AVC com o decorrer do tempo, e até as anormalidades observadas nas imagens de difusão podem apresentar melhora em casos selecionados7,8. O aumento do metabolismo regional neste caso foi sugerido pelo PET, mas alguma regeneração tecidual espontânea é possível em pacientes com AVC. A falta de dados quantitativos limita as conclusões quanto a este achado.

A pesquisa com células-tronco abre uma avenida fascinante em doenças neurológicas. Entretanto muito ainda precisa ser esclarecido: estudos de ciência básica devem elucidar os mecanismos exatos pelos quais a terapia celular é capaz de recuperar déficits relacionados ao AVC; estudos clínicos em seres humanos, controlados e randomizados serão necessários para avaliação dos pacientes submetidos ao transplantes com células-tronco da medula óssea comparados àqueles com história natural do AVC isquêmico. A avaliação cuidadosa da segurança deste tipo de procedimento também é fundamental, uma vez que um risco aumentado de trombose no sítio de injeção e desenvolvimento de focos epileptogênicos são ainda uma preocupação à medida que mais pacientes são estudados. Os autores do estudo mencionado devem ser parabenizados tanto pela experiência pioneira quanto pelos comentários realísticos, sendo que os resultados comparativos da fase I são ansiosamente esperados. A terapia celular provavelmente não será uma panacéia para o tratamento de doenças neurológicas, mas a esperança do sucesso deve estimular a continuidade da pesquisa científica nesta área. Nossos pacientes merecem isso.

REFERÊNCIAS

1. Körbling M, Estrov Z. Adult stem cells for tissue repair - a new therapeutic concept? N Engl J Med. 2003;349:570-82.

2. Jiang Y, Jahagirdar BN, Reinhardt RL et al. Pluripotency of mesenchymal stem cells derived from adult marrow. Nature. 2002;418:41-9.

3. Oliveira-Filho J, Silva SCS, Trabuco CC et al. Detrimental effect of blood pressure reduction in the first 24 hours of acute stroke onset. Neurology. 2003;61:1047–51.

4. Baracchini C, Manara R, Ermani M, Meneghetti G. The quest for early predictors of stroke evolution. Can TCD be a guiding light? Stroke. 2000;31:2942-7.

5. Alexandrov AV, Felberg RA, Demchuk AM et al. Deterioration following spontaneous improvement: Sonographic findings in patients with acutely resolving symptoms of cerebral ischemia. Stroke. 2000;31:915-9.

6. Schwamm LH, Koroshetz WJ, Sorensen AG et al. Time course of lesion development in patients with acute stroke. Serial diffusion- and hemodynamic-weighted magnetic resonance imaging. Stroke. 1998;29:2268-76.

7. Lecouvet FE, Duprez TPJ, Raymackers JM, Peeters A, Cosnard G. Resolution of early diffusion-weighted and FLAIR MRI abnormalities in a patient with TIA. Neurology. 1999; 52:1085–7.

8. Krueger K, Kugel H, Grond M, Thiel A, Maintz D, Lackner K. Late resolution of diffusion-weighted MRI changes in a patient with prolonged reversible ischemic neurological deficit after thrombolytic therapy. Stroke. 2000;31:2715-8.

Recebido em 21/12/04

Aceito em 10/01/05

  • Correspondência

    Hans Fernando Rocha Dohmann
    Av. Nossa Senhora de Copacabana, 2/602
    22010-120 – Rio de Janeiro – RJ
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Fev 2006
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