Acessibilidade / Reportar erro

A ressonância magnética como método propedêutico em valvopatia

ARTIGO DE REVISÃO

A ressonância magnética como método propedêutico em valvopatia

Marcelo Nigri; Carlos Eduardo Rochitte; Flávio Tarasoutchi; Max Grinberg

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Marcelo Nigri Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 – São Paulo, SP E-mail: marcelonigri@uol.com.br

A ressonância magnética (RM) vem se firmando nos últimos anos como um dos principais exames complementares não-invasivos em cardiologia. Dentre as suas principais vantagens destacam-se a excelente definição anatômica entre os tecidos, a possibilidade de aquisição e reconstrução tridimensionais, a ausência de radiação ionizante e o uso de contraste não-nefrotóxico (gadolínio) nas doses clinicamente utilizadas.

A RM tem sido empregada na avaliação de valvopatias quando há dificuldade técnica ecocardiográfica (janela acústica inadequada, por exemplo) e em casos de divergência com outros exames, como o cateterismo cardíaco. Com o advento das novas técnicas de aquisição de imagem, a RM obtém informações adicionais, relativas à medida precisa das dimensões das câmaras cardíacas, função e massa ventriculares, volumes de regurgitação valvar e caracterização da fibrose miocárdica associada às valvopatias (tab. 1).

As principais técnicas de RM utilizadas para a avaliação das valvas cardíacas são as seqüências anatômicas estáticas (spin-eco rápido), a cinerressonância, o mapeamento de fluxo por contraste de fase ou mapa de fluxo e, mais recentemente, a técnica de realce tardio miocárdico. A cinerressonância é a técnica mais utilizada para a avaliação das valvas cardíacas. Essa seqüência fundamenta-se na aquisição segmentada de imagens dinâmicas ao longo de alguns ciclos cardíacos, permitindo avaliar a movimentação das estruturas em qualquer plano anatômico. Com a cinerressonância é possível medir, de forma acurada, os diâmetros e volumes das câmaras cardíacas, assim como a massa e função ventriculares. A fração de ejeção ventricular é calculada a partir dos volumes sistólico e diastólico de diversos cortes transversais ao eixo principal do coração, cobrindo toda a extensão ventricular, segundo o método de Simpson1. Como vantagem em relação à ecocardiografia bidimensional, não são feitas suposições geométricas do ventrículo para esse cálculo. Além disso, essa técnica não é limitada pela conformação torácica do paciente, tem baixa variabilidade intra e interobservador e também permite a análise do ventrículo direito, câmara usualmente de difícil acesso ao ecocardiograma. Por todas essas qualidades, a RM presta-se como um excelente exame para seguimento da função e massa ventriculares de pacientes valvopatas (com estenose aórtica, por exemplo), bem como para a comparação funcional após alguma intervenção cirúrgica2.

Essa técnica, também conhecida como codificação de velocidade, é uma extensão da cinerressonância, e permite determinar a velocidade do fluxo sangüíneo de um vaso ou valva cardíaca (fig. 1). Equivale ao Doppler da ecocardiografia, mas com as vantagens de poder acessar fluxos em qualquer orientação e sem limitação de janela acústica3. Por meio da equação de Bernoulli modificada, também é possível a determinação do gradiente pressórico transvalvar. Essa técnica é muito útil para quantificar os distúrbios valvares (estenose ou insuficiência). No entanto, apesar de sua acurácia, ampla disponibilidade e rápida aquisição, exige experiência do operador na seleção dos parâmetros técnicos e do plano de corte anatômico mais apropriados para cada situação clínica.


Tendo como base a descrição detalhada da cinética do gadolínio no miocárdio infartado, normal e com obstrução microvascular4 (fig. 2), foi desenvolvida uma técnica de RM que pode destacar de forma clara as diferenças de concentração de gadolínio nos diferentes graus de lesão do tecido miocárdico. Descrita há cerca de quatro anos, a técnica de realce tardio consiste na aquisição das imagens cerca de dez a vinte minutos após a injeção intravenosa de contraste (gadolínio), precedida de um pulso de inversão-recuperação5 . Dessa forma é capaz de visibilizar mínimas áreas de necrose/fibrose no miocárdio e apresenta excelente correlação com a anatomia patológica6 em diversas cardiopatias7-9.


Recentemente, utilizamos o realce tardio em pacientes com valvopatia aórtica (estenose ou insuficiência) acentuada e artérias coronárias normais (fig. 3). Os pacientes foram avaliados pela RM antes e depois da cirurgia valvar, sendo observadas áreas de fibrose miocárdica em 60% dos casos. A presença de fibrose miocárdica à RM teve correlação com o grau de disfunção ventricular esquerda e boa acurácia comparada à biópsia miocárdica realizada durante a cirurgia10-14.


Para avaliar estenose valvar, utiliza-se um plano de corte perpendicular ao plano valvar que possibilita a observação de valvas espessadas, fusionadas e/ou de menor mobilidade. A cinerressonância permite a visibilização do jato de turbulência sistólica gerado pela estenose valvar e a mensuração das dimensões, espessura e função das câmaras cardíacas. Na estenose aórtica pode ser observados hipertrofia ventricular pela sobrecarga de pressão, dilatação arterial pós-estenótica e jato de turbulência sistólica na via de saída ventricular. Já na estenose das valvas atrioventriculares os principais achados são o aumento atrial e o jato de turbulência diastólica na via de entrada ventricular. Existem várias maneiras de se quantificar a estenose valvar pela RM. A magnitude do jato de turbulência sistólica observado à cinerressonância pode fornecer uma idéia da intensidade da estenose (método semiquantitativo), mas não deve ser considerado isoladamente como parâmetro de gravidade do distúrbio valvar. Também com a cinerressonância é possível determinar a área valvar por planimetria direta. A presença de calcificação, que gera perda de sinal à RM, pode causar superestimação da área de abertura valvar pela planimetria, mas em geral esse método apresenta excelente correlação com a ecocardiografia15. As medidas de velocidade de fluxo, área valvar e gradiente pressórico transvalvar pela RM com a técnica de contraste de fase demonstram estreita correlação com o Doppler e o cateterismo em pacientes com estenose mitral e aórtica16,17.

Um dos pontos fortes da RM na avaliação das valvopatias é a sua habilidade de mensurar de forma precisa o volume e a fração regurgitantes, na insuficiência valvar. Para esse fim, a RM foi considerada método de imagem de primeira linha no consenso de RM cardiovascular da Sociedade de Ressonância Magnética Cardiovascular e da Sociedade Européia de Cardiologia, recentemente publicado18.

Uma das principais preocupações do cardiologista é a segurança da RM em portadores de prótese valvar mecânica. Atualmente já está bem estabelecido que é seguro expor um portador desse tipo de prótese aos campos magnéticos habitualmente utilizados em RM (1,5 Tesla)19. A força magnética sobre o material é muito pequena diante daquela exercida pela fixação cirúrgica da prótese. Essas próteses, por sua vez, produzem um artefato de perda de sinal (área escura na imagem) em função da distorção do campo magnético pelo conteúdo metálico. Em geral esse artefato se estende para as estruturas adjacentes, o que varia conforme a seqüência de pulso utilizada (usualmente menor extensão nas seqüências de spin-eco). Conseqüentemente, a avaliação de jatos de turbulência de fluxo valvar, principalmente os de pequena magnitude, fica prejudicada. Com as próteses biológicas, em geral esse efeito fica restrito ao anel valvar e não chega a interferir de forma significativa na interpretação do exame.

Como todo exame, entretanto, a RM tem limitações, que devem ser levadas em consideração ao indicá-la. Todas as seqüências de pulso cardíacas são obtidas com sincronização eletrocardiográfica. Em pacientes portadores de arritmias, algo comum entre valvopatas, essa sincronização é prejudicada, o que pode comprometer a qualidade do exame. Além disso, a aquisição das imagens quase sempre é realizada em apnéia de alguns segundos. Pacientes dispnéicos ou com insuficiência cardíaca descompensada não costumam tolerá-la, o que também reduz a qualidade das imagens. Cerca de 2% dos pacientes não conseguem suportar o exame por claustrofobia. Já os implantes metálicos cerebrais constituem contra-indicação formal à RM, a não ser que comprovadamente não apresentem propriedades ferromagnéticas. Finalmente, a presença de marcapasso ou cardioversor-desfibrilador implantável também é considerada contra-indicação ao exame, embora alguns estudos tenham demonstrado sua segurança nos aparelhos de 1,5 Tesla20.

A RM configura-se, portanto, como um método seguro incorporado ao arsenal propedêutico das valvopatias.

Recebido em 12/08/05

Aceito em 17/10/05

  • 1. Rehr RB, Malloy CR, Filipchuk NG, et al. Left ventricular volumes measured by MR imaging. Radiology. 1985; 156: 717-19.
  • 2. Mohiaddin RH, Kilner PJ. Valvular Heart Disease. In: Manning WJ, Pennell DJ, editors. Cardiovascular Magnetic Resonance. Philadelphia, PA: Churchill Livingstone; 2002: 387-404.
  • 3. Mohiaddin RH, Longmore DB. Functional aspects of cardiovascular nuclear magnetic resonance imaging. Techniques and application. Circulation. 1993; 88: 264-81.
  • 4. Rochitte CE, Lima JA, Bluemke DA, et al. Magnitude and time course of microvascular obstruction and tissue injury after acute myocardial infarction. Circulation. 1998; 98: 1006-14.
  • 5. Simonetti OP, Kim RJ, Fieno DS, et al. An improved MR imaging technique for the visualization of myocardial infarction. Radiology. 2001; 218: 215-23.
  • 6. Wagner A, Mahrholdt H, Holly TA, et al. Contrast-enhanced MRI and routine single photon emission computed tomography (SPECT) perfusion imaging for detection of subendocardial myocardial infarcts: an imaging study. Lancet. 2003; 361: 374-9.
  • 7. Wilson JM, Villareal RP, Hariharan R, et al. Magnetic resonance imaging of myocardial fibrosis in hypertrophic cardiomyopathy. Tex Heart Inst J. 2002; 29: 176-80.
  • 8. Mahrholdt H, Goedecke C, Wagner A, et al. Cardiovascular magnetic resonance assessment of human myocarditis: a comparison to histology and molecular pathology. Circulation. 2004; 109: 1250-8.
  • 9. Serra JJ, Monte GU, Mello ES, et al. Images in cardiovascular medicine. Cardiac sarcoidosis evaluated by delayed-enhanced magnetic resonance imaging. Circulation. 2003; 107: 188-e189.
  • 10. Nigri M. Fibrose miocárdica em valvopatia aórtica: estudo comparativo entre a ressonância magnética e biópsia intra-operatória miocárdica. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) - Departamento de Cardiopneumologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
  • 11. Nigri M, Rochitte C, Tarasoutchi F, et al. Myocardial fibrosis detected by MRI and biopsy is associated with worse left ventricular function in patients with severe chronic aortic valve disease. Circulation. 2003; 108 [17 (S-IV)]: 567 (abstract).
  • 12. Nigri M, Rochitte C, Tarasoutchi F, et al. Delayed-enhanced magnetic resonance imaging detects myocardial fibrosis in patients with chronic aortic valve disease. J Am Coll Cardiol. 2004; 41 [6 (SA)]: 450 (abstract).
  • 13. Nigri M, Grimberg M, Tarasoutchi F, et al. Myocardial delayed enhancement MRI detects myocardial fibrosis and is associated with worse left ventricular function and biopsy increased collagen content in patients with severe chronic aortic valve disease. J Cardiovasc Magn Reson. 2004; 6: 86 (abstract).
  • 14. Nigri M, Rochitte C, Tarasoutchi F, et al. Relationship of myocardial fibrosis by delayed enhancement MRI with biopsy-quantified collagen content in patients with severe chronic aortic valve disease. Circulation. 2004; 110: 572 (abstract).
  • 15. John AS, Dill T, Brandt RR, et al. Magnetic resonance to assess the aortic valve area in aortic stenosis: how does it compare to current diagnostic standards? J Am Coll Cardiol. 2003; 42: 519-26.
  • 16. Kilner PJ, Manzara CC, Mohiaddin RH, et al. Magnetic resonance jet velocity mapping in mitral and aortic valve stenosis. Circulation. 1993; 87: 1239-48.
  • 17. Caruthers SD, Lin SJ, Brown P, et al. Practical value of cardiac magnetic resonance imaging for clinical quantification of aortic valve stenosis: comparison with echocardiography. Circulation. 2003; 108: 2236-43.
  • 18. Pennell DJ, Sechtem UP, Higgins CB, et al. Clinical indications for cardiovascular magnetic resonance (CMR): Consensus Panel report. Eur Heart J. 2004; 25: 1940-65.
  • 19. Edwards MB, Taylor KM, Shellock FG. Prosthetic heart valves: evaluation of magnetic field interactions, heating, and artifacts at 1.5 T. J Magn Reson Imaging. 2000; 12: 363-9.
  • 20. Martin ET, Coman JA, Shellock FG, et al. Magnetic resonance imaging and cardiac pacemaker safety at 1.5-Tesla. J Am Coll Cardiol. 2004; 43: 1315-24.
  • Correspondência:

    Marcelo Nigri
    Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Aceito
      17 Out 2005
    • Recebido
      12 Ago 2005
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br