Acessibilidade / Reportar erro

Associação rara entre lúpus eritematoso sistêmico, obesidade mórbida e Síndrome de Takotsubo

Resumos

Os autores descrevem um caso de paciente de 68 anos de idade, portadora de lúpus eritematoso sistêmico de longa data, bem como de obesidade mórbida com índice de massa corporal muito elevada, que veio a apresentar quadro de insuficiência coronariana aguda decorrente de síndrome de Takotsubo.

Lúpus eritematoso sistêmico; cardiopatia da obesidade; síndrome de Takotsubo


The authors report a 68-year-old white female with long-term systemic lupus erythematosus as well as morbid obesity, characterized by very elevated body mass index, who presented a classical picture of acute coronary failure ascribed to Takotsubo syndrome.

Systemic lupus erythematosus; cardiopatithy obesity; Takotsubo syndrome


RELATO DE CASO

Associação rara entre lúpus eritematoso sistêmico, obesidade mórbida e Síndrome de Takotsubo

João Gaspar Corrêa Meyer Neto; Claudio Buarque Benchimol; Guilherme Loures Penna; Luiz Antônio Ferreira Carvalho; Maria Carolina Pessoa

Hospital Samaritano, Rio de Janeiro, RJ

Correspondência Correspondência: Guilherme Loures Penna Rua Garcia D'Avila, 263/301 22421-010 - Rio de Janeiro, RJ E-mail: guipenna@terra.com.br

RESUMO

Os autores descrevem um caso de paciente de 68 anos de idade, portadora de lúpus eritematoso sistêmico de longa data, bem como de obesidade mórbida com índice de massa corporal muito elevada, que veio a apresentar quadro de insuficiência coronariana aguda decorrente de síndrome de Takotsubo.

Palavras-chave: Lúpus eritematoso sistêmico, cardiopatia da obesidade, síndrome de Takotsubo.

Uma síndrome recentemente descrita por autores japoneses – caracterizada por anormalidade reversível do movimento da parede ventricular de aspecto morfológico semelhante a um balão, ou mais precisamente, do ponto de vista semântico, a uma armadilha de polvo, no nível dos segmentos apicais do coração e com hipercontração dos segmentos basais, observada durante a realização de cineangiocoronariografia com ventriculografia, associada com alterações eletrocardiográficas do segmento ST-T similares a um episódio de infarto agudo do miocárdio com elevação mínima das enzimas cardíacas, acometendo preferencialmente mulheres idosas e induzida por estresse físico ou emocional – define a síndrome de Takotsubo1. Reforça o diagnóstico dessa entidade a quase ausência de alterações morfoestruturais da circulação coronariana. Outro aspecto lembrado é a rápida duração da assinergia do movimento da parede ventricular, contrastando eventualmente com a duração maior das manifestações clínicas. A etiologia ainda não é totalmente conhecida, especulando-se o papel do comprometimento da microcirculação coronariana multivascular (expressão severa de angina microvascular) e, mais recentemente, a possibilidade de uma dinâmica alterada das catecolaminas adrenérgicas no miocárdico2,3.

A excepcionalidade do caso aqui relatado provém da concomitância de duas doenças potencialmente lesivas ao coração, lúpus eritematoso sistêmico e obesidade mórbida, associadas com essa forma pouco comum de cardiomiopatia induzida pelo estresse agudo. Alterações pericárdicas, endocárdicas, vasculite da circulação coronariana, bem como bloqueio cardíaco congênito em prole de mães lúpicas resumidamente constituem as alterações cardíacas clássicas dessa doença auto-imune. O impacto da obesidade mórbida sobre o aparelho cardiovascular é basicamente decorrente das repercussões de hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, diabetes e hipertensão arterial pulmonar hipoxêmica, aspectos amplamente conhecidos na literatura especializada.

Os autores descrevem um caso de paciente de 68 anos de idade, portadora de lúpus eritematoso sistêmico de longa data, bem como de obesidade mórbida com índice de massa corporal muito elevado, que apresentou quadro de insuficiência coronariana aguda decorrente de síndrome de Takotsubo.

Relato do Caso

Paciente do sexo feminino, com 68 anos de idade, portadora do lúpus eritematoso sistêmico de longa data, e que vinha apresentando, nos últimos dois anos, agudizações manifestas por dores articulares, lassidão, trombocitopenia e alveolite aguda, essa última com comprovação na tomografia computadorizada espiral do tórax, de múltiplas áreas de condensação em vidro fosco, nas porções mais dependentes de seus lobos inferiores. Como tratamento, foi feita pulsoterapia com metilprednisolona associada a ciclofosfamida oral. Em conseqüência do uso prolongado de corticoesteróide, houve agravamento progressivo do ganho de peso, assumindo níveis de massa corporal compatíveis com obesidade mórbida associada com síndrome de hipoventilação alveolar (tipo pickwick), bem como eclosão de estado diabético nos meses subseqüentes.

Após remissão da última crise, e quando já se encontrava em residência, após esforço físico intenso e de curta duração relacionado a queda em cômodo da casa, com tentativa espontânea de soerguimento, apresentou desconforto torácico vago, cianose, dispnéia e edema pulmonar agudo.

Foi transferida para a unidade de terapia intensiva e manejada com diurético venoso e morfina. O eletrocardiograma de internação mostrava-se normal (fig. 1) e as curvas de enzimas cardíacas e de peptídeo natriurético cerebral (BNP) estão demonstradas nos gráficos 1 e 2.




O ecocardiograma Doppler (fig. 2A) revelou acinesia e abaulamento das porções apicais e hipercontratilidade das porções basais do ventrículo esquerdo. A cineangiocoronariografia realizada menos de quatorze horas após internação exibiu árvore coronariana sem alterações obstrutivas significativas, bem como alterações clássicas de hipercontração basal e discinesia da parede livre ventricular em forma de armadilha de polvo, caracterizando a síndrome de Takotsubo (fig. 3).




Houve regressão das alterações ao cabo de três dias, com desaparecimento do edema pulmonar e aparecimento de alterações da repolarização ventricular (fig. 4), e normalização das enzimas cardíacas, com regressão completa dez dias após o inicio do quadro inicial.


O déficit contrátil da parede ventricular desapareceu em quatro dias (fig. 2B) e uma cintilografia miocárdica com meta-iodo-benzilguanidina (MIBG), realizada cinco dias após, mostrou comprometimento da neurotransmissão adrenérgica cardíaca, com área de denervação segmentar nas paredes apical e anterior do ventrículo esquerdo que, posteriormente, evidenciou melhora evolutiva na cintilografia repetida em 15 de outubro do mesmo ano, demonstrando comprometimento restrito à parede anterior (figs. 5 e 6).



Discussão

Quando analisada a literatura cardiológica japonesa atual deparamo-nos com diversas referências, nos últimos anos, da síndrome de Takotsubo, ao contrário da escassez de relatos na literatura ocidental4-6. Apesar da aparente benignidade desse processo, artigos eventualmente mencionam evolução com edema pulmonar agudo, choque cardiogênico, ruptura ventricular e óbito7. Altas concentrações de noradrenalina plasmática parecem apontar para a possibilidade de participação de uma dinâmica alterada das catecolaminas8. Outros autores acreditam na existência de um insulto isquêmico microvascular difuso na gênese desta entidade.

A curiosidade maior desse relato decorre da tríplice participação de entidades potencialmente lesivas ao coração, ou seja, obesidade mórbida, lúpus eritematoso e diabetes esteróide, associadas com o aparecimento da síndrome em questão. Os aspectos cintigráficos têm sido objeto de muito estudo atual. A cintilografia miocárdica utilizando meta-iodo-benzilguanidina marcada com iodo radioativo123 realizada em pacientes com miocardiopatia do tipo Takotsubo tem regularmente demonstrado um padrão específico de hiperatividade símpato-adrenérgica com preservação do fluxo sangüíneo coronariano, fatos esses muito sugestivos de um miocárdio atordoado de fundo neurogênico, com hiperatividade dos receptores adrenérgicos miocárdicos, sendo o evento último na instalação dessa miocardiopatia reversível9.

Digna de menção também é a presença de níveis elevados de peptídeo natriurético cerebral durante o quadro agudo, sem significado prognóstico desfavorável, e relacionado aparente e diretamente com a severidade da hipercinesia dos segmentos basais10.

Os autores apresentam um caso de rara associação entre lúpus eritematoso sistêmico, obesidade mórbida e cardiomiopatia de Takotsubo. Apesar de não ter havido documentação ou exclusão de espasmo coronariano mediante infusão intracoronária de acetilcolina, os achados evolutivos na cintilografia miocárdica com meta-iodo-benzilguanidina marcada com iodo123, acoplados aos dados clínicos, eletrocardiográficos, ecocardiográficos e de cineangiocoronariografia com ventriculografia permitiram a formulação diagnóstica precisa. É digno de lembrança que a Iodo-meta-iodo-benzilguanidina123 representa um análogo da noradrenalina e é ativamente transportada no interior dos grânulos de noradrenalina das terminações nervosas simpáticas por captação-1.

A captação diminuída da MIBG na fase inicial sugere, portanto, o envolvimento do sistema nervoso autônomo cardíaco. A cardiomiopatia em questão, também chamada de discinesia apical transitória, representa um tipo de síndrome coronariana aguda bastante assemelhada a um episódio de infarto agudo do miocárdio em razão do quadro clínico e eletrocardiográfico, e com potencial de complicações precoces até mais expressivas que no infarto agudo do miocárdio (IAM), exemplificadas por presença de edema agudo pulmonar em 22%, arritmias ventriculares em 9%, e choque cardiogênico em 15%, porém com excelente prognóstico a médio e longo prazos.

A prevalência no sexo feminino, em pacientes de idade média ou avançada, tendo como fatores desencadeantes estresse psíquico, exercício físico incomum, agravamento de doenças prévias ou existências de novas, clínicas ou cirúrgicas, é aspecto clínico sempre lembrado e que foi encontrado no caso em questão.

Recebido em 29/06/05

Aceito em 08/12/05

  • 1. Tsuchihashi K, Ueshima K, Uchida T, Oh-mura N. Transient left ventricular apical ballooning without coronary artery stenosis: A novel heart syndrome mimicking acute myocardial infarction. J Am Coll Cardiol. 2001; 38: 11-8.
  • 2. Kurisu S, Sato H, Kawagoe T, Ishibara M, Shimatani Y. Tako-tsubo-like left ventricular dysfunction with ST-segment elevation: A novel cardiac syndrome mimicking acute myocardial infarction. Am Heart J. 2002; 143: 448-55.
  • 3. Ito K, Kawasaki T, Yuba T, Doue T, Tanabe T, Adachi Y, et al. Assessment of ampulla (Takotsubo) cardiomyopathy with coronary angiography, two-dimensional echocardiography and 99mTc-tetrofosmin myocardial dingle photon emission computed tomography. Ann Nucl Med. 2001; 15: 351-5.
  • 4. Gaspar J, Cruz RAG. Tako-tsubo syndrome (transient antero-apical dyskinesia): first case report in Latin America and review of the literature. Arch Cardiol Mex. 2004, 74: 205-14.
  • 5. Shimizu M, Takahashi H, Fukatsu Y, et al. Reversible left ventricular dysfunction manifesting as hyperkinesis of the basal and the apical areas with akinesis of the mid portion: a case report. J Cardiol. 2003; 41: 285-90.
  • 6. Wittstein I, Thiemann D, Lima J, et al. Neurohumoral features of myocardial stunning due to sudden emotional stress. N Engl J Med. 2005; 352: 539-48.
  • 7. Akashi Y, Tejima T, Sakurada H, Matsuda H, Susuki K, Kawasaki K. Left Ventricular Rupture Associated With Takotsubo Cardiomyopathy. Mayo Clin Proc. 2004; 79: 821-4.
  • 8. Akashi Y, Nakazawa K, SakakibaraM. Reversible left ventricular dysfunction "takotsubo" cardiomyopathy related to catecholamine cardiotoxicity. J Electrocardiol. 2002; 35: 351-6.
  • 9. Akashi Y, Nakazawa K, Sakakibara M, Miyake F, Musha H, Sasaka K. 123I-MIBG myocardial scintigraphy in patients with "Takotsubo" cardiomyopathy. JNM. 2004; 45: 13-14.
  • 10.Akashi YJ, Musha H, Nakazawa K. Plasma brain natriuretic peptide in Takotsubo cardiomyopathy. QJM. 2004; 97: 599-607.
  • Correspondência:

    Guilherme Loures Penna
    Rua Garcia D'Avila, 263/301
    22421-010 - Rio de Janeiro, RJ
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Recebido
      29 Jun 2005
    • Aceito
      08 Dez 2005
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br