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Desafios técnicos e complicações da dupla substituição valvar na presença de anéis aórtico e mitral pequenos

Resumos

Mulher de 57 anos portadora de cardiopatia reumática com comprometimento das valvas aórtica e mitral foi submetida a uma substituição mitro-aórtica. A presença de anéis aórtico e mitral pequenos contribuiu para uma série de complicações intra-operatórias, como oclusão do óstio coronariano esquerdo e dissociação atrioventricular do tipo III. O sulco foi reparado com generoso enxerto autólogo pericárdico fresco de camada dupla sobreposto por uma prótese mecânica de duplo folheto. No pós-operatório, a paciente desenvolveu insuficiência respiratória prolongada, pneumonia, disfunção miocárdica temporária e insuficiência renal aguda. No final, ela recebeu alta sem problemas residuais.

Ventrículos cardíacos; disfunção ventricular esquerda; doenças das valvas cardíacas


A 57 year old female with rheumatic heart disease affecting both aortic and mitral valves underwent double valve replacement. The presence of small aortic and mitral annuli contributed to a series of intraoperative complications: left coronary ostium occlusion and type III atrioventricular groove disruption. The latter was repaired with a generous fresh autologous pericardial double layer patch and implant of a bileaflet mechanical prosthesis over the patch. Postoperatively, the patient developed prolonged respiratory insufficiency and pneumonia, transient myocardial dysfunction and acute renal failure. She was eventually discharged home without residual defects.


RELATO DE CASO

Desafios técnicos e complicações da dupla substituição valvar na presença de anéis aórtico e mitral pequenos

Fernando A. Atik; Gosta B. Pettersson; A. Marc Gillinov; Bruce W. Lytle

The Cleveland Clinic Foundation - Cleveland, Ohio, EUA

Correspondência Correspondência: Fernando A. Atik 9500 Euclid Avenue / H35 Cleveland, Ohio, 44195 – USA E-mail: atikf@ccf.org

RESUMO

Mulher de 57 anos portadora de cardiopatia reumática com comprometimento das valvas aórtica e mitral foi submetida a uma substituição mitro-aórtica. A presença de anéis aórtico e mitral pequenos contribuiu para uma série de complicações intra-operatórias, como oclusão do óstio coronariano esquerdo e dissociação atrioventricular do tipo III. O sulco foi reparado com generoso enxerto autólogo pericárdico fresco de camada dupla sobreposto por uma prótese mecânica de duplo folheto. No pós-operatório, a paciente desenvolveu insuficiência respiratória prolongada, pneumonia, disfunção miocárdica temporária e insuficiência renal aguda. No final, ela recebeu alta sem problemas residuais.

Palavras-chave: Ventrículos cardíacos, disfunção ventricular esquerda, doenças das valvas cardíacas.

A combinação de anéis aórtico e mitral pequenos representa um desafio técnico em caso de necessidade de dupla substituição valvar1. As considerações sobre seleção da prótese valvar abrangem o orifício efetivo da prótese implantada, os diâmetros nativos do anel e da via de saída do ventrículo esquerdo, a superfície corporal, e a idade e o nível de atividade física do paciente. Esses são importantes elementos que devem ser levados em consideração para evitar o uso de uma prótese desproporcional ao paciente e suas conhecidas conseqüências clínicas2,3.

Neste sentido, o limitado espaço disponível para o implante de duas próteses valvares esquerdas exige boa estratégia cirúrgica e cuidadosa proteção miocárdica. Relatamos aqui um caso em que anéis aórtico e mitral de dimensões reduzidas contribuíram para uma série de complicações na dupla substituição valvar.

Relato do Caso

Mulher de 57 anos, com história de febre reumática apresentou-se com falta de ar mediante esforço e edema periférico. O ecocardiograma pré-operatório revelou valva aórtica com três válvulas, com insuficiência aórtica 3+ e estenose aórtica leve; insuficiência mitral 3+ devido ao arqueamento da cúspide anterior e estenose mitral leve (área valvar 1,8 cm2); e insuficiência tricúspide 3+ com pressão sistólica ventricular direita de 41 mmHg. A função ventricular esquerda estava preservada, com fração de ejeção de 60%, diâmetro diastólico final do ventrículo esquerdo de 4,5 cm, e diâmetro sistólico final do ventrículo esquerdo de 2,4 cm; o diâmetro do átrio esquerdo era de 3,7 cm.

A cirurgia foi realizada para tratar a cardiopatia reumática sintomática que afetava as valvas aórtica e mitral, a insuficiência tricúspide funcional e a doença uniarterial que comprometia a artéria coronária direita, detectada incidentalmente na coronariografia.

Após administração de heparina, foi instituída circulação extracorpórea através de canulação da aorta e de duas veias cavas. A proteção miocárdica foi feita por meio de leve hipotermia sistêmica e cardioplegia sangüínea fria intermitente anterógrada e retrógrada. O acesso à mitral foi obtido através de uma incisão transeptal estendida ao teto do átrio esquerdo.

Inicialmente, a cirurgia consistiu de substituição da valva mitral por prótese biológica de pericárdio bovino Carpentier-Edwards de 25 mm (Edwards Lifesciences, Irvine, CA), substituição da valva aórtica por prótese Carpentier-Edwards Magna de 19 mm (Edwards Lifesciences, Irvine, CA), reparo da valva tricúspide com um anel MC3 de 26 mm (Edwards Lifesciences, Irvine, CA) e revascularização miocárdica com enxerto de veia safena invertida para a artéria coronária direita. Tanto a valva mitral quanto a valva aórtica apresentavam aspecto reumático, folhetos espessados e fusão das comissuras. O mecanismo de insuficiência mitral era restrição da cúspide posterior relacionada com calcificação e fusão entre as cordas tendíneas primárias e secundárias e o músculo papilar póstero-medial. A válvula não-coronariana da valva aórtica tinha uma perfuração rente à comissura com a válvula coronariana esquerda. Tendo em vista a gravidade do processo patológico valvar, a única estratégia possível era a dupla substituição valvar.

Os anéis aórtico e mitral eram pequenos e pouco maleáveis por causa da calcificação anelar. Foi necessária a remoção das cúspides anterior e posterior com a as cordas tendíneas correspondentes, seguida por desbridamento da área calcificada, para o implante de uma bioprótese mitral de 25 mm. A reduzida base da aorta dificultou o implante de uma bioprótese de 19 mm. Após a substituição da valva aórtica, a inspeção do óstio coronariano esquerdo revelou uma possível obstrução pela prótese. Essa suspeita foi confirmada após o desclampeamento da aorta. Embora o coração começasse a ejetar, o ecocardiograma intra-operatório demonstrou claramente a existência de déficit de contração segmentar na distribuição das artérias interventricular anterior esquerda e circunflexa, apesar da presença de certo fluxo para o tronco da artéria coronária esquerda. Tomou-se a decisão de revascularizar ambas as artérias com dois segmentos invertidos de veia safena. O procedimento foi realizado com parada cardioplégica e delicada retração do coração, por causa da presença da bioprótese mitral. O desmame da circulação extracorpórea exigiu a administração de baixa dose de inotrópico, com normalização da contração ventricular.

Após 20 minutos, ocorreu hemorragia maciça de origem posterior, exigindo nova instituição de circulação extracorpórea em caráter de emergência. Efetuada a parada cardíaca cardioplégica, o septo interatrial foi reaberto, encontrando a dissociação atrioventricular do tipo III, que se estendia de um ponto imediatamente lateral à base do músculo papilar ântero-lateral, em sentido oblíquo para a direita, até as proximidades do anel mitral na posição de cinco horas. A bioprótese foi retirada e a atenção foi direcionada para a ruptura do ventrículo esquerdo. O reparo consistiu de um generoso enxerto de pericárdio autólogo fresco de camada dupla. O enxerto foi afixado ao endocárdio ventricular profundamente na laceração com suturas interrompidas de polipropileno 3-0 sobre lâminas de teflon e ao átrio esquerdo com suturas contínuas. Uma prótese mecânica de duplo folheto de 25 mm foi implantada sobre o anel reconstruído por meio de suturas através do enxerto pericárdico e do anel mitral. A recuperação miocárdica exigiu tempo prolongado de reperfusão, uso de inotrópicos em doses elevadas e introdução de balão intra-aórtico. A hemorragia diminuiu, mas em virtude do desenvolvimento de coagulopatia o tórax foi mantido aberto.

O tórax foi fechado no terceiro dia do pós-operatório, o balão intra-aórtico foi removido no quarto dia e a administração de inotrópicos foi suspensa no sexto dia. A paciente apresentou insuficiência respiratória prolongada e pneumonia, sendo necessária traqueostomia. O desenvolvimento de insuficiência renal aguda exigiu a realização de diálise durante alguns dias. Cerca de um mês após a cirurgia a paciente recebeu alta em boas condições clínicas e sem apresentar problemas residuais, com a cânula de traqueostomia removida.

Comentários

Esse relato ilustra os diversos aspectos cirúrgicos que podem complicar o curso operatório de pacientes que necessitam substituição mitro-aórtica mas têm anéis pequenos. É necessária a identificação precoce de possíveis complicações, seguida de pronta intervenção.

As modernas próteses valvares de alto desempenho têm anéis de fixação menores, influenciando o implante cirúrgico na redução da flexibilidade da prótese. A inserção de uma prótese de tamanho apropriado na posição mitral pode deformar o anel aórtico e reduzir a sua capacidade de se adaptar ao formato da prótese aórtica. Quando os anéis são pequenos, o uso de biopróteses, que são mais flexíveis que as próteses mecânicas, e a preservação de uma quantidade maior de fibrosa intervalvar entre as duas próteses podem facilitar a dupla substituição valvar. Entretanto, a nossa paciente tinha um anel mitral tão pequeno que até mesmo uma prótese de 25 mm de diâmetro foi implantada com dificuldade. Em seguida, houve uma série de complicações. A oclusão aguda do óstio coronariano esquerdo foi conseqüência de um espaço muito limitado para o implante de uma prótese de 19 mm; o anel pequeno, combinado com a presença de uma prótese mitral, fez com que a parte posterior da prótese aórtica se inclinasse para cima, comprometendo o óstio coronariano esquerdo.

Por fim, a dissociação atrioventricular do tipo III foi multifatorial, provavelmente causada pela remoção completa do aparelho subvalvar mitral, manipulação do coração durante a revascularização miocárdica, tamanho excessivo da prótese e uso de bioprótese, cuja estrutura tem uma haste na posição de 6 horas. Essa complicação é perigosíssima e está associada a uma taxa de mortalidade elevada, complicada pelo tempo prolongado de circulação extracorpórea. A correção foi realizada com sucesso com a utilização de farto enxerto pericárdico autólogo e reconstrução do sulco atrioventricular a partir do endocárdio4. O enxerto deve ser generoso e não exercer tensão, revestindo delicadamente o endocárdio e a ruptura. Na substituição da valva mitral, utilizamos uma prótese mecânica para evitar o contato entre a haste e o enxerto endocárdico. Efetuamos o tamponamento da região posterior do mediastino durante 24 horas antes do fechamento do tórax, para sustentar e fixar o reparo. Alguns grupos preconizam a realização de reparo cardíaco ex-vivo ou auto-transplante como opção5, um bom indicador do nível de desespero gerado por essa complicação.

A ampliação dos anéis aórtico e mitral, seguida por reconstrução da fibrosa intervalvar com enxerto, evitaria esse problema6. Entretanto, essa cirurgia é tecnicamente difícil e exige exposição perfeita, excelente conhecimento da anatomia cirúrgica e considerações geométricas relacionadas à justaposição da prótese mitral com a via de saída do ventrículo esquerdo. A exposição é feita por meio de uma abordagem transeptal estendida ou secção da veia cava superior para estender a atriotomia até a teto atrial esquerdo. É preciso tomar o cuidado de não usar uma prótese mitral grande com essa abordagem. Além disso, a aproximação das áreas de transição (anel da prótese mitral, enxerto e trígono fibroso) deve ser perfeita, para evitar escape perivalvar, hemólise e sangramento. Podem ser empregadas próteses mecânica ou biológica, com resultados semelhantes7. O risco cirúrgico e os resultados a médio-prazo relatados com o emprego dessa técnica por grupos experientes são aceitáveis8. O implante anatômico de homoenxerto ou prótese aórtica sem suporte (stentless) sobre uma prótese mitral de tamanho aceitável constitui outra abordagem ao paciente com anéis pequenos.

Resumindo, a cirurgia de substituição mitro-aórtica em pacientes com anéis pequenos exige uma abordagem cuidadosa, por vezes incluindo ampliação e reconstrução da fibrosa intervalvar para evitar o emprego de uma prótese desproporcional ao paciente e a ocorrência de graves complicações.

Artigo recebido em 24/11/05; revisado recebido em 08/12/05; aceito em 08/12/05.

  • 1. Okuyama H, Hashimoto K, Kurosawa H, Tanaka K, Sakamoto Y, Shiratori K. Midterm results of the Manouguian double valve replacement: comparison with standard double valve replacement. J Thorac Cardiovasc Surg. 2005; 129: 869-74.
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  • 7. Fiore AC, Swartz M, Grunkemeir G, Dressler F, Peigh OS, McBride LR, et al. Valve replacement in the small aortic annulus: prospective randomized trial of St Jude with Medtronic Hall. Eur J Cardiothroac Surg. 1997; 11: 485-91.
  • 8. De Oliveira NC, David TE, Armstrong S, Ivanov J. Aortic and mitral valve replacement with reconstruction of the intervalvular fibrous body: an analysis of clinical outcomes. J Thorac Cardiovasc Surg. 2005; 129: 286-90.
  • Correspondência:

    Fernando A. Atik
    9500 Euclid Avenue / H35
    Cleveland, Ohio, 44195 – USA
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      08 Dez 2005
    • Recebido
      24 Nov 2005
    • Revisado
      08 Dez 2005
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