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Vasoespasmo coronariano induzido pela ecocardiografia sob estresse pela dobutamina-atropina

Resumos

Relatamos caso de mulher de 45 anos de idade, com antecedentes de hipertensão arterial sistêmica e tabagismo, submetida a ecocardiografia sob estresse pela dobutamina-atropina para investigação de doença arterial coronariana. No pico do estresse, a paciente apresentou dor precordial súbita e de forte intensidade. O eletrocardiograma de doze derivações revelou elevação do segmento ST nas derivações DII, DIII, aVF, V5 e V6 e depressão do segmento ST nas derivações DI, aVL, V2 e V3. Pela monitoração das imagens ecocardiográficas foi observado aparecimento de discinesia do septo inferior e acinesia da parede inferior do ventrículo esquerdo. O exame foi interrompido imediatamente, a paciente foi medicada e evoluiu com melhora da dor precordial e das alterações de motilidade segmentar. A angiografia coronariana revelou lesões coronarianas irregulares com menos de 50% de obstrução do diâmetro luminal. Trata-se de um caso de vasoespasmo coronariano induzido por estimulação alfa-adrenérgica durante a ecocardiografia sob estresse pela dobutamina-atropina.

Ecocardiografia sob estresse; vasoespasmo; doença arterial coronariana; dobutamina


This is the report on a 45-year-old female, with a history of systemic arterial hypertension and cigarette smoking, submitted to dobutamine-atropine stress echocardiography for the investigation of coronary artery disease. At stress peak, the patient reported sudden, highly intense precordial pain. The 12-lead electrocardiogram showed ST segment elevation in DII, DIII, aVF, V5 and V6, and depression in DI, aVL, V2 and V3. Echocardiographic imaging monitoring showed dyskinesia of inferior septum and akinesia of inferior wall. The test was interrupted immediately. The patient was medicated and improved her precordial pain condition as well as wall motion abnormalities. Coronary angiography showed irregular coronary lesions with <50% luminal diameter obstruction. It is a case of coronary spasm induced by alpha-adrenergic stimulation during dobutamine-atropine stress echocardiography.


RELATO DE CASO

Vasoespasmo coronariano induzido pela ecocardiografia sob estresse pela dobutamina-atropina

Fábio A. Bogaz; Ally N. R. Saroute; Jeane Mike Tsutsui; Ingrid Kowatsch; Francisco M. O. Neto; José C. Nicolau; José A. F. Ramires; Wilson Mathias Junior

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Jeane Mike Tsutsui Rua Harmonia, 539/74B 05435-000 – São Paulo, SP E-mail: jeane.tsutsui@incor.usp.br

RESUMO

Relatamos caso de mulher de 45 anos de idade, com antecedentes de hipertensão arterial sistêmica e tabagismo, submetida a ecocardiografia sob estresse pela dobutamina-atropina para investigação de doença arterial coronariana. No pico do estresse, a paciente apresentou dor precordial súbita e de forte intensidade. O eletrocardiograma de doze derivações revelou elevação do segmento ST nas derivações DII, DIII, aVF, V5 e V6 e depressão do segmento ST nas derivações DI, aVL, V2 e V3. Pela monitoração das imagens ecocardiográficas foi observado aparecimento de discinesia do septo inferior e acinesia da parede inferior do ventrículo esquerdo. O exame foi interrompido imediatamente, a paciente foi medicada e evoluiu com melhora da dor precordial e das alterações de motilidade segmentar. A angiografia coronariana revelou lesões coronarianas irregulares com menos de 50% de obstrução do diâmetro luminal. Trata-se de um caso de vasoespasmo coronariano induzido por estimulação alfa-adrenérgica durante a ecocardiografia sob estresse pela dobutamina-atropina.

Palavras-chave: Ecocardiografia sob estresse, vasoespasmo, doença arterial coronariana, dobutamina.

A ecocardiografia sob estresse pela dobutamina (EED) é um método amplamente empregado para avaliação de pacientes com doença coronariana suspeita ou conhecida, tendo seu perfil de segurança já estabelecido em estudos envolvendo grande número de pacientes1,2. A dobutamina é uma catecolamina com meia-vida de dois a três minutos, que apresenta boa tolerância e, pelo seu efeito inotrópico e cronotrópico positivo, causa aumento do consumo de oxigênio pelo miocárdio. A avaliação de isquemia miocárdica baseia-se na detecção de redução do espessamento sistólico miocárdico pela ecocardiografia bidimensional, induzida pelo desbalanço entre a demanda e a oferta de oxigênio, durante o estresse. A presença de elevação do segmento ST no eletrocardiograma de doze derivações, associada a alterações transitórias da motilidade segmentar, quase sempre traduz obstrução coronariana grave, sendo um evento incomum durante a EED. Entretanto, o aumento da força de cisalhamento pode levar a espasmo coronariano mesmo em pacientes sem obstruções coronarianas significativas.

Relato do Caso

Paciente do sexo feminino com 45 anos de idade, apresentando antecedentes de hipertensão arterial sistêmica e tabagismo, foi submetida a EED para pesquisa de doença arterial coronariana. A paciente relatava história de um episódio de angina instável há dois anos. Na época, foi submetida a cintilografia de perfusão miocárdica que demonstrou defeito de perfusão sugestivo de isquemia nas paredes inferior e lateral do ventrículo esquerdo. A angiografia coronariana, realizada há dois anos, revelou irregularidades nas artérias coronárias. A função ventricular esquerda era normal pela ventriculografia. Um ano após esse episódio anginoso, a paciente foi submetida a uma nova cintilografia de perfusão miocárdica que mostrou ausência de defeitos de perfusão.

Vinte dias depois, a paciente voltou a apresentar dor precordial em aperto, de discreta intensidade, que se irradiava para membro superior direito, e não apresentava relação com esforços físicos. A dor precordial geralmente ocorria no período da manhã, tinha curta duração e melhorava com uso de nitrato sublingual. A paciente procurou atendimento ambulatorial, recebeu medicação para tratamento de insuficiência coronariana (ácido acetilsalicílico e betabloqueador), e foi encaminhada para realização de ecocardiografia sob estresse farmacológico para investigação do quadro anginoso. A paciente não apresentava dor precordial nas 48 horas precedentes ao teste sob estresse.

O eletrocardiograma em doze derivações (ECG) realizado em estado basal não apresentava alterações (fig. 1A) e o ecocardiograma em repouso evidenciou cavidades cardíacas de tamanho normal, função sistólica global e segmentar sem alterações, e presença de valva aórtica espessada, com dupla disfunção de grau discreto. Foi realizada ecocardiografia sob estresse pela dobutamina-atropina, seguindo o protocolo da nossa instituição. A infusão endovenosa de dobutamina foi iniciada na dose de 5 µg/kg/min, e aumentada para 10, 20 e 30 µg/kg/min a cada três minutos. A administração de atropina (0,25 mg a cada minuto) foi iniciada na dose de 20 µg/kg/min. A paciente permaneceu assintomática, sem alterações eletrocardiográficas ou da motilidade segmentar ventricular esquerda até a freqüência cardíaca de 148 batimentos por minuto (85% da freqüência cardíaca máxima, calculada como 220 menos a idade em anos). Ao atingir a freqüência cardíaca de 159 batimentos por minuto (91% da freqüência cardíaca máxima), com 30 µg/kg/min de dobutamina e 1,25 mg de atropina, a paciente apresentou quadro de dor precordial súbita e de forte intensidade. O ECG demonstrou presença de elevação do segmento ST nas derivações DII, DIII, aVF, V5 e V6, e depressão do segmento ST nas derivações DI, aVL, V2 e V3 (fig. 1B). Nesse momento, a pressão arterial, aferida no membro superior direito, era 120 x 70 mmHg. O ecocardiograma revelou acinesia da parede inferior e segmento basal do septo anterior e discinesia dos segmentos médio e basal do septo inferior (fig. 2). A paciente apresentou extra-sístoles ventriculares, bigeminismo ventricular e períodos de taquicardia ventricular não-sustentada. A infusão da dobutamina foi interrompida e iniciou-se a administração endovenosa de 15 mg de metoprolol lentamente e 5 mg de nitrato sublingual.



A paciente evoluiu com melhora da dor precordial, porém manteve padrão de elevação do segmento ST no ECG por um período de dez minutos após a medicação. O segmento ST retornou para linha de base somente após vinte minutos da interrupção do estresse (fig. 1C). As alterações da motilidade segmentar do ventrículo esquerdo mantiveram-se por mais de trinta minutos, e a paciente foi então transferida para a Unidade Coronariana.

Foi realizada curva enzimática, que mostrou dosagem de troponina cardíaca I igual a 3,3 e menor que 0,7 ng/ml após oito e quatorze horas do quadro de dor precordial, respectivamente, e o valor normal de troponina cardíaca I na nossa instituição é < 2,0 ng/ml. Os respectivos valores de creatino-kinase fração mB (massa) foram 2,4 e < 0,7 ng/ml (valor normal < 4,0 ng/ml). No dia seguinte, a paciente foi submetida a angiografia coronariana que revelou artérias interventricular anterior, coronária direita, e artéria circunflexa com irregularidades. O primeiro ramo marginal da artéria circunflexa apresentava lesão ostial menor que 50% (fig. 3). Dois dias depois do teste sob estresse, foi realizado um ecocardiograma transtorácico que mostrou função global e segmentar do ventrículo normal. O uso de betabloqueador foi suspenso e foi introduzida terapêutica com antagonistas dos canais de cálcio e nitrato via oral. A paciente apresentou boa evolução clínica e recebeu alta hospitalar sem outras intercorrências.


Discussão

As alterações da motilidade segmentar do ventrículo esquerdo durante a EED podem ocorrer na ausência de alterações eletrocardiográficas ou, então, ser acompanhadas mais comumente por depressão do segmento ST. A elevação do segmento ST durante a EED é uma alteração eletrocardiográfica incomum, sendo explicada, na maioria das vezes, pelo fenômeno de vasoespasmo. Essa é uma causa importante de resultados falso-positivos da EED3. A interrupção do exame, associada à utilização de fármacos adequados, possibilita que o paciente não evolua para infarto do miocárdio, evento raro, mas que pode ocorrer após a EED4.

No teste ergométrico convencional, a elevação do segmento ST pode ocorrer em pacientes com infarto do miocárdio prévio, em razão do movimento discinético da parede infartada, ou ser secundário às lesões coronarianas críticas.

O primeiro relato de indução de espasmo coronariano durante a EED foi realizado por Cohen e cols.5, que descreveram o caso de um homem de 48 anos que cursou com elevação dos segmento ST ínfero-lateral e movimento discinético da parede inferior na dose de 40 µg/kg/min de dobutamina e 0,25mg de atropina. A angiografia coronariana subseqüente não mostrou lesões obstrutivas significativas. Da mesma forma, Deligonul e cols.6 relataram o caso de um homem de 35 anos, sem infarto prévio e com coronariopatia discreta à angiografia, que apresentou dor retroesternal no final do estágio de 40 µg/kg/min de dobutamina, associado a eletrocardiograma com elevação do segmento ST. A análise da motilidade miocárdica no momento da dor torácica ficou prejudicada pela inquietação do paciente. Shaheen e cols.7 descreveram um caso semelhante em um homem de 48 anos, que apresentou elevação do segmento ST no ECG acompanhado de dor torácica, seguido de fibrilação ventricular durante a EED. A presença de espasmo coronariano induzido pela dobutamina também foi confirmada por angiografia coronariana. Yamagishi e cols.8 relataram o caso de uma paciente que apresentou elevação do segmento ST durante infusão de 20 µg/kg/min de dobutamina, acompanhada de dor torácica. A angiografia confirmou ausência de lesões obstrutivas e documentou oclusão total do ramo distal da artéria circunflexa, causada por vasoespasmo coronariano.

A resposta vasoconstritora anormal em artérias de pequeno e médio calibre ocorre na presença de aterosclerose, e pode estar relacionada à disfunção endotelial9. A ação farmacodinâmica da dobutamina nas coronárias é a vasodilatação, que ocorre por estimulação dos receptores 2-adrenérgicos, na presença de endotélio vascular normofuncionante. Gordon e cols.9 demonstraram que os segmentos de artéria coronária com irregularidades parietais respondem ao exercício e acetilcolina com espasmo, indicando disfunção do endotélio local.

O caso aqui descrito é um exemplo de paciente que apresentava irregularidades nas artérias coronárias pela angiografia coronariana, sugestivas de aterosclerose, que evoluiu com espasmo induzido pela estimulação alfa-adrenérgica durante a EED. É de grande valia ressaltar a característica súbita da instalação do quadro anginoso, da elevação do segmento ST e da alteração da motilidade segmentar como peculiaridades do fenômeno de espasmo. Em pacientes com doença arterial coronariana obstrutiva importante, as alterações eletrocardiográficas e ecocardiográficas são decorrentes da diminuição da reserva coronariana. Essas alterações aparecem de forma progressiva, podendo ocorrer mesmo com baixas doses de dobutamina, e pioram com o aumento do consumo miocárdico de oxigênio. No caso que descrevemos, a paciente não apresentava estenose coronariana significativa e não tinha antecedente de infarto do miocárdio. Assim, o evento eletrocardiográfico e as alterações de motilidade segmentar do ventrículo esquerdo podem ser explicados por um fenômeno de espasmo coronariano.

Conclusão

Embora a EED seja um método seguro para avaliação de doença arterial coronariana suspeita ou conhecida, pacientes com lesões obstrutivas mínimas podem apresentar espasmo coronariano durante a EED em razão da estimulação alfa adrenérgica, resultando em quadro de dor precordial e alterações eletrocardiográficas significativas.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Artigo recebido em 27/11/05; revisado recebido em 08/12/05; aceito em 08/12/05.

  • 1. Picano E, Mathias Jr W, Pingitore A, Bigi R, Previtali M. Safety and tolerability of dobutamine-atropine stress echocardiography: a prospective, multicentre study. Echo Dobutamine International Cooperative Study Group. Lancet. 1994; 344: 1190-2.
  • 2. Mathias Jr W, Arruda A, Santos FC, et al. Safety of dobutamine-atropine stress echocardiography: A prospective experience of 4,033 consecutive studies. J Am Soc Echocardiogr. 1999; 12: 785-91.
  • 3. Varga A, Cortigiani L, Rossi PC, et al. Coronary vasospasm as a source of false positive results during dobutamine echocardiography. Cardiologia. 1999; 44: 907-12.
  • 4. Elhendy A, Ginete W, Shurmur S, Porter TR. Acute myocardial infarction after a negative dobutamine stress echocardiogram. Eur J Echocardiogr. 2004; 5: 469-71.
  • 5. Cohen A, Chauvel C, Benhalima B, Blanchard B. Complication of dobutamine stress echocardiography. Lancet. 1995; 345: 201-2.
  • 6. Deligonul U, Armbruster R, Hailu A. Provocation of coronary spasm by dobutamine stress echocardiography in a patient with angiographically minimal coronary artery disease. Clin Cardiol. 1996; 19: 755-8.
  • 7. Shaheen J, Mendzelevski B, Tzivoni D. Dobutamine-induced ST segment elevation and ventricular fibrillation with nonsignificant coronary artery disease. Am Heart J. 1996; 132: 1058-60.
  • 8. Yamagishi H, Watanabe H, Toda I, et al. A case of dobutamine-induced coronary arterial spasm with ST-segment elevation. Jpn Circ J. 1998; 62: 150-1.
  • 9. Gordon JB, Ganz P, Nabel EG, et al. Atherosclerosis influences the vasomotor response of epicardial coronary arteries to exercise. J Clin Invest. 1989; 83: 1946-52.
  • Correspondência:

    Jeane Mike Tsutsui
    Rua Harmonia, 539/74B
    05435-000 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      08 Dez 2005
    • Revisado
      08 Dez 2005
    • Recebido
      27 Nov 2005
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