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O alongamento do intervalo QT na cardite reumática aguda: um enigma

PONTO DE VISTA

O alongamento do intervalo QT na cardite reumática aguda: um enigma

Lurildo R. Saraiva; Cleusa Lapa Santos; Inês Remígio de Aguiar

Universidade Federal de Pernambuco, Instituto Materno-Infantil Professor Fernando Figueira - Recife, PE

Correspondência Correspondência: Lurildo R. Saraiva Avenida Prof. Moraes Rego, SN Hospital das Clínicas – Cidade Universitária 50670-901 – Recife, PE E-mail: lurildocleano@hotmail.com

Palavras-chave: Febre reumática, miocardite, síndrome do QT longo, doenças das valvas cardíacas.

Na sua tese de Cátedra, "A sístole elétrica ventricular", de 1949, o Professor Luiz V. Décourt1, no momento em que contemplou a apreciação do intervalo QT na moléstia reumática, emitiu uma série de conclusões, após minuciosa análise do eletrocardiograma (ECG) de 60 casos de indivíduos portadores de reumatismo ativo, entre eles, 35 com cardite reumática "primitiva". Utilizando a fórmula de Bazett no cálculo do QT - Síndrome caracterizada pelo histórico de episódios de síncope e um intervalo QT longo, algumas vezes, levando a morte súbita, devido a arritmia ventricular paroxística - corrigido para a freqüência cardíaca (QTc), verificou que:

a) a duração da sístole elétrica ventricular não mostrou relação com a gravidade do quadro, entretanto - o que foi aceito por ele como outra verdade -, tendeu a aumentar sensivelmente durante a atividade do processo reumático, sendo o alongamento bastante nítido em pouco menos de 50% dos casos;

b) durante o evoluir do processo, a duração do intervalo QT pareceu acompanhar a persistência da atividade;

c) e, talvez o achado mais significativo, os valores médios do QTc nos reumáticos ativos ( = 0,424) foram significativamente mais elevados que os previstos para um grupo de pessoas normais, com a mesma distribuição por sexo e idade ( = 0,389, p < 0,05).

Neste trabalho original, publicado há tantos anos, o autor, talvez pela vez primeira na literatura, já vislumbrava a possibilidade de que os reumáticos pudessem ter uma peculiaridade própria de comportamento quanto à duração do intervalo QT – possivelmente uma tendência inata a este alongamento -, na presença do mecanismo imunitário, que viesse a desencadear a doença reumática aguda sobre o coração.

Um exemplo de tal comportamento podemos ver no ECG da figura 1, obtido de um menino de três anos de idade, portador de cardite reumática aguda, com insuficiência mitral importante e insuficiência cardíaca congestiva, que vimos há poucos anos. No traçado, onde há baixa voltagem do complexo QRS no plano frontal, bloqueio AV do primeiro grau (PRi = 180 ms) e sinais de sobrecarga atrial esquerda, percebe-se o QTc alongado (valor médio em D2 = 0,441, máximo para a idade e sexo, 0,4201) e, mais que isso, a ampliação desse alongamento após extra-sístoles, com ondas T esmaecidas. Valores tão elevados para o limite superior de normalidade do QTc, como 0,450, admitidos por autores ingleses2, não constituem, de modo algum, um fato consensual entre nós.


Se a cardite reumática pode induzir QTc alongado, pode também complicar-se por torsade des pointes (TdP) e evolução má. Esta possibilidade foi demonstrada por Liberman e cols.3, em 2001, em um adolescente de 13 anos, com valvopatia aguda mitro-aórtica severa, que veio a falecer após parada cardíaca e grave disfunção cerebral, encontrando-se, na intimidade do miocárdio - cuja função era deprimida, conforme estudo ecocardiográfico anterior - nódulos de Aschoff ativos. O ECG prévio ao episódio de TdP exibiu QTc de 0,570 e ondas T alternantes.

Novas aquisições na compreensão do alongamento do QTc na febre reumática aguda: estudos efetuados em Pernambuco

Alguns autores têm proposto a origem multifatorial do prolongamento do QT e TdP4. Assim, em um determinado indivíduo, um aumento do intervalo QT pode ser alcançado por múltiplos mecanismos que, em conjunto, alteram a capacidade ou a reserva da repolarização normal, com arritmias subseqüentes. Os mecanismos atuantes para o aumento anormal do QT podem estar relacionados a fatores genéticos, drogas e cardiopatias, como a insuficiência cardíaca e cardiomiopatias, ou mesmo a condições não-cardíacas, como hepatopatias, hemorragia cerebral e desnutrição intensa4,5. Desta forma, doentes que desenvolvem arritmias ventriculares relacionadas ao uso de drogas, por exemplo, como decorrência do prolongamento do potencial de ação, teriam o intervalo QTc basal discretamente prolongado, sobretudo os do sexo feminino4.

Muito embora arritmias ventriculares malignas pareçam raras na doença reumática aguda3,6, persistiriam verdadeiras as antigas observações de que os reumáticos agudos, independentemente da ocorrência de cardite, expressiva ou não, teriam propensão inata ao aumento do QT, quando comparados aos indivíduos normais? E, como corolário, como estaria a dispersão do QT (dQT) nessa população?

Trabalhos recentes realizados em Pernambuco trouxeram inestimável compreensão ao problema. A tese de Mestrado de Lapa Santos7 revelou, surpreendemente, alongamento do intervalo QTc em cerca de oito crianças com cardite subclínica, de um total de 27 com artrite/coréia, utilizando-se a tabela de Décourt para os valores de QTc, em ambos os sexos1, todas elas com valvite mitral e/ou aórtica. Vale dizer, não havia alongamento em todas as crianças estudadas, mas as que o tiveram, tinham também acometimento valvar subclínico. Entretanto, como a autora realçou, se não houve aumento cavitário no estudo ecodopplercardiográfico nesses doentes, se não foi detectado prolapso valvar mitral, se não ocorreu nenhuma evidência de miocardite, sequer mudanças na capacidade contrátil da víscera, a que se atribuiria tal alongamento do QTc? Teriam essas crianças uma evolução inadequada em relação às outras?

Outra surpresa adveio no momento em que foi comparada a média do QTc nos 27 doentes, com ou sem valvite, cujo valor foi 0,412, com a média de 26 crianças hígidas, de ambos os sexos, de mesma procedência e idade, cujo valor foi 0,390, havendo diferença altamente significativa (p < 0,01), visto que, no trabalho de Décourt, os valores correspondentes foram, respectivamente, 0,424 e de 0,383 (p < 0,05); mas é necessário convir que, à época, os traçados eletrocardiográficos mostravam limbos da onda T grosseiros, dificultando a perfeita análise do seu término.

Por outra, em trabalho precedente, a tese de Mestrado de Aguiar8, de 2004, outra singularidade foi também percebida: a dQT na cardite reumática aguda ( = 42,03 ms), comparada aos valores de um grupo de crianças normais ( = 25,55 ms), está aumentada de modo significativo (p < 0,0001). Ainda mais: valores para a dQT acima de 40 ms podem constituir, no nosso meio, um preditor da presença de cardite, habitualmente mais grave, com especificidade de cerca de 94%. Tão curiosa observação veio em resposta a uma questão que o mesmo Décourt levantara, há alguns anos, em comunicação pessoal: qual seria o comportamento da dQT na cardite reumática aguda, sobretudo naqueles enfermos que não mostrassem QTc longo? E no trabalho referido, cerca de 80% dos reumáticos tinham valores de QTc em faixa normal.

Há pouco, trabalho originário da Turquia9 também mostrou aumento da dQT na cardite reumática; assim, valores para a dQT acima de 55 ms teriam alta especificidade e menor sensibilidade em predizer a ocorrência de cardite, e se esse valor fosse igual ou maior que 65 ms, permitiria supor a ocorrência de valvopatia grave. Fundamentalmente, o achado reproduz o que vimos. Entretanto, o não afastamento de enfermos com insuficiência cardíaca congestiva poderia constituir um viés importante nos achados turcos. Muito embora Polat e cols.9 aceitem algum tipo de participação do miocárdio na gênese da dQT aumentada, o conceito de uma real miocardite reumática sofre profunda revisão atualmente10,11, muito embora vários trabalhos demonstrem um componente miocárdico na moléstia, como constitui exemplo a própria descrição de Liberman e cols3.

Se estamos diante de um fato científico, por qual motivo são habitualmente escassas as comunicações de arritmias malignas na cardite reumática aguda? É verdade que, em comunicado pessoal, Lapa Santos nos mostrou um caso rebelde à terapêutica convencional, com evolução inexorável do menor para extrassistolia ventricular freqüente, taquicardia ventricular e fibrilação ventricular, parecendo raros esses casos, como já foi admitido6. Seria esta escassez proveniente, de fato, da pouca expressividade clínico-ecocardiográfica da miocardite reumática, vez que a outra causa passível de especulação, arterite coronariana reumática, estaria quase extinta atualmente6? Não sabemos responder.

A propensão ao alongamento do QTc como um possível "marcador" dos indivíduos reumáticos agudos

Inúmeros estudos têm demonstrado a existência de marcadores imunitários para a doença reumática, a partir da observação original de Patarroyo e cols., em 1979, na Colômbia11,12,13. Os trabalhos de Swedo e cols.14 ampliaram o conceito da coréia reumática, outrora considerada benigna, agora, talvez, o extremo provável de um continuum sindrômico, que compreenderia distúrbios do "tique", incluindo a síndrome de Tourette, e reais distúrbios obsessivo-compulsivos, como uma possível conseqüência da infecção estreptocócica inicial da orofaringe. E Hounie e cols.15, em São Paulo, observaram que os reumáticos, mesmo afastados de surto agudo, apresentariam risco relativo oito vezes maior para distúrbios do espectro obsessivo-compulsivo, como se houvesse uma vulnerabilidade genética comum à febre reumática e a essas manifestações16.

Diante dos dados colhidos em Pernambuco, poderíamos admitir também um "estigma elétrico" nos reumáticos? É uma possibilidade real, indiscutivelmente. Daí ser pertinente a admoestação do grande mestre, em seu último livro17: "A queda atual da ocorrência da febre reumática [...] vem acarretando certa displicência dos médicos e até mesmo uma certa ignorância, no que diz respeito ao amparo dispensado por alguns deles aos enfermos. Um exemplo dessa displicência é representado pela avaliação incompleta do ECG na fase aguda da febre reumática, caracterizada pela não determinação evolutiva do intervalo QT. Este, em geral aumentado, evolui paralelamente com o estado do miocárdio".

Referências

1. Décourt LV. A sístole elétrica ventricular: métodos de apreciação, valores normais e desvios em estados patológicos. [tese de cátedra]. São Paulo: Faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo; 1949. 178 pp.

2. Dickinson DF. The normal ECG in childhood and adolescence. Heart. 2005; 91: 1626-30.

3. Liberman L, Hordof AJ, Alfayyadh M, Salafia CM. Torsade de pointes in a child with acute rheumatic fever. J Pediatr. 2001; 138: 280-2.

4. Schulze-Bahr E, Denjoy I, Haverkamp W, Breithardt G, Guicheney P. Genetic aspects in acquired long QT syndrome. In: Oto A, Breithardt G. (eds). Myocardial repolarization: from gene to bedside. Nova York: Futura PC; 2001. p. 333-41.

5. Aytemir K, Oto A. Evidence of repolarization abnormalities in various clinical conditions. In. Oto A, Breithardt G. (eds). Myocardial repolarization: from gene to bedside. Nova York: Futura PC; 2001. p. 365-82.

6. Krishnan SC, Kushwaha SS, Josephson ME. Electrocardiographic abnormalities and arrhythmias in patients with acute rheumatic fever. In: Narula J, Virmani R, Reddy KS, Tandon R. (eds). Rheumatic fever. Washington: American Registry of Pathology, 1999, Cap. 16, pp. 287-98.

7. Santos, CCL. Aspectos clínicos e ecodopplecardiográficos de uma série de crianças em primeiro surto de febre reumática sem sinais clínicos de cardite. [dissertação de mestrado]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2006. 80 pp.

8. Aguiar, MIR. Dispersão do intervalo QT na cardite reumática. [dissertação de mestrado]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2004. 49 pp.

9. Polat TB, Yalcin Y, Akdeniz C, Zeybek C, Erdem A, Celebi A. QT dispersion in acute rheumatic fever. Cardiol Young. 2006; 16: 141-6.

10. Essop MR, Wisenbaugh T, Sareli P. Evidence against a myocardial factor as the cause of left ventricular dilation in active rheumatic carditis. J Am Coll Cardiol. 1993; 22: 286-9.

11. Williams RV, Minich LL, Shaddy RE, Veasy G, Tani LY. Evidence for lack of myocardial injury in children with acute rheumatic carditis. Cardiol Young. 2002; 12: 519-23.

12. Patarroyo ME, Winchester RJ, Vejerano A, Gibofsky A, Chalem F, Zabriskie JB, et al. Association of a B cell alloantigen with susceptibility to rheumatic fever. Nature. 1979; 278: 173-4.

13. Guilherme L, Kalil J. Rheumatic fever: the T cell response leading to autoimmune aggression in the heart. Autoimmun Rev. 2002; 1: 261-6.

14. Swedo SE. Pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infections (PANDAS). Mol Psychiatry. 2002; 7: S24-S25.

15. Hounie, AG, Pauls DL, Mercadante MT, Rosario-Campos MC, Shavitt RG, Mathis MA, et al. Obsessive-compulsive spectrum disorders in rheumatic fever with and without Sydenham's chorea. J Clin Psychiatry. 2004; 65: 994-9.

16. Dale RC. Autoimmunity and the basal ganglia: new insights into old diseases. QJM. 2003; 96: 183-91.

17. Ramires JAF, Lemos PC. A didática humanista do Professor Luiz Venere Décourt. São Paulo: Atheneu, 2005, p.188.

Artigo recebido em 18/04/06; revisado recebido em 18/05/06; aceito em 18/05/06.

  • Correspondência:

    Lurildo R. Saraiva
    Avenida Prof. Moraes Rego, SN
    Hospital das Clínicas – Cidade Universitária
    50670-901 – Recife, PE
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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