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Influência dos hormônios tireoidianos sobre o sistema cardiovascular, sistema muscular e a tolerância ao esforço: uma breve revisão

ATUALIZAÇÃO

Influência dos hormônios tireoidianos sobre o sistema cardiovascular, sistema muscular e a tolerância ao esforço: uma breve revisão

Alexandre Gonçalves; Elmiro Santos Resende; Maria Luiza Mendonça Pereira Fernandes; Alberto Martins da Costa

Universidade Federal de Uberlândia - Uberlândia, MG

Correspondência Correspondência: Alexandre Gonçalves Rua Delmira C. R. da Cunha, 1161/301 38408-208 – Uberlândia, MG E-mail: profalexandre09@gmail.com

Palavras-chave: Tireóide, hipertireoidismo, hipotireoidismo, tolerância ao esforço.

Os distúrbios da tireóide (hipo e hipertireoidismo) são motivo de estudos das mais diversas áreas das ciências da saúde em razão de sua repercussão sobre os diversos setores do organismo humano.

Dentre as muitas conseqüências desses distúrbios, a diminuição da tolerância individual ao esforço físico, por acometimentos diretos dos sistemas cardiovascular e muscular, é raramente relatada na literatura1-3.

O presente artigo aborda, mediante revisão da literatura, a relação de causa e efeito das ações dos hormônios tireoidianos sobre esses dois sistemas orgânicos e suas implicações na capacidade física de realizar esforços.

HORMÔNIOS TIREOIDIANOS E SISTEMA CARDIOVASCULAR

Conforme descrito na literatura clássica de fisiologia humana4, os hormônios tireoidianos, tiroxina (T4) e triiodotironina (T3), atuam produzindo elevação geral do metabolismo basal do organismo humano. Isso, por sua vez, tem como conseqüência um maior consumo de oxigênio pelos tecidos, o que é garantido por vasodilatação e aumento concomitante do débito cardíaco, facilitado pelo aumento do cronotropismo e do inotropismo.

Estudos realizados com pacientes portadores de hipertireoidismo5-10 demonstraram que esses pacientes apresentam aumento da força de contração e do débito cardíaco, com diminuição da resistência periférica.

A ATPase cardíaca é constituída por duas cadeias pesadas de proteínas, alfa(a) e beta(b), e está envolvida na produção de energia para as células dos diversos compartimentos orgânicos. A cadeia a tem alta capacidade de desfosforilar o ATP, enquanto, na cadeia b, essa ação é baixa. Assim, três diferentes moléculas de ATPase cardíaca podem existir: aa, bb e ab. Na presença do hormônio da tireóide, ocorre aumento na expressão do gene da cadeia a, o que leva a maior capacidade de contratilidade do miocárdio. Contudo, essa maior força de contração somente é garantida em elevações pequenas do hormônio tireoidiano, pois o excesso desse provoca aumento da catálise de proteínas contráteis. Quando se trata de hipotireoidismo, ocorre uma conversão da molécula ab para bb, ocasionando diminuição de contratilidade do miocárdio11-13. Observa-se, portanto, deficiência na contratilidade em ambos os casos, e no hipertireoidismo isso se deve ao catabolismo excessivo das proteínas contráteis. No hipotireoidismo o déficit de função ocorre por alterações na conformação estrutural da enzima ATPase.

Ambas as situações determinam alterações que podem induzir inadequações no condicionamento físico em razão da redução da função de bomba.

Quanto à influência dos hormônios tireoidianos na hemodinâmica, observa-se que, quando ocorre a reposição hormonal, há aumento da pressão sistólica e diminuição da pressão diastólica com aumento na pressão de pulso. No entanto, a pressão arterial média não se altera4. A elevação da pressão sistólica é explicada pelo incremento do fluxo sangüíneo provocado pelo aumento do débito cardíaco. A diminuição da pressão diastólica deve-se à vasodilatação periférica provocada pelo maior relaxamento da musculatura lisa das artérias. Em casos de hipotireoidismo ocorre o inverso.

Alguns estudos14-16 demonstram que os hormônios da tireóide provocam também aumento do retorno venoso, o que contribui para o aumento do débito cardíaco e da resistência arterial sistêmica.

Essa compreensão da redução da resistência arterial sistêmica, um dos componentes da pós-carga, que ocorre no hipertireoidismo ou na reposição hormonal, surgiu com a descoberta do papel vasodilatador que o T3 exerce sobre a musculatura lisa do sistema vascular17.

Assim, podemos notar que a influência dos hormônios tireoidianos sobre as variáveis hemodinâmicas, como freqüência cardíaca, débito cardíaco, componentes da pré-carga e da pós-carga, pressão sistólica, pressão diastólica e pressão de pulso, se dá como conseqüência de maior ou menor demanda metabólica periférica em decorrência do estado de hiper ou hipotireoidismo, respectivamente.

Analisando a presença de baixa tolerância ao esforço em pacientes com hipotireoidismo verifica-se que ela se justifica em decorrência, dentre outros fatores, da redução da força contrátil do miocárdio por alterações estruturais da enzima ATPase descritas anteriormente. Essa redução da função de bomba do coração produz diminuição do débito cardíaco, que é fator relevante na determinação do grau de tolerância ao esforço. Por sua vez, o paciente com hipertireoidismo, apesar de conviver com débito cardíaco elevado, também apresenta baixa tolerância ao esforço em razão da manutenção dos níveis de hormônios tireoidianos elevados por tempo prolongado, o que mantém a freqüência cardíaca permanentemente alta e, em conseqüência, gera prejuízo na capacidade de trabalho do coração. Esse efeito é acentuado pela alta catálise de proteínas contráteis, como já comentado18.

HORMÔNIOS TIREOIDIANOS E SISTEMA MUSCULAR

Alguns estudos19-21 relacionaram o hipotireoidismo à disfunção muscular. O problema parece residir na diminuição da atividade enzimática relacionada ao metabolismo aeróbico e anaeróbico da glicose. Também ocorre redução na atividade mitocondrial com disfunção em todo o metabolismo energético muscular.

Assim, além dos prejuízos decorrentes da redução do fluxo sangüíneo tecidual e da oferta de oxigênio para os músculos, temos também prejuízos metabólicos os quais acentuam a intolerância desses pacientes ao esforço físico.

Essa inferência é respaldada pelo fato de o músculo esquelético ser um dos principais alvos de ação dos hormônios tireoidianos22.

Além do mais, estudos realizados por Ramsay23 demonstram que essa ação dos hormônios tireoidianos sobre a musculatura esquelética afeta, principalmente, as fibras musculares do tipo I, que promovem contração lenta e são predominantes na musculatura postural muito recrutada durante esforços prolongados.

Alterações metabólicas diferentes, mas com conseqüências semelhantes, podem, portanto, ser observadas em pacientes tanto em hipo como em hipertireoidismo. A fadiga muscular observada no primeiro caso se deve diretamente à deficiência da ação dos hormônios tireoidianos. Já no segundo, essa fadiga se deve, principalmente, à depleção dos substratos energéticos do músculo pela sua alta demanda metabólica.

Todas essas disfunções do músculo podem ser exemplificadas por meio do teste de reflexo do tendão calcâneo, o qual serviu para diagnóstico das disfunções da tireóide antes dos avanços nos métodos atuais, conforme podemos observar no gráfico 1 elaborado por Everts22.


No músculo sóleo, envolvido na resposta reflexa descrita, pelo fato de ele ser constituído predominante por fibras do tipo I, observa-se reação mais rápida de recrutamento de suas fibras no estado de hipertireoidismo, enquanto uma reação de recrutamento mais lenta ocorre no hipotireoidismo.

HORMÔNIOS TIREOIDIANOS E TOLERÂNCIA AO ESFORÇO

Uma das principais conseqüências das disfunções da tireóide é a diminuição da tolerância aos esforços físicos em razão de suas implicações envolvendo os sistemas cardiovascular e muscular. Esse fato interfere diretamente na capacidade do paciente de realizar tarefas da vida diária, tendo impacto na qualidade de vida.

Segundo estudos tradicionais na área da fisiologia do esforço24-28, um dos principais parâmetros para aferir a tolerância do indivíduo a esforços intensos é o denominado limiar anaeróbico, pois esse reflete o ponto onde ocorre o maior consumo de oxigênio pelo organismo.

Pessoas com bom condicionamento cardiorrespiratório alcançam o limiar anaeróbico em intensidade de esforço mais alta em relação aos indivíduos mal-condicionados. Isso explica a maior tolerância ao esforço dos atletas.

Estudo realizado por Kahaly e cols.3 observou que as cargas de trabalho toleradas são reduzidas no limiar anaeróbio em indivíduos com disfunções tireoidianas, quando eles são comparados aos eutireóidios. Segundo esses autores, essa intolerância ao esforço se deve, em caso de hipertiroidismo, às disfunções oxidativas mitocondriais e, em caso de hipotireoidismo, ao inadequado suporte cardiovascular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São vários os estudos que demonstram as conseqüências dos distúrbios da tireóide sobre os sistemas cardiovascular e muscular. Dentre as principais conseqüências observam-se comprometimento da função cardíaca e diminuição da capacidade de realizar atividades de vida diária em razão de intolerância aos esforços físicos. Novos estudos devem ser incentivados com o propósito de se avaliar os distúrbios secundários às variações da função tireoidiana e suas implicações e possibilidades terapêuticas dessa doença muito freqüente em nosso meio.

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Recebido em 22/09/05

Aceito em 11/11/05

  • Correspondência:

    Alexandre Gonçalves
    Rua Delmira C. R. da Cunha, 1161/301
    38408-208 – Uberlândia, MG
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    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Set 2006
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