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Espessamento médio-intimal da carótida e função endotelial na doença arterial coronariana

Resumos

OBJETIVO: Investigar uma correlação entre o teste de reatividade da artéria braquial (BART) e o espessamento médio-intimal (EMI) da carótida em uma população de pacientes com doença arterial coronariana, assim como avaliar uma correlação do BART e do EMI da carótida com a gravidade da doença arterial coronariana demonstrada através da coronariografia. MÉTODOS: Quarenta e dois pacientes (idade: 60,7 ± 9,2 anos, 66,7% do sexo masculino) com doença arterial coronariana por coronariografia foram estudados. A função endotelial foi avaliada de modo não-invasivo através do BART, quando foi medido o porcentual de dilatação mediada pelo fluxo (%DMF). O EMI de carótida foi avaliado por meio de ultra-som vascular. RESULTADOS: A média de %DMF foi de 4,7 ± 3,6 e a média de EMI de carótida foi de 1,08 ± 0,23 mm. As medidas do EMI de carótida e do %DMF apresentaram correlação estatisticamente significativa, com coeficiente de Spearman de -0,315, valor p = 0,042, demonstrando que valores menores de %DMF se correlacionaram a um maior EMI de carótida. Não houve correlação entre %DMF, EMI e a gravidade das lesões; CONCLUSÃO: A presença de uma correlação entre o %DMF e o EMI da carótida demonstra a concomitância de alterações vasculares funcionais e anatômicas na doença arterial coronariana, independentemente da gravidade das lesões ateroscleróticas.

Função endotelial; carótida; doença coronariana; aterosclerose


OBJECTIVE: To investigate the correlation between the endothelial function and the carotid intimal-medial thickening (IMT) in a population of patients with coronary artery disease, as well as that between the endothelial function and carotid IMT with the severity of the coronary lesions. METHODS: Forty-three patients aged 60.5±9.2 years, (67.4% males) with coronary artery disease at the coronariography were studied. Endothelial function was assessed using the brachial artery reactivity test (BART), which measured the percentage of flow-mediated dilatation (%FMD). The carotid IMT was evaluated through vascular ultrasound. RESULTS: The mean %FDM was 4.7 ± 3.6 and the mean carotid IMT was 1.08 ± 0.23 mm. The carotid MIT and %FMD measurements showed a statistically significant correlation, with Spearman’s coefficient of 0.315, p= 0.042, demonstrating that lower %FMD values corresponded to an increased carotid IMT (r = -0.315, p = 0.042). There was no correlation between %FMD or IMT and the severity of coronary lesions. CONCLUSIONS: The presence of a correlation between carotid IMT and %FMD demonstrates a concomitance of anatomical and functional vascular alterations in coronary artery disease, regardless of the severity of the atherosclerotic lesions.

Endothelial function; carotid; coronary disease; atherosclerosis


ARTIGO ORIGINAL

Espessamento médio-intimal da carótida e função endotelial na doença arterial coronariana

Graziela Chequer; Bruno Ramos Nascimento; Túlio Pinho Navarro; Eduardo Belisário Falqueto; Maria Clara N. Alencar; Márcio Cristiano R. de Miranda; Ari Mandil; Jamil Abdalla Saad; Cirilo Fonseca; Antônio Luiz Pinho Ribeiro

Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da UFMG, Hospital Socor e Hospital Felício Rocho - Belo Horizonte, MG

Correspondência Correspondência: Graziela Chequer Rua Montes Claros, 475/702 30310-370 – Belo Horizonte, MG E-mail: grazichequerr@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Investigar uma correlação entre o teste de reatividade da artéria braquial (BART) e o espessamento médio-intimal (EMI) da carótida em uma população de pacientes com doença arterial coronariana, assim como avaliar uma correlação do BART e do EMI da carótida com a gravidade da doença arterial coronariana demonstrada através da coronariografia.

MÉTODOS: Quarenta e dois pacientes (idade: 60,7 ± 9,2 anos, 66,7% do sexo masculino) com doença arterial coronariana por coronariografia foram estudados. A função endotelial foi avaliada de modo não-invasivo através do BART, quando foi medido o porcentual de dilatação mediada pelo fluxo (%DMF). O EMI de carótida foi avaliado por meio de ultra-som vascular.

RESULTADOS: A média de %DMF foi de 4,7 ± 3,6 e a média de EMI de carótida foi de 1,08 ± 0,23 mm. As medidas do EMI de carótida e do %DMF apresentaram correlação estatisticamente significativa, com coeficiente de Spearman de -0,315, valor p = 0,042, demonstrando que valores menores de %DMF se correlacionaram a um maior EMI de carótida. Não houve correlação entre %DMF, EMI e a gravidade das lesões;

CONCLUSÃO: A presença de uma correlação entre o %DMF e o EMI da carótida demonstra a concomitância de alterações vasculares funcionais e anatômicas na doença arterial coronariana, independentemente da gravidade das lesões ateroscleróticas.

Palavras-chave: Função endotelial, carótida, doença coronariana, aterosclerose.

A disfunção endotelial tem importante papel na formação da placa e no curso clínico da aterosclerose. O espessamento médio-intimal (EMI) da carótida é uma alteração vascular precoce, que precede a formação da placa. Entretanto, a correlação entre estes parâmetros na doença arterial coronariana não está definida.

A doença arterial coronariana persiste como a principal causa de óbito em todo o mundo. Sabe-se hoje que o endotélio tem participação central na patogênese da aterosclerose, deflagrando uma resposta inflamatória que é a responsável pela formação e instabilização da placa aterosclerótica, com influência direta no curso clínico desta e de outras doenças cardiovasculares, como hipertensão arterial e insuficiência cardíaca.

Até o início da década de 1990, a função endotelial era avaliada de modo invasivo, através da injeção intraco­ronária de acetilcolina1. Em 1992, Celermajer e cols.2 padronizaram o teste de reatividade da artéria braquial (brachial artery reactivity test – BART), quando a função endotelial foi avaliada de modo simples por meio de ultra-som vascular.

O espessamento médio-intimal vascular corresponde a um estágio inicial da aterosclerose, precedendo a formação da placa. A ultra-sonografia da artéria carótida permite facilmente essa medida, e a presença e a gravidade do espessamento médio-intimal carotídeo têm sido correlacionadas à aterosclerose coronariana3,4.

Embora a presença de disfunção endotelial e o espessamento médio-intimal da carótida tenham valor prognóstico bem demonstrado como preditores independentes de eventos cardiovasculares futuros (infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral e óbito), o valor desses métodos como indicadores de possível doença arterial coronariana não está definido e seu emprego clínico permanece incerto.

O objetivo principal deste estudo foi investigar uma correlação entre o teste de reatividade da artéria braquial (BART) e espessamento médio-intimal da carótida em uma população de pacientes com doença arterial coronariana. Como objetivo secundário, investigamos uma correlação entre esses dois testes e a gravidade das lesões ateroscleróticas detectadas pela angiografia coronariana.

MÉTODOS

A amostra foi constituída por pacientes encaminhados ao laboratório de Hemodinâmica dos Hospitais Felício Rocho e Socor, em Belo Horizonte, Minas Gerais, no período de março de 2002 a março de 2003. A solicitação da coronariografia foi feita pelo médico assistente, indicada para esclarecimento de dor torácica ou isquemia comprovada em um método funcional (teste ergométrico, cintilografia miocárdica ou ecocardiograma de estresse). Os pacientes foram selecionados consecutivamente logo após a realização de coronariografia eletiva. Foram incluídos todos os pacientes que apresentaram evidência de qualquer grau de obstrução luminal. Os critérios de exclusão foram: coronariografia normal (artérias coronárias lisas); diagnóstico de síndrome coronariana aguda (angina instável ou infarto agudo do miocárdio) nos sete dias anteriores ao exame; evidência clínica ou laboratorial de qualquer doença crônica como hepatopatia, valvopatias, insuficiência cardíaca, doenças da tireóide, insuficiência renal crônica com creatinina sérica > 2,0 mg%, doenças do tecido conjuntivo e neoplasias.

Após assinatura do termo de consentimento esclarecido os pacientes foram encaminhados ao Ambulatório Bias Fortes, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, para preenchimento do protocolo da pesquisa, com avaliação do quadro clínico e dos fatores de risco para doença coronariana.

Tabagismo foi definido como hábito de fumar nos últimos três meses. Dislipidemia foi definida como níveis séricos de colesterol LDL superiores a 160 mg% e herança para doença arterial coronariana como a presença de pelo menos um familiar em primeiro grau com diagnóstico da doença ou morte súbita, numa idade inferior a 55 anos no caso do sexo masculino, e 65 anos no caso do sexo feminino. Hipertensão arterial sistêmica foi considerada segundo informação do paciente ou uso de medicação anti-hipertensiva. A presença do diabetes mellitus foi definida segundo informação do paciente, uso de hipoglicemiante oral e/ou insulina ou através de valores de glicemia de jejum (mínimo de dois valores superiores a 126 mg%).

Todos os pacientes foram encaminhados ao laboratório vascular no Ecograf, núcleo de medicina diagnóstica em Belo Horizonte, para realização do teste de função endotelial e ultra-sonografia das carótidas.

Procedimentos específicos - coronariografia e ventricu­lografia esquerda - A coronariografia foi analisada de forma subjetiva por dois cardiologistas intervencionistas independentes. Em caso de discordância, foi feita a avaliação por um terceiro especialista. Denominaram-se irregularidades parietais lesões com comprometimento do diâmetro luminal menor que 50%. Os resultados foram analisados nos pacientes com lesões < 50%, lesões entre 50% e 70% e lesões > 70%.

Teste de função endotelial através da dilatação da artéria braquial mediada pelo fluxo - O teste de reatividade da artéria braquial foi realizado conforme descrição original por Celermajer e cols.2; medicamentos com ação na função endotelial foram previamente suspensos. Bloqueadores dos canais de cálcio, nitratos e inibidores da enzima conversora de angiotensina foram suspensos 24 horas antes da realização do teste. Betabloqueadores foram suspensos 48 horas antes. Todos os testes foram realizados no período da manhã e após um intervalo de jejum mínimo de 8 horas.

O paciente permaneceu em repouso, em decúbito dorsal durante 10 minutos antes do teste. O diâmetro da artéria braquial foi mensurado por meio de ultra-som vascular, utilizando-se transdutor linear com freqüência de 7,0 MHz, em equipamento ASPEN (Acuson, Mountain View, Califórnia – USA). As imagens foram obtidas em repouso, durante hiperemia reativa, novamente em repouso e após administração de nitroglicerina sublingual.

Com o transdutor posicionado 2 a 15 cm acima da fossa cubital foi feita a medida do diâmetro da artéria braquial (em mm) em condições basais. Em seguida, foi realizada a insuflação de um manguito pneumático posicionado 5 cm abaixo da fossa cubital, a 250 mmHg, durante 5 minutos, para que se produzisse isquemia distal. Sessenta segundos após a desinsuflação do manguito foi feito o registro de imagens em um estado de hiperemia reativa. Após 15 minutos de espera foi administrada nitroglicerina 400 µcg sublingual e, 4 minutos após, foi feito o último registro do diâmetro arterial. A variação do diâmetro arterial no repouso e após hiperemia reativa foi expressa como o porcentual de dilatação mediada pelo fluxo (%DMF). Foram obtidas as médias de quatro medidas em cada situação: basal, após hiperemia reativa e após nitroglicerina. Todas as imagens foram realizadas por um mesmo examinador, que se encontrava cego em relação ao quadro clínico e ao resultado da coronariografia.

Medida do espessamento médio-intimal da carótida - A medida do espessamento médio-intimal da carótida foi realizada conforme técnica descrita em estudos anteriores5,6, durante os 10 minutos iniciais de repouso, antes da realização do teste de reatividade da artéria braquial, pelo mesmo examinador. Foi utilizado o mesmo transdutor vascular descrito acima, posicionado longitudinalmente sobre a artéria carótida dos pacientes, bilateralmente. Foi considerado para análise o maior dos valores obtidos nas duas carótidas, expresso em milímetros (mm).

Análise estatística - As variáveis quantitativas foram descritas pela média e desvio-padrão. Variáveis qualitativas foram descritas por freqüência e porcentagem. A correlação entre o percentual de DMF, o espessamento médio-intimal das carótidas e a gravidade das lesões ateroscleróticas por coronariografia foi obtida pelo coeficiente de correlação de Spearman (rs), já que a distribuição das variáveis não foi normal. Os resultados foram considerados significantes quando o valor de p < 0,05.

O presente estudo representa um subestudo de um projeto mais amplo, e o cálculo amostral para tal projeto foi feito considerando-se sempre o erro alfa de 0,05 e o erro beta de 0,20. Considerando-se que o tamanho amostral foi determinado a priori, a potência deste presente estudo foi estimada em 74,8% para um erro a de 0,05, conforme software "PS Power and Sample Size Calculation" (Dupont and Plummer, 1997, disponível no site http://www.mc.vanderbilt.edu/prevmed/ps.htm).

Aspectos éticos - Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento esclarecido. O estudo foi conduzido respeitando-se as normas da resolução 196/96 sobre pesquisa envolvendo seres humanos publicada pelo Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Saúde, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas.

Objetivos - O objetivo principal deste estudo foi investigar uma correlação entre o BART e espessamento médio-intimal da carótida em uma população de pacientes com um largo espectro de doença arterial coronariana, demonstrada objetivamente por meio de cineangiocoronariografia.

Um objetivo secundário foi avaliar uma correlação da disfunção endotelial e do espessamento médio-intimal da carótida com a gravidade da doença arterial coronariana expressa pelo grau de obstrução luminal (em %) determinada por uma placa aterosclerótica.

RESULTADOS

Foram avaliados 42 pacientes. A média de idade foi de 60,7 ± 9,2 anos, sendo 66,7% do sexo masculino. A hipertensão arterial esteve presente em 35 (83,3%) dos pacientes, e a dislipidemia em 14 (33,3%) pacientes (tab. 1).

Quadro clínico - A dor torácica atípica esteve presente em 19 (45,2%) dos pacientes, tendo sido o quadro clínico mais freqüente, seguido da angina estável, presente em 12 (28,6%) deles. Seis (14,3%) dos pacientes eram assintomáticos (tab. 1).

Coronariografia - Com relação à extensão da doença coronariana, 12 (28,6%) pacientes apresentavam apenas irregularidades parietais coronarianas, 5 (11,9%) tinham lesões entre 50% e 70% e 25 (59,5%) tinham lesões > 70%. Dos pacientes com doença arterial coronariana e pelo menos uma lesão > 50%, 10 (23,8 %) eram uniarteriais, 8 (19,0%) eram biarteriais e 10 (23,8%) eram triarteriais. Dezesseis (38,1%) pacientes apresentavam algum déficit segmentar avaliado pela ventriculografia. A concordância entre os cardiologistas intervencionistas que fizeram a análise das coronariografias foi avaliada pelo método de Kappa, com índice de 81,1 ± 8,5%.

Função endotelial - A média do porcentual de vasodila­tação após administração de nitroglicerina sublingual foi de 9,6 ± 4,2. Sexo e idade não apresentaram correlação com %DMF (r = -0,280, p = 0,07 e r = -0,088, p = 0,57, respectivamente). O grau de obstrução coronariana também não se correlacionou com %DMF (r = -0,008, p = 0,96). A média de %DMF na população estudada foi de 4,7 ± 3,6. As figuras 1 e 2 mostram as imagens do BART de um dos pacientes do estudo. Houve um %DMF de 12, o que traduz uma função endotelial normal.



Espessamento médio-intimal de carótida - A média do espessamento médio-intimal foi de 1,08 ± 0,23 mm (fig. 2). A medida do espessamento médio-intimal de carótida não apresentou correlação com sexo e idade (r = -0,099, p = 0,53 e r = 0,278, p = 0,074, respectivamente). A gravidade da doença coronariana (grau de obstrução) também não se correlacionou com o espessamento médio-intimal de carótida (r = -0,063, p = 0,69).

Correlação entre %DMF e espessamento médio-intimal de carótida - As medidas do espessamento médio-intimal de carótida e do %DMF apresentaram correlação estatisticamente significativa, com coeficiente de Spearman de -0,315, valor p = 0,042 (fig. 3). Quando avaliamos essa correlação de outro modo, considerando o espessamento médio-intimal da carótida como uma variável binária e presente se > 1,0 mm, observamos que idade e sexo permaneceram sem correlação com o espessamento médio-intimal, mas, de modo concordante com a análise anterior, o %DMF foi de 6,0 ± 3,7 nos 18 pacientes sem espessamento médio-intimal e 3,7 ± 3,3 nos 24 pacientes com essa alteração, diferença estatisticamente significativa, com valor p = 0,04 (tab. 2).


DISCUSSÃO

O estudo da doença arterial coronariana em suas fases mais iniciais, subclínicas, tem sido motivo de interesse crescente. A importância da disfunção endotelial como preditor independente de eventos cardiovasculares foi bem demonstrada em estudos anteriores7-9. Do mesmo modo, a presença do EMI carotídeo está relacionada à ocorrência de infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral isquêmico, com um risco relativo entre 2 e 610.

A importância desses testes no diagnóstico precoce da doença aterosclerótica, contudo, permanece indefinida. Schroeder e cols.11 estudaram o valor do teste de reatividade da artéria braquial no rastreamento da doença arterial coronariana em 122 pacientes que foram encaminhados para realização de coronariografia e estabeleceram uma comparação com outros métodos diagnósticos, como a presença de dor torácica anginosa, o teste ergométrico em esteira e a cintilografia miocárdica. Esses autores definiram um ponto de corte através da curva ROC, encontrando o valor de %DMF < 4,5 como de maior sensibilidade e especificidade para se predizer a doença coronariana. A sensibilidade do teste foi de 71,3% e a especificidade, de 81,0%. A maior sensibilidade foi da cintilografia miocárdica (100,0%), seguida da presença de dor anginosa (95,1%) e do teste ergométrico (82,4%). Em relação à especificidade dos testes, os valores para o teste ergométrico foram de 57,1% e para a presença de angina, de 23,8%. Os dados acima demonstram um bom valor diagnóstico do teste de reatividade da artéria braquial em termos de sensibilidade e especificidade e os autores sugeriram que o teste pode ter, no futuro, aplicação no rastreamento na doença arterial coronariana, mas deve-se considerar a possibilidade de viés causado pela seleção dos pacientes neste estudo.

Embora o BART venha sendo empregado em vários estudos, não há um consenso quanto a um valor de referência para o porcentual de DMF que definiria a disfunção endotelial. Na maior parte dos estudos, o teste é descrito em grupos diferentes de pacientes, com valores que são comparados entre si, sem o objetivo de se definir a presença ou não da disfunção endotelial a partir de determinado porcentual de DMF. Em 2001 foi publicada uma diretriz para a realização do BART com orientações importantes a respeito da metodologia adequada, mas sem trazer um valor de porcentagem de DMF que definisse a disfunção endotelial12. Em nossa amostra de pacientes com largo espectro de doença arterial coronariana, a média do porcentual de DMF de 4,7 ± 3,6 foi reduzida, fato esperado considerando-se o papel do endotélio como evento inicial da aterogênese. Esse valor está um pouco abaixo daqueles encontrados por outros autores estudando a função endotelial em pacientes com doença demonstrada à coronariografia. Chan e cols.13 encontraram média de porcentual de DMF de 5,9 ± 3,8. É interessante salientar que o valor encontrado em nosso estudo de 4,7 ± 3,6 é muito inferior aos valores médios encontrados em indivíduos hígidos e sem fatores de risco para doença aterosclerótica, entre 8,2 ± 3,1 e 21,1 ± 2,02,14,15. Em estudo conduzido por nosso grupo e publicado em 2003, encontramos um porcentual de DMF de 8,9 ± 5,7 estudando 26 indivíduos com coronárias normais16.

Não houve correlação entre o %DMF e a gravidade da doença coronariana quanto ao grau de obstrução das lesões ateroscleróticas, como também demonstrado por Enderle e cols.17 mas em contraste com Neunteufl e cols.15. Diferenças demográficas, como porcentual de pacientes sintomáticos, diabéticos, hipertensos, dislipidêmicos ou tabagistas, podem ter determinado esses resultados discrepantes. Os critérios empregados para definir a gravidade da doença coronariana diferem nos estudos. Neunteufl e cols. estratificaram os pacientes em maior número de subgrupos de acordo com o grau de obstrução das lesões ateroscleróticas: < 30, 30-50, 50-70, 70-90, 90-99 e 100%, enquanto a estratificação que empregamos constituiu-se de apenas três subgrupos: < 50%, entre 50% e 70% e > 70%.

Ainda de maior importância, é preciso considerar que em todos os estudos a gravidade da doença arterial coronariana foi estabelecida levando-se em consideração apenas o grau de obstrução luminal determinado de modo subjetivo. Embora a concordância interobservadores tenha sido satisfatória em nosso estudo, com índice de Kappa superior a 80%, a angiografia coronária quantitativa computadorizada permitiria uma avaliação mais apropriada e uma comparação entre os estudos, eliminando a subjetividade do cardiologista intervencionista e a variação interobservador. Outras características angiográficas, como o número de lesões significativas por vaso, que traduziriam uma doença mais difusa, poderiam ser empregadas, mas não há consenso ou normatização a esse respeito. A coronariografia foi utilizada em nosso estudo e pelos demais autores como o padrão de referência na definição da doença arterial coronariana, conceito que vem sendo discutido após a introdução do ultra-som intracoronariano.

A média do espessamento médio-intimal nessa amostra estudada foi de 1,08 ± 0,23 mm. Esse valor elevado é esperado e está em concordância com o comprometimento já estabelecido no leito coronariano. Em contraste com Enderle e cols.17, não houve correlação entre o espessamento médio-intimal arterial e o grau de obstrução coronariana, mas as mesmas observações quanto à definição de gravidade da doença discutidas acima devem ser consideradas.

A correlação entre o porcentual de DMF e espessamento médio-intimal da carótida foi avaliada em poucos estudos, sempre com amostra reduzida de pacientes. O coeficiente de correlação negativo entre %DMF e espessamento médio-intimal de carótida demonstra que, nesse grupo de pacientes, valores menores de porcentual de DMF se correlacionaram com um maior espessamento médio-intimal (r = -0,315, p = 0,042). Esses dados estão de acordo com o que demonstraram Enderle e cols.17 em um grupo de pacientes com alta suspeição de doença coronariana (r = -0,317, p = 0,0004). Campuzano e cols.18, estudando um grupo de 39 pacientes com fatores de risco para aterosclerose e 13 pacientes sem esses fatores, encontraram diferença no %DMF entre os grupos (2,77 ± 2,57 x 11,98 ± 4,61%, valor p < 0,01), bem como diferença nos valores de EMI (0,85 ± 0,24 x 0,57 ± 0,14 mm, valor p = 0,001), também com uma correlação inversa entre estas variáveis (r = -0,357; p < 0,01). Juonala e cols.19, estudando adultos entre 24 e 39 anos, sem evidência de DAC, da mesma forma, encontraram correlação negativa e significativa entre %DMF e EMI em análise multivariada (r = -0,34, p = 0,001); além disso, o número de fatores de risco se correlacionou com o EMI em pacientes com menor %DMF. Nos demais estudos a avaliação da correlação dos dois métodos foi feita em pacientes hipertensos e não coronariopatas. Ghiadoni e cols.5 avaliaram a função endotelial e o espessamento médio-intimal da carótida em 44 pacientes hipertensos e 30 indivíduos normotensos e encontraram correlação inversa entre os dois testes apenas no grupo de hipertensos (r = -0,68, p = 0,0003). Resultados diferentes foram relatados por Barenbrock e cols.6, que não encontraram correlação significativa entre a função endotelial e o espessamento médio-intimal arterial estudando pacientes hipertensos nunca tratados, sem evidência de doença coronariana (r = -0,17, p = 0,32). A tabela 3 traz uma revisão dos resultados dos principais estudos que avaliaram essas questões discutidas. Estudos subseqüentes são necessários para se determinar se existe relação entre essas alterações vasculares (disfunção endotelial e EMI) e a gravidade da doença arterial coronariana.

CONCLUSÃO

Neste estudo, a presença de uma correlação entre o porcentual de dilatação mediada pelo fluxo e o espessamento médio-intimal da carótida sugere a concomitância de alterações funcionais e anatômicas na doença arterial coronariana. Não encontramos uma correlação entre essas alterações vasculares (disfunção endotelial e espessamento médio-intimal) e a gravidade das lesões ateroscleróticas detectadas pela angiografia coronariana. A importância clínica desses métodos permanece indeterminada. Uma melhor padronização dos testes, estudos com maior amostra e diferentes critérios de seleção podem, no futuro, situar essa avaliação do dano vascular inicial no contexto da prevenção, diagnóstico e estratificação de risco da doença aterosclerótica.

Recebido em 10/04/05

Aceito em 04/05/05

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  • Correspondência:

    Graziela Chequer
    Rua Montes Claros, 475/702
    30310-370 – Belo Horizonte, MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006

    Histórico

    • Aceito
      04 Maio 2005
    • Recebido
      10 Abr 2005
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