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Revascularização miocárdica completa, incompleta ou nenhuma

PONTO DE VISTA

Revascularização miocárdica completa, incompleta ou nenhuma

Whady Armindo Hueb; José Antonio Franchine Ramires

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP, São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Whady Armindo Hueb Rua Araucária, 677 02338-010 – São Paulo, SP E-mail: wahueb@cardiol.br

Palavras-chave: Revascularização miocárdica, angioplastia, angina pectoris.

Resultados animadores sobre o prognóstico em curto ou longo prazo da cirurgia de revascularização miocárdica (RCM) são atribuídos à aplicação de um maior número de enxertos nas artérias coronarianas1. Para se alcançar esse objetivo, é necessário que as artérias nativas tenham um calibre adequado para receber o enxerto, que a placa aterosclerótica seja proximal e que o leito distal da artéria permita bom fluxo. Além disso, na estratégia cirúrgica, as opções de revascularizar sub-ramos arteriais e também artérias ocluídas deverão ser consideradas para intervenção.

A cirurgia realizada, nessas condições, recebe o nome de revascularização anatômica completa, na qual todos os vasos a serem tratados devam ter diâmetros > 1,5 mm e estenose luminar > 50%, independentemente da viabilidade miocárdica correspondente. Considera-se, porém, revascularização funcional completa quando são abordadas somente as artérias cujo miocárdio irrigado seja viável. Quando o procedimento não alcança o tratamento de todas as artérias com estenose > 50% em miocárdio viável, considera-se revascularização incompleta, porém ainda funcional2.

A hipotética superioridade da cirurgia não transferiu, entretanto, benefícios concretos para determinado grupo de pacientes3. Com recentes avanços no uso de enxertos arteriais para RCM e stents para angioplastia coronariana (PCI), assistimos a importante melhora nos resultados em ambas as estratégias. Uma administração farmacológica maciça de estatinas e, também, de agentes antiplaquetários tem contribuído para um melhor prognóstico dos pacientes candidatos a RCM ou PCI, tornando essas diferenças pouco perceptíveis e revelando somente resultados favoráveis para a cirurgia na prevenção do infarto não-fatal e na necessidade de reintervenção4,5.

Na prática médica contemporânea, contudo, o médico encontra varias opções disponíveis na grande maioria dos casos. Todavia, assistimos a uma falta de resultados consistentes para escolher a melhor opção para revascularizar o miocárdio. As atuais diretrizes disponíveis para tratamento da doença multiarterial coronariana (DAC) não discutem formalmente essa questão6,7. Nesse contexto, a decisão de aplicar uma revascularização miocárdica completa ou não depende das condições que cada paciente apresenta, cujo julgamento é feito quase sempre durante a intervenção cirúrgica.

O mesmo dilema é vivido pelo cardiologista intervencionista durante procedimentos com pacientes portadores de DAC estável ou em presença de síndrome isquêmica aguda. Nessa última condição, a preferência do operador está focada quase sempre no vaso relacionado ao evento. Assim, a estratégia da revascularização percutânea completa depende da condição do paciente, do local das estenoses, da qualidade e do diâmetro do vaso. Nesse contexto, a probabilidade de ocorrer uma revascularização percutânea incompleta será maior que na RCM.

Estudos randomizados que objetivaram comparar a relativa eficácia da RCM sobre a PCI concluíram que a intervenção percutânea não diminuiu a taxa de mortalidade encontrada na cirurgia; além disso, revelaram expressiva necessidade de novas intervenções percutaneas8-12. Nesses estudos, o número de intervenções percutâneas foi significativamente menor que o número de enxertos aplicados nos pacientes. Além disso, cabe aqui salientar que, com exceção do estudo MASS II, todos os outros estudos utilizaram amostras predominantemente biarteriais cujo prognóstico clínico é admitido como bastante favorável (tab. 1).

Considerando que o número menor de intervenções percutâneas não teve reflexos na mortalidade imediata ou tardia nesses estudos comparativos, é licito questionar sobre se o número aumentado de enxertos tem real implicação no prognóstico da enfermidade. Para ambas as estratégias, PCI ou RCM, existe ainda substancial incerteza sobre uma definição, e também, sobre a mais adequada forma de revascularizar o miocárdio. Teoricamente, a revascularização completa do miocárdio para qualquer estratégia deveria agregar benefícios adicionais relacionados à recuperação da função miocárdica, ou à proteção de futuros eventos, traduzindo assim melhor sobrevivência. Isso resultaria, entretanto, num prolongado tempo de procedimento e alto risco imediato de complicações. Dessa forma, a decisão sobre a melhor forma de revascularizar o miocárdio ainda depende da correta avaliação individualizada do médico.

Avanços na técnica de revascularização cirúrgica do miocárdio têm permitido que pacientes recebam enxertos arteriais ou venosos sem auxilio de circulação extracorpórea. Esse procedimento tem, entretanto, limitações técnicas relativas a aplicações de enxertos em artérias localizadas na parede posterior do ventrículo esquerdo, impondo, assim, a realização de menor número de anastomoses. Essa condição sinaliza possibilidade real de revascularização incompleta do miocárdio. Isso não parece, entretanto, contribuir para um pior prognóstico em curto prazo nesses pacientes, quando comparados com aqueles que receberam maior número de enxertos com auxílio da circulação extracorpórea13-14 (tab.2).

Cabe salientar, contudo, que mesmo revelando uma redução no número de eventos perioperatórios, a cirurgia de revascularização sem o auxílio da CEC impôs uma redução na perviabilidade dos enxertos em curto prazo, de maneira significativa (88% versus 98%, p = 0,002), sem comprometer, todavia, o prognóstico desses pacientes14.

Tratamento clínico

Estudos prévios e também recentes, comparando o tratamento clínico com as formas habituais de revascularização, têm revelado que, baseados em rigoroso controle dos fatores de risco e em medicação apropriada, o tratamento clínico tem a mesma eficácia na prevenção da morte que RCM ou PCI, independentemente do número de intervenções percutâneas ou do número de enxertos aplicados em determinados subgrupos de pacientes8,15 (fig. 1).


Diabetes

Pacientes diabéticos considerados como de potencial risco aumentado de pior prognóstico foram avaliados em vários ensaios comparando RCM e PCI9,16. O melhor prognóstico em dez anos de sobrevivência em pacientes submetidos a RCM comparados com PCI (60% versus 46%, p < 0,001) foi documentado entre 1.938 pacientes diabéticos. Nesse ensaio, a revascularização incompleta foi ao maior determinante dos eventos adversos após PCI17. A alta taxa de eventos adversos observados em pacientes diabéticos após PCI foi atribuído pelo aumento da ocorrência de restenoses e progressão acelerada da doença nesse grupo de pacientes18.

Pacientes idosos

Há ainda controvérsias se a revascularização, completa ou não, oferece melhor prognóstico em pacientes idosos, ainda que eles estejam expostos a um aumento de mortalidade relacionado ao procedimento19. Entre 5.003 pacientes com idade > 70 anos, a revascularização incompleta foi considerada como fator independente de risco de morte precoce e após seis meses de evolução20. Entre pacientes com reduzida expectativa de sobrevivência uma revascularização completa pode, entretanto, aumentar os riscos imediatos da intervenção, e isso deve ser pesado fortemente na hipotética probabilidade de sobrevida prolongada.

Considerações finais

Teoricamente, o tamanho da área revascularizada alcançada por RCM ou PCI é o maior determinante da sobrevivência de pacientes com DAC. Baseado em evidências disponíveis, a revascularização por meio de RCM ou PCI oferece benefícios similares em relação à sobrevivência; entretanto, a intervenção deverá ser pelo menos funcionalmente completa em pacientes com DAC estável, multiarterial com função ventricular preservada, e não-diabéticos. Contemporaneamente, a angioplastia coronária tem ampla preferência pelos médicos em razão de maior aceitação pelos pacientes e de reduzido tempo de internação hospitalar. Ainda que dados atuais relatem que PCI impõe riscos de subseqüentes intervenções em razão de reestenoses, o uso de novas próteses endoarteriais é extremamente promissor na redução desses riscos.

Condições clínicas devem nortear a escolha por uma completa ou incompleta revascularização diante de subgrupos específicos de pacientes. Os pacientes diabéticos têm maiores benefícios com a revascularização completa com RCM. De maneira contrária, em pacientes com síndrome coronariana aguda, uma incompleta revascularização por meio de PCI na artéria relacionada ao evento é muito efetiva quando realizada em tempo hábil. Entretanto, sendo a PCI um potencial indutor de reintervenções, e a RCM reservada prioritariamente para pacientes sintomáticos, é permitido colocar o tratamento medicamentoso, associado a um rigoroso controle dos fatores de risco, como uma opção terapêutica razoável para pacientes com DAC estável pouco sintomático e com função ventricular preservada, como primeira opção em pacientes que recusam o tratamento intervencionista; PCI ou RCM.

Referências

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Recebido em 11/04/06

Aceito em 24/04/06

  • Correspondência:

    Whady Armindo Hueb
    Rua Araucária, 677
    02338-010 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006
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