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Controle microbiológico em valvas cardíacas humanas

Resumos

OBJETIVO: Avaliar, sob o aspecto microbiológico, valvas processadas pelo Banco de Valvas Cardíacas Humanas da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, para serem utilizadas em cirurgias cardiovasculares. MÉTODOS: Foi avaliado o processamento de 1.671 valvas, no período de junho de 1999 a junho de 2004. Das valvas e soluções envolvidas no processo foram coletadas amostras e semeadas nos meios de cultura: meio líquido tioglicolato, caldo soja tripticaseína e caldo Sabouraud, com quatorze dias de incubação, utilizando a metodologia modificada baseada na Farmacopéia Brasileira 1998 e USP 1990 (United States Pharmacopeia). Nas amostras que apresentaram crescimento foram realizadas as identificações microbianas. RESULTADOS: Em um total de 1.671 amostras analisadas, 92% foram consideradas próprias para utilização, sob o aspecto microbiológico, uma vez que não apresentaram contaminação microbiana. Somente 8% não foram liberadas para uso clínico por motivo de contaminação em alguma etapa do processamento da valva. CONCLUSÃO: Analisando os resultados, observou-se a importância do controle microbiológico em enxertos humanos, evitando a utilização de valvas com contaminação microbiológica em pacientes submetidos à cirurgia cardiovascular.

Valvas cardíacas; homoenxertos; aloenxertos


OBJECTIVE: To evaluate, from microbiological point of view, the valves processed by Human Heart Valve Bank of Santa Casa de Misericórdia of Curitiba for use in cardiovascular surgeries. METHODS: The processing of 1,671 valves, accomplished within the period of time between July 1999 and June 2004, was evaluated. Out of the valves and the solutions involved in the process, samples were collected and spread in culture mediums, such as fluid thioglycollate medium, tryptic soy broth and Sabouraud broth, for incubation during 14 days, using a modified methodology based on the Farmacopéia Brasileira 1988 (Brazilian Pharmacopeia) and USP 1990 (United States Pharmacopeia). The samples in which growing was observed were submitted to microbian identification. RESULTS: In a set of 1,671 samples, 92% were considered proper for use under microbiological point of view, since they did not display microbian contamination. The remaining 8% were rejected for clinical use because of contamination in some stage of the valve processing. CONCLUSION: From the Analysis of the results, it was observed the importance of microbiological control in human grafts, in order to avoid using microbiologically contaminated valves in patients submitted to cardiovascular surgery.

Cardiac valves; homografts; allografts


ARTIGO ORIGINAL

Controle microbiológico em valvas cardíacas humanas

Angela Maria Peruzzo; Francisco Diniz Affonso da Costa; Wanda Moscalewski Abrahão

Cardioprótese - Ind. e Com. de Produtos para Saúde, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Universidade Federal do Paraná – Passo Fundo, RS

Correspondência Correspondência: Angela Maria Peruzzo Rua Bom Pastor, 485 – Sobrado 25 81720-310 – Curitiba, PR E-mail: angelamariaperuzzo@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar, sob o aspecto microbiológico, valvas processadas pelo Banco de Valvas Cardíacas Humanas da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, para serem utilizadas em cirurgias cardiovasculares.

MÉTODOS: Foi avaliado o processamento de 1.671 valvas, no período de junho de 1999 a junho de 2004. Das valvas e soluções envolvidas no processo foram coletadas amostras e semeadas nos meios de cultura: meio líquido tioglicolato, caldo soja tripticaseína e caldo Sabouraud, com quatorze dias de incubação, utilizando a metodologia modificada baseada na Farmacopéia Brasileira 1998 e USP 1990 (United States Pharmacopeia). Nas amostras que apresentaram crescimento foram realizadas as identificações microbianas.

RESULTADOS: Em um total de 1.671 amostras analisadas, 92% foram consideradas próprias para utilização, sob o aspecto microbiológico, uma vez que não apresentaram contaminação microbiana. Somente 8% não foram liberadas para uso clínico por motivo de contaminação em alguma etapa do processamento da valva.

CONCLUSÃO: Analisando os resultados, observou-se a importância do controle microbiológico em enxertos humanos, evitando a utilização de valvas com contaminação microbiológica em pacientes submetidos à cirurgia cardiovascular.

Palavras-chave: Valvas cardíacas, homoenxertos, aloenxertos

A preocupação com a qualidade de maneira em geral tem sido uma constante para o ser humano. Quando essa qualidade está relacionada a produtos para saúde, envolve cuidados e conhecimentos ainda maiores, principalmente em se tratando de materiais invasivos como os aloenxertos.

O primeiro relato da utilização de aloenxerto data de 1948, quando tecido humano obtido de cadáver foi implantado por Gross et al., que utilizaram segmentos arteriais1,2.

A primeira implantação de valva humana na posição aórtica ocorreu em 24 de julho de 1962, realizada pelo Dr. Donald Ross, em Londres, no Hospital Guys3.

Com a finalidade de garantir a qualidade dos tecidos processados e o controle de sua distribuição foi fundada, em 1976, a Associação Americana dos Bancos de Tecidos4.

No Brasil, a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba – Hospital de Caridade dispõe de um o Banco de Valvas Cardíacas Humanas que recebe os tecidos das Centrais de Transplantes, as quais detêm o controle da captação e utilização das valvas em todo o território nacional. Esse Banco está cadastrado no Ministério da Saúde de acordo as determinações da Portaria n.333/GM, de 24 de março de 20005.

Visando oferecer aos pacientes um substituto valvar com qualidade, o Banco de Valvas processa e estoca valvas humanas obtidas de doadores saudáveis, seguindo a metodologia preconizada pelo Manual de Qualidade do Banco de Valvas Cardíacas Humanas da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba.

O controle microbiológico foi realizado em todas as etapas do processamento para quantificar e qualificar os microrganismos encontrados durante o manuseio das valvas, selecionando aquelas que se apresentam isentas de contaminação.

O objetivo do trabalho foi relatar os resultados microbiológicos encontrados na solução transporte até a criopreservação de cada valva, no período de julho de 1999 a julho de 2004.

Métodos

O controle microbiológico foi realizado durante o processamento de 1.671 valvas removidas de corações de doadores sadios.

Após a coleta (feita por equipe médica, de acordo com procedimentos pré-estabelecidos), cada coração foi submerso em solução fisiológica (solução transporte = ST) e enviado ao Banco de Valvas Cardíacas Humanas da Santa Casa (BHSC) entre 2 e 8ºC.

O processamento das valvas seguiu instruções do protocolo do Banco de Valvas Cardíacas Humanas da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba e foi realizado em fluxo laminar classe 100. Para inoculação das amostras foram preparados três diferentes meios de cultura (utilizando a metodologia modificada baseada na Farmacopéia Brasileira 1988 e da United States Pharmacopeia 19906,7): meio líquido de Tioglicolato visando ao crescimento de bactérias aeróbias e anaeróbias; caldo Soja Tripticaseína (TSB), para o crescimento de bactérias aeróbias; e caldo Sabouraud, para o crescimento de fungos6-9.

As amostras foram coletadas nas seguintes etapas:

Etapa 1 – Preparo da solução para esterilização (SE): constituída de 400 ml de RPMI (Gibco) e antibióticos (cefoxitina: 240 µg/ml, lincomicina: 120 µg/ml, polimixina B: 100 µg/ml e vancomicina: 50 µg/ml). Após o preparo da solução foram retirados 3 ml da solução e foi semeado 1 ml em cada 5 ml dos diferentes meios de cultura. Depois de preparada a solução foi deixada em geladeira até o momento o uso. RPMI: Roswell Park Memorial Institute10.

Etapa 2 – Inoculação da solução transporte: antes da dissecção, foram retirados assepticamente 3 ml da solução transporte e foi semeado 1 ml em cada um dos meios de cultura. Em seguida foi feita a dissecção da valva. Após a dissecção, foram retirados três fragmentos (amostras) do músculo e da parede de cada valva, com aproximadamente 0,5 cm x 0,5 cm cada. Em seguida, cada valva e seus respectivos fragmentos foram colocados separadamente em recipientes contendo 200 ml da SE (previamente preparada na Etapa 1), permanecendo entre 2 e 8ºC durante 24 horas.

Etapa 3 – Transcorridas as 24 horas as valvas foram congeladas, mas, antes, foi preparada a solução para congelamento (SC), constituída de 200 ml de RPMI + 25 ml de DMSO (dimetilsulfóxido - MercK) e 25 ml de SFB (soro Fetal Bovino - Gibco). Foram retirados assepticamente 3 ml da SC e foi semeado 1 ml em cada um dos meios de cultura.

Etapa 4 – Inoculação das amostras sólidas (Etapa chamada de esterilização: E): as valvas e os fragmentos foram retirados da SE e lavados com solução fisiológica. Os fragmentos foram semeados nos diferentes meios de cultura (um pedaço do músculo e um pedaço da parede de cada valva para cada meio utilizado).

Etapa 5 – Inoculação da etapa do congelamento (C): em seguida, cada valva foi introduzida em uma bolsa, contendo 100 ml da SC (previamente preparada na Etapa 3). Após cada valva entrar em contato com a solução, antes de selar a bolsa foram retirados 3 ml da solução e foi semeado 1 ml em cada um dos meios de cultura. Os meios de cultura foram incubados por um período de quatorze dias, e os meios líquidos de Tioglicolato e TSB permaneceram a uma temperatura de 35°C e o caldo Sabouraud em temperatura de 22°C6-9. Nas amostras positivas para os meios líquidos Tioglicolato e TSB foram realizados isolamentos em meios Mac Conkey9 (Gram-negativos) e Ágar Sangue9 de carneiro (Gram-positivos e negativos), as identificações foram através de automação no microScan Walk Away 40 – Dade Behring. Para amostras positivas em caldo Sabouraud os isolamentos foram feitos em Ágar Sabouraud9 e as identificações manuais, através de tubos germinativos e microscopia.

Resultados

Em um total de 1.671 amostras analisadas, 1.535 (92%) foram consideradas adequadas e 136 (8%) inadequadas sob o aspecto microbiológico (fig.1).


Foram consideradas amostras adequadas aquelas que não apresentaram crescimento microbiano nas diferentes etapas, bem como ausência de crescimento após a etapa de esterilização para amostras com ST positivo.

As amostras consideradas inadequadas, portanto, foram aquelas que apresentaram crescimento microbiano em uma ou mais etapas após a etapa de esterilização.

Nas 1.535 amostras adequadas, 1.266 apresentaram resultado negativo em todas as etapas e 269 tiveram apenas a solução transporte positiva, apresentando um resultado negativo após a esterilização (fig.1).

Nas 136 amostras inadequadas, as etapas com resultados positivos foram (fig.1): solução transporte (ST): 87; solução para esterilização (SE): 4; solução para congelamento (SC): 17; etapa da esterilização (E): 78; etapa do congelamento (C): 79.

Os microrganismos mais freqüentes encontrados em cada etapa foram:

  • Solução para esterilização:

    Rhodotorula sp. (4) (

    gráfico 1).

  • Solução para congelamento:

    Bacillus difteróides (3) e

    Acinetobacter lwoffi (3) (

    gráfico 1).

  • Etapa de congelamento:

    Staphylococcus aureus (16), Estafilococco com coagulase negativa (11),

    Pseudomonas sp (9) e

    Candida albicans (8) (

    gráfico 1).

  • Etapa de esterilização:

    Candida albicans (11),

    Pseudomonas sp (10),

    Escherichia coli (8) e

    Staphylococcus epidermidis (8) (

    gráfico 1).


Somando as 269 amostras positivas da solução transporte nas análises adequadas e as 87 nas análises inadequadas, obteve-se um total de 356 ST positivas, e os microorganismos mais freqüentes foram: Staphylococcus aureus (50) Staphylococcus epidermidis (45), Estafilococo com coagulase negativa (44) (gráfico 2).


Discussão

De acordo com os resultados obtidos, pode-se considerar eficaz a metodologia utilizada no processamento das valvas, na qual 1.266 amostras foram negativas em todas as etapas (da captação do órgão até o congelamento da valva), indicando assepsia e boas práticas no procedimento11.

Entre as 356 amostras de ST positivas, apenas 269 foram consideradas aptas para uso clínico sob o aspecto microbiológico, pois apresentaram resultados negativos nas etapas subseqüentes após a etapa de esterilização, mostrando a eficiência da solução esterilizante.

A solução transporte positiva pode indicar a contaminação do órgão propriamente dito, contaminação na sua retirada, na manipulação durante o procedimento ou na coleta da amostra. Entretanto, não se pode afirmar onde realmente ocorreu a contaminação.

Se a ST for positiva para o gênero Bacillus ou Clostridium, a valva é considerada inadequada para uso, mesmo que nas demais etapas apresente resultados negativos após a esterilização, por se tratar de bactérias esporuladas dificultando a ação dos antibióticos.

Segundo o protocolo do Banco de Valvas, qualquer amostra positiva após a esterilização é considerada inadequada para uso clínico do ponto de vista microbiológico, independentemente do microorganismo identificado, pois mostra que não ocorreu a esterilização da valva.

Em alguns casos é esperada a presença de bactérias e fungos após a Etapa de esterilização, em razão da baixa concentração de antibióticos e da não-utilização de antifúngico12, pela sua toxicidade celular.

Utilizando os mesmos antibióticos uma instituição internacional apresentou resultados semelhantes (Rebeyka IM. Policy and Procedure Manual. Hospital for Sick Children Cryopreservation Laboratory. Toronto; 1992; Ap H), mostrando a eficácia da solução esterilizante em ambos os serviços, com a diminuição da contaminação após a etapa de esterilização e o eventual crescimento de fungos na solução esterilizante e na etapa da esterilização, uma vez que não se utilizou antifúngico em nenhum dos procedimentos, revelando assim a reprodutividade do método (tab.1).

Finalmente, pode-se dizer que o método utilizado para o controle microbiológico no processamento de valvas, até o momento, mostra-se eficaz e reprodutivo, proporcionando a pacientes submetidos a cirurgia cardiovascular um substituto isento de contaminação microbiana.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Artigo recebido em 04/08/05; revisado recebido em 14/10/05; aceito em 28/10/05.

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  • Correspondência:
    Angela Maria Peruzzo
    Rua Bom Pastor, 485 – Sobrado 25
    81720-310 – Curitiba, PR
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      28 Out 2005
    • Recebido
      04 Ago 2005
    • Revisado
      14 Out 2005
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