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Escore para avaliação do estado nutricional: seu valor na estratificação prognóstica de portadores de cardiomiopatia dilatada e insuficiência cardíaca avançada

Resumos

OBJETIVO: Desenvolver método de avaliação do estado nutricional do paciente através de escore que expresse o estado nutricional de maneira universal e verificar se esse escore seria eficaz na estratificação prognóstica de pacientes com insuficiência cardíaca (IC) avançada. MÉTODOS: Para compor o escore foram selecionados métodos de avaliação que procurassem quantificar forma de medida do estado nutricional: a porcentagem ideal do peso, a espessura da prega tricipital, os percentis da circunferência da massa muscular do braço, os níveis séricos de albumina, a contagem global de linfócitos. Para validá-lo, aplicou-se o escore num grupo de 95 pacientes com idade inferior a 65 anos, sem evidências de doenças consumptivas e analisou-se se esse escore manteria correlação com os dados clínicos da IC e permitiria estratificar o prognóstico. RESULTADOS: A situação nutricional esteve alterada nos pacientes e escore elevado sugerindo desnutrição moderada ou intensa foi observado em 31/95 (32,6%) dos casos. Não houve correlação entre os valores do escore nutricional, duração dos sintomas e grau de disfunção ventricular. Os pacientes com escore nutricional elevado apresentaram tendência de maior mortalidade (p=0,0606). CONCLUSÕES: Os dados sugerem que a desnutrição atinge cerca de 1/3 dos pacientes com IC avançada. Um escore que englobou cinco parâmetros de avaliação nutricional teve boa correlação com a avaliação clínica e permitiu avaliar globalmente a desnutrição de portadores de IC. Escore superior a 8 identificou pacientes com maior probabilidade de morrer, confirmando que pacientes mais desnutridos têm pior evolução.

Desnutrição; caquexia cardíaca; cardiomiopatia dilatada


OBJECTIVE: Develop a method for the evaluation of patient’s nutritional status through a score that expresses universal nutritional status, as well as investigate if that score would be efficient for the prognostic stratification of advanced heart failure (HF) pts. METHODS: The score was reached by the selection of evaluation methods that would quantify nutritional status: ideal body weight percentage, thickness of tricipital skinfold, percentiles for arm muscular mass circumference, albumin serum level, lymphocyte total count. In order to be validated, the score was applied to a group of 95 pts. Pts were under 65 years old no evidence of consumptive diseases. The score was analyzed to confirm whether it would keep correlation with HF clinical data and whether it would stratify its prognostic. RESULTS: Nutritional status suggesting moderate or severe malnutrition could be observed in 31/95 (32.6%). No correlation was found between nutritional score values and the duration of symptoms, or the level of ventricular dysfunction. Pts with high nutritional score showed a trend towards higher mortality rate (p=0.0606). CONCLUSION: Those data suggest malnutrition is reported by 1/3 of pts with advanced HF. A score comprising 5 parameters for nutritional status showed good correlation with the clinical, global evaluation of pts with HF. A score over 8 identified pts with higher probability of death as outcome, confirming that pts under higher malnutrition exhibit worse evolution.

Malnutrition; cardiac cachexia; dilated cardiomyopathy


ARTIGO ORIGINAL

Escore para avaliação do estado nutricional. Seu valor na estratificação prognóstica de portadores de cardiomiopatia dilatada e insuficiência cardíaca avançada

Luiz Guilherme Veloso; Antonio Carlos Pereira-Barretto; Mucio Tavares de Oliveira Junior; Robson Tadeu Munhoz; Paulo César Morgado; José Antonio Franchini Ramires

Hospital Auxiliar de Cotoxó, Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Antonio Carlos Pereira Barreto Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 05403-000 – São Paulo, SP E-mail: pereira.barretto@incor.usp.br

RESUMO

OBJETIVO: Desenvolver método de avaliação do estado nutricional do paciente através de escore que expresse o estado nutricional de maneira universal e verificar se esse escore seria eficaz na estratificação prognóstica de pacientes com insuficiência cardíaca (IC) avançada.

MÉTODOS: Para compor o escore foram selecionados métodos de avaliação que procurassem quantificar forma de medida do estado nutricional: a porcentagem ideal do peso, a espessura da prega tricipital, os percentis da circunferência da massa muscular do braço, os níveis séricos de albumina, a contagem global de linfócitos. Para validá-lo, aplicou-se o escore num grupo de 95 pacientes com idade inferior a 65 anos, sem evidências de doenças consumptivas e analisou-se se esse escore manteria correlação com os dados clínicos da IC e permitiria estratificar o prognóstico.

RESULTADOS: A situação nutricional esteve alterada nos pacientes e escore elevado sugerindo desnutrição moderada ou intensa foi observado em 31/95 (32,6%) dos casos. Não houve correlação entre os valores do escore nutricional, duração dos sintomas e grau de disfunção ventricular. Os pacientes com escore nutricional elevado apresentaram tendência de maior mortalidade (p=0,0606).

CONCLUSÕES: Os dados sugerem que a desnutrição atinge cerca de 1/3 dos pacientes com IC avançada. Um escore que englobou cinco parâmetros de avaliação nutricional teve boa correlação com a avaliação clínica e permitiu avaliar globalmente a desnutrição de portadores de IC. Escore superior a 8 identificou pacientes com maior probabilidade de morrer, confirmando que pacientes mais desnutridos têm pior evolução.

Palavras-chave: Desnutrição, caquexia cardíaca, cardiomiopatia dilatada.

Desde os tempos de Hipócrates já se descrevia a associação entre a desnutrição e a insuficiência cardíaca congestiva (ICC), mormente em seus estágios mais avançados. Dentro do elenco de manifestações clássicas da doença cardíaca, encontramos variados graus de depleção protéico-calórica, até os quadros extremos genericamente denominados de caquexia cardíaca1,2.

Os dados clínicos e experimentais que analisaram a relação entre a ICC e a desnutrição indicam uma relação causa-efeito3,4. Há dúvidas sobre quais os mecanismos que levam à desnutrição e qual a importância de cada mecanismo na manutenção e agravamento do quadro5-8.

A situação nutricional pode ser aferida pela interpretação das alterações dos parâmetros antropométricos, bioquímicos e imunológicos obtidos nos pacientes com ICC em relação aos padrões considerados normais para a população.

Vale ressaltar que a desnutrição não é sistematicamente avaliada, ou quando estudada o é de modo subjetivo e não sistematizado, e que os pontos-chave de determinação do grau de desnutrição, assim como os melhores parâmetros de avaliação ainda não foram adequadamente definidos e padronizados, e na maioria dos estudos que se propuseram a avaliar a situação nutricional foram empregados um ou dois parâmetros, de forma que se pode considerar que ela foi quantificada de maneira parcial9,10.

Ao lado dessas dúvidas quanto à melhor forma de avaliá-la, não se sabe qual é a real incidência da desnutrição10-20.

Neste estudo procurou-se desenvolver um escore de avaliação do estado nutricional que englobasse os mais usuais métodos de avaliação e validá-lo, comparando seus resultados com o de uma avaliação subjetiva da situação nutricional de um grupo de pacientes com cardiomiopatia dilatada e insuficiência cardíaca avançada. Procurou-se também verificar se esse escore mantinha relação com o tempo de duração da insuficiência cardíaca e com o grau de comprometimento cardíaco e se permitiria estratificar o prognóstico desses pacientes.

MÉTODOS

Avaliou-se o estado nutricional de 95 pacientes portadores de cardiomiopatia dilatada com insuficiência cardíaca congestiva em classe funcional III/IV, internados no Hospital de Cotoxó para compensação.

Esses pacientes foram selecionados dentre os 1.176 internados durante os doze meses de seleção da amostra para o estudo, dos quais 412 eram portadores de ICC.

Foram critérios de exclusão do estudo as situações que poderiam promover alterações da situação nutricional dos pacientes ou modificar a história natural da ICC: idade inferior a quinze ou superior a 65 anos; disfunções valvares passíveis de correção cirúrgica; insuficiência coronariana; arritmias cardíacas sintomáticas; pressão arterial diastólica na internação superior a 105 mmHg, diabete melito; níveis de creatinina superior a 2,0 mg/dl; pneumopatia crônica; doenças crônicas degenerativas; neoplasias; diagnóstico de Sida; antecedentes de ingesta alcoólica superior a 100 ml de bebidas destiladas ou 600 ml de cerveja diários e consumo de drogas ilícitas.

Com base nesses critérios foram excluídos 312 pacientes. Outros cinco pacientes foram posteriormente excluídos por não terem retornado ao ambulatório e não ter sido possível contato após a alta, perdendo-se o seu seguimento.

Nos 95 pacientes selecionados, valorizaram-se os dados da história clínica e do exame físico para avaliação da situação funcional e do tempo de duração da doença. Todos foram submetidos a avaliação cardiológica mediante estudo ecocardiográfico, do qual se valorizou a medida do diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo (DDVE) e a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FE) avaliada pelo método do cubo.

Avaliação do estado nutricional - Todos os pacientes foram medidos e pesados.

Para avaliação do estado nutricional consideraram-se parâmetros antropométricos, laboratoriais e determinação da competência imune14. Os parâmetros adotados foram escolhidos em razão de sua melhor padronização, maior reprodutibilidade, facilidade de execução e custo. Selecionaram-se os seguintes métodos de avaliação nutricional: a porcentagem ideal do peso, a espessura da prega tricipital, os percentis da circunferência da massa muscular do braço, os níveis séricos de albumina, a contagem global dos linfócitos.

A técnica para obtenção de cada um desses parâmetros e seus resultados foi exposta em publicações do serviço9,10,21-23.

Além desses indicadores objetivos, adotados para análise estatística, a impressão clínica do autor principal classificou subjetivamente os pacientes em "desnutridos", "normais" ou "obesos", com base em seu aspecto físico, levando em consideração o turgor e elasticidade da pele, a espessura e cor dos cabelos e a facies. Essa classificação subjetiva foi utilizada exclusivamente para testar a validade do escore nutricional, descrito adiante.

Escore nutricional - Procurou-se agrupar os diferentes indicadores do estado nutricional de modo a permitir sua análise simultaneamente, com um escore que levasse em consideração avaliação antropométrica, bioquímica e imunológica dos pacientes.

De modo empírico, foram selecionados cinco parâmetros para compor o escore, atribuindo-se a cada um deles um número de pontos conforme o grau de comprometimento observado, obedecendo às seguintes faixas de corte:

a) Porcentagem do peso ideal16 - normal: acima de 90% (zero ponto), comprometimento leve: entre 80% e 90% (1 ponto), comprometimento moderado: entre 70% e 79% (2 pontos) e comprometimento importante: abaixo de 70% (3 pontos);

b) Percentil da prega cutânea tricipital14- normal: acima do percentil 50 (zero ponto), comprometimento leve: percentis 25 a 50 (1 ponto), comprometimento moderado: percentis 10 a 24 (2 pontos) e comprometimento importante: abaixo do percentil 10 (3 pontos);

c) Percentil da circunferência muscular do braço14 - normal: acima do percentil 50 (zero ponto), comprometimento leve: percentis 25 a 50 (1 ponto), comprometimento moderado: percentis 10 a 24 (2 pontos) e comprometimento importante: abaixo do percentil 10 (3 pontos);

d) Níveis séricos de albumina14 - normal: acima de 3,5 g% (zero ponto), comprometimento leve: 2,8 a 3,5 g% (1 ponto), comprometimento moderado: 2,1 a 2,7 g% (2 pontos) e comprometimento importante: abaixo de 2,1 g% (3 pontos);

e) Número de linfócitos no sangue periférico14 - normal: acima de 2.000 células/ml (zero ponto), comprometimento leve: de 1.200 a 2.000 células/ml (1 ponto), comprometimento moderado: de 800 a 1.199 células/ml (2 pontos) e comprometimento importante: abaixo de 800 células/ml (3 pontos).

Para efeito de análise estatística da amostra foram definidos como normais ou portadores de comprometimento nutricional leve os pacientes com escore inferior a 8 pontos, e portadores de comprometimento nutricional moderado ou importante os restantes, com somatório de 8 pontos ou mais (tab. 1).

Características da população estudada - Na tabela 2 apresentamos as principais características da população estudada, documentando que se tratava de um grupo de pacientes com acentuado comprometimento miocárdico e que evoluiu com grande morbidade e mortalidade.

Análise estatística - Procurou-se verificar se havia relação entre o tempo de evolução da ICC e o grau de disfunção ventricular esquerda com o escore através do coeficiente de correlação linear de Pearson entre as variáveis analisadas.

Os parâmetros de avaliação da função ventricular foram comparados através do teste t-Student e Kruskal-Wallis, entre os pacientes com escore nutricional compatível com comprometimento moderado ou importante (8 ou mais pontos) e os restantes.

Para análise de sobrevida, foram utilizadas duas metodologias:

- Estimativa de Kaplan-Meier: estimativa da sobrevida observada na amostra de interesse, que não depende de nenhum parâmetro. Analisada conjuntamente com o teste não-paramétrico de Log-Rank.

- Modelo semi-paramétrico de riscos proporcionais de Cox: apropriado para o estudo de variáveis contínuas, mediante o pressuposto de que as curvas de sobrevida não se cruzem, ou seja, que o risco permaneça proporcional durante todo o intervalo de tempo estudado. Além de possibilitar indicar quais variáveis são importantes na predição de sobrevida dos pacientes, permite obter a razão de risco entre dois níveis de uma dada variável.

Adotou-se neste estudo o nível de significância de 5%.

RESULTADOS

A impressão subjetiva do autor principal classificou como "desnutridos" 23/95 (24,2%) pacientes, "normais" 62/95 (65,3%) e "obesos" 10/95 (10,5%).

Através do escore, 32,63% dos pacientes apresentavam desnutrição moderada ou intensa, e 67,36% dos pacientes foram considerados eutróficos ou com desnutrição leve.

Correlação entre os parâmetros nutricionais e o tempo de evolução - A análise da correlação entre o escore nutricional e o tempo de evolução da doença, não se mostrou significativo (r = 0,0761, p = 0,4517)

Nos pacientes com escore inferior a 8, considerados eutróficos ou portadores de comprometimento nutricional leve, a mediana de tempo de evolução foi de 24 meses, igual à dos com comprometimento moderado a importante.

Correlação entre o escore nutricional e o grau de disfunção miocárdica - A análise de correlação entre o escore e o grau de disfunção miocárdica não mostrou haver correlação entre o grau de dilatação ventricular e o escore nutricional (r = -0,1353, p = 0,1841) bem como entre a fração de ejeção e o escore (r = - 0,1238, p = 0,2195).

Os portadores de comprometimento moderado e acentuado do estado nutricional (escore superior a 8) tiveram valores de DDVE e FEVE similares aos pacientes menos desnutridos.

O escore nutricional e a sobrevida - O escore nutricional foi analisado como variável contínua e como variável discreta. Assim, pelo modelo de riscos proporcionais de Cox, o nível descritivo do escore como variável contínua foi de 0,3094, não significativo na predição da sobrevida dos pacientes. Quando considerados os pacientes com menor comprometimento nutricional (escore inferior a 8), observou-se uma tendência a maior sobrevida quando comparados aos demais casos; dos 56 casos com escore indicativo de menor comprometimento nutricional, metade estava viva na 26ª semana, enquanto metade do grupo com escore de 8 pontos ou mais havia falecido já na 16ª semana após o início do estudo. No entanto, apesar da aparente diferença nas curvas de Kaplan-Meier observada quando comparados os grupos com maior e menor comprometimento dos parâmetros nutricionais agrupados sob a forma de escore, o nível descritivo foi de 0,0606 e 0,0676, respectivamente, para os testes de Log-Rank e modelo de Cox, ambos indicativos apenas de evidências marginais do valor do escore nutricional na predição da sobrevida dos pacientes (fig. 1).


Análise não-paramétrica por Kaplan-Meier e pelo teste de Log-Rank e análise semiparamétrica pelo modelo de riscos proporcionais de Cox indicaram que tanto a fração de ejeção como o diâmetro diastólico do VE não se mostraram significantes na predição de tempo de sobrevida dos pacientes estudados.

DISCUSSÃO

A associação entre quadros de caquexia e insuficiência cardíaca é fenômeno clássico e observado com certa freqüência na prática clínica. Sua prevalência é variável, sendo influenciada pelas características da população estudada, descrita em porcentuais que variaram de 13,7% a 61,5%, parecendo ter relação com a causa da insuficiência cardíaca, e certa relação com a duração dos sintomas e a intensidade da falência cardíaca10-13,19-24.

Essas diferenças na incidência decorrem provavelmente das diversas formas existentes de avaliação da situação nutricional e da falta de uma definição única do que seja desnutrição e caquexia.

Procurou-se nesta pesquisa criar um escore de avaliação nutricional que empregasse diferentes formas de medida da desnutrição, de forma a se obter uma medida que fosse mais reprodutível e que expressasse globalmente a situação nutricional dos pacientes. Para tal, utilizou-se uma série de variáveis já empregadas na avaliação nutricional. Procurou-se criar uma forma de avaliação que pudesse ser utilizada pela maioria dos clínicos, uma vez que a variáveis selecionadas não empregam técnicas sofisticadas ou dispendiosas.

Com base nessas premissas, empregamos no nosso estudo para avaliar o estado nutricional a porcentagem do peso ideal, a medida da prega cutânea tricipital, a circunferência muscular do braço e exames de laboratório através da dosagem da albuminemia e contagem de linfócitos.

Todas essas variáveis foram utilizadas em estudos que se propuseram a avaliar o estado nutricional em diferentes doenças10-24. Nenhuma dessas medidas isoladamente foi considerada como ideal para a avaliação do estado nutritivo, sendo importante a utilização de várias delas para se ter uma real avaliação do estado nutricional de um paciente.

O escore foi proposto para que fosse possível avaliar de maneira global a desnutrição, obtendo-se um indicador que analisasse de maneira conjunta parâmetros que refletissem a massa corporal (porcentagem do peso ideal), as reservas calóricas do subcutâneo (percentil da prega cutânea tricipital), as proteínas somáticas da massa muscular esquelética (percentil da circunferência muscular do braço), as proteínas viscerais (albuminemia) e o estado imunitário (contagem de linfócitos). Esse escore foi concebido de forma empírica, atribuindo-se uma pontuação ao grau de comprometimento observado em cada um dos cinco indicadores nutricionais empregados, de modo a se obter uma variável matemática contínua.

Procurou-se também com essa tática minimizar influ­ências do comportamento individual dos indicadores nutricionais quando da análise estatística, visto que é comum grande heterogeneidade no grau de comprometimento observado em diferentes parâmetros no mesmo paciente; não é incomum, por exemplo, a coexistência de grave depleção da massa muscular com espessura normal do tecido subcutâneo ou níveis normais de albumina sérica. Também de forma empírica, procurou-se emprestar ao escore uma característica qualitativa, adotando-se o valor médio de 8 pontos (em 15 possíveis) para separar um subgrupo definido como portador de repercussão nutricional moderada ou grave dos pacientes restantes, definidos por esse critério como eutróficos ou desnutridos leves.

Embora poucos trabalhos na literatura tenham pro­posto a composição de variáveis nutricionais de maneira conjunta, na forma de escore21, o método criado para facilitar a análise dos pacientes deste trabalho parece ter validade, ao menos para aplicação na amostra de portadores com ICC em fase avançada nos quais foi utilizado.

Utilizando essa forma de análise, a situação nutricional esteve freqüentemente alterada nos portadores de ICC avançada, encontrando-se um escore elevado (>8) sugerindo desnutrição moderada ou intensa em 31 (32,6%) dos 95 casos.

Na análise para verificar a validade do escore para avaliação da situação nutricional dos pacientes observamos uma elevada correlação entre o escore e as diferentes variáveis de avaliação do estado nutricional. Observamos também que os subgrupos classificados subjetivamente pelo primeiro autor em "desnutridos", "obesos" e "normais" apresentaram pontuações significativamente diferentes em sua avaliação objetiva por esse método. Nenhum paciente qualificado como "obeso" teve pontuação dentro do que foi convencionado para definir portadores de desnutrição moderada ou importante; apenas três dentre 23 casos com aspecto "desnutrido" tiveram pontuação limítrofe, porém baixa, de modo a ser incluídos na análise estatística da variável "escore" como eutróficos ou desnutridos leves.

Além disso, em nossa impressão, o fato de a pontuação do escore ter apresentado distribuição do tipo normal, quando analisada a amostra como um todo, reforça a impressão de que a metodologia foi válida para as finalidades deste trabalho. No entanto, deve-se ressalvar que a aplicação desse método pode não ter validade em grupos de portadores de outras afecções, ou para monitoração de resposta a terapêutica nutricional, necessitando estudos posteriores previamente a sua eventual utilização com essas finalidades.

Embora a amostra tenha apresentado ampla dispersão de valores em relação ao tempo de evolução de sintomas da ICC, não se observou correlação entre essa variável e o escore nutricional.

Também não encontramos correlação entre o estado nutricional avaliado pelo escore a as medidas do compro­metimento ventricular avaliadas ao ecocardiograma.

Esses resultados sugerem que a repercussão nutricional na cardiomiopatia dilatada, embora resulte da disfunção contrátil do ventrículo esquerdo como fator etiológico comum, tenha como determinantes principais em cada indivíduo fatores outros, que transcendem o simples comprometimento da bomba cardíaca. O comprometimento nutricional poderia talvez ser mais bem compreendido no âmbito da complexa adaptação periférica e da resposta neuro-hormonal à falência miocárdica. Nossos resultados não diferem dos apresentados na literatura, que também não demonstraram haver uma forte correlação entre o grau de desnutrição e o grau de disfunção ventricular24-27.

Na análise de sobrevida, não encontramos uma relação entre o grau do comprometimento cardíaco e a sobrevida, embora em muitos estudos se observe essa relação28-37. Tem sido observado por nosso grupo que na ICC avançada o comprometimento ventricular avaliado pelo diâmetro do ventrículo esquerdo e pela fração de ejeção deixa de ser um preditor em relação ao tempo de sobrevida36,37. No entanto, a grande homogeneidade do grupo em relação a esses parâmetros e à gravidade da manifestação clínica pode também estar por trás dessa observação; é possível que, nessa amostra uniformemente situada no extremo do espectro clínico da ICC, os indicadores da função ventricular esquerda tenham reduzido valor prognóstico, em detrimento de outras variáveis clínicas e laboratoriais.

Se o comprometimento ventricular não foi um bom preditor da evolução, nosso estudo mostrou que a presença de desnutrição identificou um grupo de pacientes com maior potencial para evoluir mal.

O escore nutricional, quando analisado como variável contínua, não foi preditivo para a sobrevida dos pacientes. Tratado como variável discreta, observou-se que a curva de estimativa de sobrevida de Kaplan-Meier (fig. 1) dos 31 (32,6%) pacientes com comprometimento nutricional moderado ou importante foi distinta da dos casos restantes; óbito de 50% desse grupo ocorreu já por volta da 16ª semana, em contraste com os 64 normais ou com comprometimento leve, com mortalidade de 50% apenas na 26ª semana. O nível descritivo dos testes de Log-Rank e Cox foi, respectivamente, de 0,0606 e 0,0676, não significativo do ponto de vista estatístico, porém aceitável enquanto evidência marginal do valor do escore nutricional na predição da sobrevida dos pacientes.

Esses resultados não diferem substancialmente dos apresentados por Anker e cols., que observaram nos pacientes que perderam mais de 7,5% do peso nos últimos seis meses mortalidade superior a 65% em quinze meses de evolução19,20. Essa população diferia da nossa por ser constituída de pacientes do ambulatório, enquanto a nossa foi selecionada entre os pacientes internados para compensação, portanto mais graves. Mas ambos os estudos mostraram que os pacientes desnutridos evoluíram pior do que os em melhor situação nutricional.

Embora o escore avalie a desnutrição de uma maneira mais global, na estratificação da evolução (mortalidade) ele não foi melhor do que alguns dos índices tradicionalmente empregados, como uma redução de 80% da percentagem do peso ideal ou a redução de 7,5% do peso em seis meses de evolução, que foram capazes de identificar quais pacientes teriam maior mortalidade nas populações estudadas20-24.

Desse modo, parece lícito concluir que, quando analisados conjuntamente em forma de escore, os indicadores antropométricos, bioquímicos e imunológicos estudados evidenciaram tendência a maior mortalidade dos pacientes com ICC em fase avançada quando portadores de repercussão nutricional mais acentuada.

Em conclusão, as alterações nutricionais de moderada a importante são achados freqüentes em cardiomiopatas com ICC em fase avançada. As alterações nutricionais estudadas não mantiveram relação com o tempo de evolução dos sintomas de ICC ou com o grau de comprometimento ventricular esquerdo. Houve tendência a maior mortalidade em cardiomiopatas com comprometimento moderado ou grave do estado nutricional, quando evidenciado por escore que avaliou conjuntamente a desnutrição.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Recebido em 02/04/03

Aceito em 08/06/05

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  • Correspondência:

    Antonio Carlos Pereira Barreto
    Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44
    05403-000 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006

    Histórico

    • Aceito
      08 Jun 2005
    • Recebido
      02 Abr 2003
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