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Paciente portadora de doença de von Willebrand submetida a cirurgia da valva mitral: uma estratégia para o controle da coagulopatia

Resumos

Relatamos o caso de uma mulher de 60 anos portadora da doença de von Willebrand tipo I, submetida a cirurgia da valva mitral. A paciente necessitou de cuidados especiais em razão da coagulopatia e foi necessária a utilização de concentrado de fator VIII (VIIIf) e fator de von Willebrand (vWf) antes, durante e depois da cirurgia. Não houve complicações durante e após a cirurgia. Nove meses depois, a paciente encontra-se assintomática. A correção para valores adequados de VIIIf e vWf permitiu a realização da cirurgia com segurança.

Doença de von Willebrand; valva mitral; coagulação intravascular disseminada


We report a case of a 60 year-old woman with von Willebrand disease type I that was submitted to a mitral valve repair. The patient needed special care due coagulopathy and needed VIII factor (VIIIf) and von Willebrand factor (vWf), before, during and after surgery. There was no complication during or after surgery. Patient is asymptomatic nine months postoperatively. The correction of VIIIf and vWf allowed the realization of a safety surgery.

Von Willebrand disease; mitral valve; disseminated intravascular coagulation


RELATO DE CASO

Paciente portadora de doença de von Willebrand submetida a cirurgia da valva mitral: uma estratégia para o controle da coagulopatia

Ally Nader Roquetti Saroute; Carlos Manuel de Almeida Brandão; Marco Antônio Vieira Guedes; Cyrillo Cavalheiro Filho; Pablo Maria Alberto Pomerantzeff

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Ally Nader Roquetti Saroute Rua Corinto, 488/43 05586-060 – São Paulo, SP E-mail: allymed91@hotmail.com

RESUMO

Relatamos o caso de uma mulher de 60 anos portadora da doença de von Willebrand tipo I, submetida a cirurgia da valva mitral. A paciente necessitou de cuidados especiais em razão da coagulopatia e foi necessária a utilização de concentrado de fator VIII (VIIIf) e fator de von Willebrand (vWf) antes, durante e depois da cirurgia. Não houve complicações durante e após a cirurgia. Nove meses depois, a paciente encontra-se assintomática. A correção para valores adequados de VIIIf e vWf permitiu a realização da cirurgia com segurança.

Palavras-chave: Doença de von Willebrand, valva mitral / cirurgia, coagulação intravascular disseminada.

O tratamento cirúrgico da valva mitral geralmente é realizado mediante desvio cardiopulmonar através da circulação extracorpórea (CEC). O contato do sangue com a superfície do material plástico das cânulas da CEC, bem como o estresse promovido pelo circuito de propulsão sangüíneo determinam alterações na coagulação e na hemólise.

As alterações de coagulação em razão de procedimento cirúrgico, associadas à disfunção plaquetária causada pela doença de von Willebrand tornam necessária a elaboração de uma estratégia para o perioperatório com o objetivo de evitar sangramentos excessivos nos pacientes submetidos a procedimento cirúrgico. Estudos recentes mostram que a infusão contínua de concentrado de VIIIf e vWf (8Y®) em pacientes com doença de von Willebrand tipo I é segura, e previne sangramentos importantes durante procedimentos cirúrgicos1.

O relato a seguir refere-se a uma paciente portadora da doença de von Willebrand do tipo I, que necessitou de tratamento cirúrgico da valva mitral, na qual foi utilizado concentrado de VIIIf e vWf como estratégia para o controle da coagulopatia.

Relato do Caso

Mulher de 60 anos, portadora da doença de von Willebrand tipo I e em tratamento clínico para a doença desde a infância, deu entrada em nosso serviço no dia 14 de janeiro de 2005 com história de dispnéia aos esforços habituais nos dois meses antecedentes. A paciente estava em uso de digoxina, 0,25 mg/dia, e furosemida 40 mg/dia.

A paciente era portadora do vírus da hepatite C e estava em tratamento com interferon. Apresentava história de febre reumática na infância, um episódio de endocardite bacteriana na valva mitral em 1998 e hipotireoidismo. Referia já ter tido sangramento gengival e epistaxe prévios.

Ao exame físico, encontrava-se em bom estado geral, corada, hidratada, acianótica, anictérica, afebril e eupnéica, pressão arterial de 130 x 80 mmHg, freqüência cardíaca de 72 bpm e 20 incursões respiratórias por minuto. O exame cardíaco revelou sopro sistólico 3+/6+ em foco mitral e sopro diastólico 1+/6+ em foco mitral.

Foi realizado um eletrocardiograma (ECG) cujo ritmo era sinusal com alterações sugestivas de sobrecarga de átrio esquerdo, sobrecarga do ventrículo esquerdo e alterações na repolarização ventricular. O ecocardiograma realizado no pré-operatório revelou espessamento da valva mitral, prolapso da cúspide posterior por ruptura de cordas tendíneas com insuficiência grave e ventrículo esquerdo com aumento discreto do diâmetro diastólico e função normal. A paciente foi submetida a uma cineangiocoronariografia que não revelou lesões coronarianas e confirmou o diagnóstico de insuficiência mitral grave, sendo indicado, então, o tratamento cirúrgico da valva mitral.

Em razão da deficiência de coagulação, a paciente necessitou de cuidados especiais nos pré, intra e pós-operatórios, pois a principal preocupação era o risco de sangramento significativo. A redução na quantidade de vWf em razão da doença de von Willebrand acarreta também diminuição na quantidade de VIIIf no sangue. Isso faz necessária a reposição adequada desses dois fatores visando à prevenção de sangramento e ao controle da coagulopatia.

Foi prescrito, então, um programa de reposição mediante concentrado de VIIIf e vWf. Para o pré-operatório, no dia anterior à cirurgia, administrou-se 50 UI/kg de concentrado de VIIIf e vWf via endovenosa (EV). No intra- operatório, foram administrados em bomba de infusão continua 3.500 UI (180 ml/h) de VIIIf. Após 12 horas do término da cirurgia foram administrados 20 UI/kg EV. Do primeiro ao quinto dias do pós-operatório foram administrados 50 UI/kg EV uma vez ao dia. Do sexto ao sétimo dias de pós-operatório foram administrados 30 UI/kg EV uma vez ao dia. E do nono até o décimo quinto dias de pós-operatório foram administrados 50 UI/kg uma vez ao dia em dias alternados. A quantidade total de concentrado administrada foi de 50.000 UI (100 frascos) conforme preconizado pelo UK Haemophilia Centre Doctors’ Organization2.

A indução anestésica se deu sem intercorrências, com a utilização dos agentes anestésicos de rotina. Realizou-se esternotomia mediana e com o auxílio da CEC o átrio esquerdo foi aberto e a valva mitral apresentada. O diagnóstico ecocardiográfico foi confirmado no intra-operatório, sendo evidenciada ruptura de três cordas tendíneas da cúspide posterior. Foi realizada plástica da valva mitral com a técnica de ressecção quadrangular da cúspide posterior e anuloplastia com duplo teflon com sutura borda a borda das cúspides, obtendo-se um bom resultado final3. Não houve intercorrência durante a cirurgia.

O tempo de CEC foi de 55 minutos; o tempo de pinçamento da aorta, de 44 minutos; e o tempo total da anestesia, de 5 horas e 45 minutos. Utilizou-se cardioplegia sangüínea St. Thomas. Administrou-se aprotinina EV na dose de 1 ml por 10 segundos sem reações de hipersensibilidade e, a seguir, 100 ml/h de aprotinina durante uma hora; e, após a cirurgia, 50 ml durante uma hora, perfazendo um total de 1.000.000 UI.

Coagulograma e hemograma foram realizados periodicamente a fim de se avaliar o estado de coagulação da paciente. O tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPA) antes da cirurgia era de 37 segundos e a paciente estava com plaquetopenia discreta (129.000 plaquetas). A estratégia adotada para estabelecer o equilíbrio no sistema de coagulação da paciente foi adequada e atingiu o objetivo de diminuir o TTPA para próximo do normal, que é de 28 segundos, durante o período perioperatório. O ecocardiograma realizado no pós-operatório mostrou que a valva mitral estava competente e as dimensões e a função do ventrículo esquerdo, normais. A ausculta cardíaca pós-operatória estava normal.

Não houve complicações no pós-operatório. A paciente obteve alta hospitalar no 9° dia do pós-operatório, em uso de concentrado de vWf e VIIIf, de acordo com o esquema anteriormente apresentado, Ypsilon® e furosemida. Após nove meses de seguimento, a paciente se encontra assintomática do ponto de vista cardiovascular, além de não apresentar nenhum episódio de sangramento no período.

Discussão

A doença de Von Willebrand é o distúrbio hemorrágico hereditário mais comum na população geral, com ocorrência de um em cada 100 a 500 indivíduos4. O fator de von Willebrand (vWf) é uma glicoproteína multimérica plasmática cujas principais funções são: facilitar adesão plaquetária ao endotélio vascular lesado, ligando-se à membrana da plaqueta, além de atuar como transportador e estabilizador do fator VIII no plasma. A redução na quantidade do vWf ou o funcionamento inadequado dessa proteína resulta em dificuldade de coagulação.

A doença de von Willebrand é classificada como quantitativa, tipo 1 e 3, onde há, respectivamente, diminuição ou ausência do vWf e em qualitativa, quando há funcionamento inadequado do vWf que caracteriza a doença do tipo 25. O tipo I é a forma branda da doença na qual o indivíduo pode apresentar sintomas clínicos geralmente brandos; contudo, o grau de manifestações hemorrágicas e sua magnitude podem variar entre os indivíduos, e a avaliação da necessidade de profilaxia, com o objetivo de evitar sangramento nos pacientes que serão submetidos a procedimentos cirúrgicos, depende da avaliação do estado de coagulação do paciente pelo hematologista. O tipo III é a forma grave da doença, onde, geralmente, não há produção de vWf; e pacientes portadores dessa forma da doença e que serão submetidos a procedimentos cirúrgicos necessitam sempre de profilaxia com o objetivo de evitar complicações hemorrágicas no intra e no pós-operatório2.

O médico deve suspeitar de doença de von Willebrand a partir da observação da ocorrência dos seguintes sinais: sintomas de sangramento como epistaxes, sangramento gengival, menorragia, sangramento após extração dentária, baixa atividade do cofator de ristocetina (VWF:RCo) e presença de história de sangramento na família, visto que essa é uma doença hereditária6.

São escassos na literatura os relatos de tratamento cirúrgico das valvopatias em pacientes portadores da doença de von Willebrand. É importante, entretanto, que o clínico e o cirurgião cardiovasculares estejam atentos na avaliação do paciente e no rastreamento de distúrbios da coagulação, a fim de evitar possíveis complicações cirúrgicas, bem como estejam familiarizados com as coagulopatias mais freqüentes. Komp e cols.7 e Aris e cols.8 demonstraram ser possível a realização de cirurgia cardíaca em pacientes com doença de von Willebrand, desde que seja realizada a correção dos níveis de VIIIf.

Pacientes portadores de outras coagulopatias, como os hemofílicos, também têm sido submetidos a cirurgia cardíaca com bons resultados. Tarasoutchi e cols.9 relataram operação bem-sucedida de paciente hemofílico com valvopatia mitral e aórtica de etiologia reumática, submetido a troca da valva aórtica e comissurotomia mitral, tendo sido utilizado esquema de reposição de VIIIf para o controle da coagulopatia no intra e no pós-operatório.

Há relatos na literatura de pacientes com estenose aórtica que desenvolveram doença de von Willebrand em razão de estresse causado no endotélio e reação inflamatória com diminuição dos níveis de vWf no plasma. Esse distúrbio mostrou-se reversível com a troca da valva10.

O conhecimento da fisiopatologia da doença de von Willebrand é de grande importância médica, visto que podem ocorrer complicações hemorrágicas em gestantes e em cirurgias de grande porte. Os portadores da doença de von Willebrand que serão submetidos a cirurgias de grande porte geralmente necessitam de terapia profilática com o objetivo de evitar complicações hemorrágicas2. O tratamento, quando indicado, pode ser realizado com a administração de desmopressina, concentrado de fator VIII e administração de plaquetas. A necessidade de cada intervenção citada anteriormente depende do tipo da doença, do estado de coagulação e da avaliação do hematologista que pode determinar qual a melhor terapêutica a ser adotada de acordo com as necessidades de cada paciente. Optou-se pela terapêutica de reposição profilática de concentrado de VIIIf e vWf em razão dos bons resultados presentes na literatura com a utilização dessa forma terapêutica.

Conclusão

A realização de plástica da valva mitral em paciente com doença de von Willebrand, submetida a um esquema de reposição de VIIIf e vWf no período perioperatório, foi bem-sucedida e sem complicações hemorrágicas. Concluímos que a estratégia utilizada foi efetiva no controle da coagulopatia e permitiu a realização da cirurgia sem complicações, podendo ser utilizada em outros pacientes com a mesma doença e que necessitem de procedimentos cirúrgicos.

Artigo recebido em 26/12/05; revisado recebido em 26/04/06; aceito em 12/06/06.

  • 1. Lubetsky A, Martinowitz U, Luboshitz J, Kenet G, Keller N, Tamarin I, et al. Efficacy and safety of a factor VIII-von Willebrand factor concentrate 8Y: stability, bacteriological safety, pharmacokinetic analysis and clinical experience. Haemophilia. 2002; 8: 622-8.
  • 2. Pasi KJ, Collins PW, Keeling DM, Brown SA, Cumming AM, Dolan GC, et al. Management of von Willebrand disease: a guideline from the UK Haemophilia Centre Doctors Organization. Haemophilia. 2004; 10: 218-31.
  • 3. Pomerantzeff PMA, Brandão CMA, Souza LR, Vieira MLC, Grimberg M, Ramires JAF, et al. Posterior mitral leaflet repair with a simple segmental annulus support: the double-teflon technique. J Heart Valve Dis. 2002; 11: 160-4.
  • 4. Braunwald E (editor). Harrison's principles of internal medicine. 16th ed. New York: McGraw-Hill; 2006. p. 708.
  • 5. Sadler JE. A revised classification of von Willebrand disease. Thromb Haemost. 1994; 71: 520-3.
  • 6. Federici AB. Clinical diagnosis of von Willebrand disease. Haemophilia. 2004; 10: 169-76.
  • 7. Komp DM, Nolan SP, Carpenter MA. Open-heart surgery in a patient with von Willebrands disease. J Thorac Cardiovasc Surg. 1970; 59: 225-30.
  • 8. Aris A, Pisciotta AV, Hussey CV, Gale H, Lepley D. Open-heart surgery in von Willebrands disease. J Thorac Cardiovasc Surg. 1975; 69: 183-7.
  • 9. Tarasoutchi F, Grinberg M, Wu TC, Cavalheiro Filho C, Rached RA, Cardoso LF, et al. Chronic rheumatic cardiopathy in a patient with of hemophilia successfully treated with surgery. Arq Bras Cardiol. 1994; 63: 389-91.
  • 10. Yoshida K, Tobe S, Kawata M, Yamaguchi M. Acquired and reversible von Willebrand disease with high shear stress aortic valve stenosis. Ann Thorac Surg. 2006; 81: 490-4.
  • Correspondência:

    Ally Nader Roquetti Saroute
    Rua Corinto, 488/43
    05586-060 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Jan 2007

    Histórico

    • Recebido
      26 Dez 2005
    • Revisado
      26 Abr 2006
    • Aceito
      12 Jun 2006
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