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Lesões epicárdicas na cardiopatia chagásica são reflexo de processo inflamatório

Resumos

OBJETIVO: Fornecer descrição anatomopatológica detalhada das lesões epicárdicas na cardiopatia chagásica crônica, avaliar sua incidência e discutir sua provável patogênese. MÉTODOS: Foram examinados os corações de 39 pacientes portadores de cardiopatia chagásica crônica submetidos a necropsia, com exame histológico das lesões epicárdicas. RESULTADOS: Manchas lácteas, caracterizadas por áreas bem definidas de cor branca do epicárdio, foram observadas em 80% dos casos, predominantemente na face anterior do ventrículo direito. Histologicamente, foi observado abrupto espessamento fibroso do epicárdio, não havendo fibras elásticas, processo inflamatório ou vasos sangüíneos. Rosário chagásico, caracterizado por pequenos grânulos esbranquiçados, arredondados, seqüencialmente dispostos ao longo dos vasos coronarianos, esteve presente em 23% dos corações. Apresentavam a mesma estrutura histológica que as manchas lácteas, mas de forma intrigante ocorriam apenas imediatamente acima de ramos arteriais coronarianos. Placa vilosa esteve presente na ponta ou na face anterior de 21% dos corações, caracterizando-se pelo aspecto exofítico, provavelmente em decorrência da adesão pericárdica prévia localizada. À microscopia, foram observados focos de infiltrado inflamatório e proliferação vascular, típicos de epicardite em organização. Além das lesões descritas, havia células inflamatórias mononucleares esparsas, com agrupamentos focais, no epicárdio de praticamente todos os casos. CONCLUSÃO: Concluímos que as lesões epicárdicas da cardiopatia chagásica crônica são provavelmente conseqüentes à reação do epicárdio ao processo inflamatório crônico.

Doença de Chagas; cardiopatia chagásica crônica; epicárdio; rosário chagásico


OBJECTIVE: Furnish a more detailed anatomicopathological description of the epicardial lesions in chronic chagasic cardiopathy, evaluate their incidence and discuss their probable pathogenesis METHODS: We examined the hearts of 39 chronic chagasic cardiopathy patients who underwent autopsies and submitted to histological analysis the epicardial lesions. RESULTS: Milk spots, characterized by well defined white areas in the epicardium were found in 80% of the cases, mainly on the anterior face of the right ventricle. Histological analysis revealed abrupt fibrous thickening of the epicardium, with no elastic fibers, inflammation or blood vessels. Chagasic rosary, characterized by small round whitish granules deposited sequentially along the coronary vessels were present in 23% of the hearts. They presented the same histological structure as the milk spots, but interestingly were only found immediately above the coronary artery branches. Villous plaque was found on the apex or anterior face of 21% of the hearts. It is characterized by an exophytic aspect, probably due to previous localized pericardial adhesion. Microscopic analysis revealed foci of inflammatory infiltrate and vascular proliferation, typical of epicarditis still under organization. In addition to the lesions described above, the vast majority of cases presented sparse mononuclear inflammatory cells with occasional foci. CONCLUSION: We concluded that epicardial lesions related to chronic chagasic heart disease are probably a result of epicardial reactions to chronic inflammatory process.

Chagas' disease; chronic chagasic heart disease; epicardium; chagasic rosary


COMUNICAÇÃO BREVE

Lesões epicárdicas na cardiopatia chagásica são reflexo de processo inflamatório

Luiz Alberto Benvenuti; Paulo Sampaio Gutierrez

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP – São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Luiz Alberto Benvenuti InCor – Laboratório de Anatomia Patológica Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 – São Paulo, SP E-mail: anpluiz@incor.usp.br

RESUMO

OBJETIVO: Fornecer descrição anatomopatológica detalhada das lesões epicárdicas na cardiopatia chagásica crônica, avaliar sua incidência e discutir sua provável patogênese.

MÉTODOS: Foram examinados os corações de 39 pacientes portadores de cardiopatia chagásica crônica submetidos a necropsia, com exame histológico das lesões epicárdicas.

RESULTADOS: Manchas lácteas, caracterizadas por áreas bem definidas de cor branca do epicárdio, foram observadas em 80% dos casos, predominantemente na face anterior do ventrículo direito. Histologicamente, foi observado abrupto espessamento fibroso do epicárdio, não havendo fibras elásticas, processo inflamatório ou vasos sangüíneos. Rosário chagásico, caracterizado por pequenos grânulos esbranquiçados, arredondados, seqüencialmente dispostos ao longo dos vasos coronarianos, esteve presente em 23% dos corações. Apresentavam a mesma estrutura histológica que as manchas lácteas, mas de forma intrigante ocorriam apenas imediatamente acima de ramos arteriais coronarianos. Placa vilosa esteve presente na ponta ou na face anterior de 21% dos corações, caracterizando-se pelo aspecto exofítico, provavelmente em decorrência da adesão pericárdica prévia localizada. À microscopia, foram observados focos de infiltrado inflamatório e proliferação vascular, típicos de epicardite em organização. Além das lesões descritas, havia células inflamatórias mononucleares esparsas, com agrupamentos focais, no epicárdio de praticamente todos os casos.

CONCLUSÃO: Concluímos que as lesões epicárdicas da cardiopatia chagásica crônica são provavelmente conseqüentes à reação do epicárdio ao processo inflamatório crônico.

Palavras-chave: Doença de Chagas, cardiopatia chagásica crônica, epicárdio, rosário chagásico.

Introdução

A cardiopatia chagásica crônica desenvolve-se em cerca de 30% das pessoas infectadas com o protozoário Trypanosoma cruzi na América Latina. As lesões miocárdicas, caracterizadas por hipertrofia de miócitos, miocardite crônica e fibrose, são bem estudadas, estando relacionadas às arritmias e ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca congestiva1. Entretanto, apesar do uso de técnicas de ablação por via epicárdica para o tratamento de arritmias ventriculares na cardiopatia chagásica crônica2, pouca atenção tem sido dada às lesões desse folheto. Tais alterações foram brevemente descritas, em edições antigas de periódicos e em livros-texto, como manchas lácteas, rosário chagásico e placa vilosa3-6. Este estudo teve como objetivos fornecer descrição anatomopatológica mais detalhada dessas lesões, avaliar sua incidência e discutir sua provável patogênese.

Métodos

No período compreendido entre janeiro de 2003 e março de 2005, 49 pacientes portadores de cardiopatia chagásica crônica foram submetidos a necropsia em nossa instituição. Todos os corações, à exceção de um, estavam disponíveis para revisão. Nove casos foram excluídos do estudo, pois o epicárdio havia sido total ou parcialmente removido ou não podia ser adequadamente examinado pela presença de pericardite difusa. O epicárdio dos 39 corações restantes foi macroscopicamente examinado, procurando-se pelas lesões anatomopatológicas descritas na doença de Chagas, como mancha láctea, rosário chagásico e placa vilosa. Lesões representativas de cada categoria foram removidas, seccionadas e submetidas ao processamento histológico habitual para inclusão em parafina. Cortes histológicos seqüenciais, com 4 µm de espessura, foram submetidos a coloração pela hematoxilina-eosina, a coloração tricrômica de Masson e a coloração de Verhoeff para tecidos elásticos, sendo examinados em microscópio óptico comum.

Resultados

O epicárdio de praticamente todos os casos apresentava áreas de opacidade e coloração esbranquiçada. Manchas lácteas, caracterizadas por áreas bem definidas de cor branca do epicárdio ventricular, estiveram presentes em 31 de 39 (80%) corações. As manchas apresentavam formato variável, limites mais ou menos precisos, e seu maior comprimento variava de 0,5 cm a vários centímetros. Apesar de mais freqüentes e maiores na face anterior do ventrículo direito, ocorriam em qualquer região do coração (fig. 1A). O exame histológico das manchas lácteas demonstrou abrupto espessamento fibroso do epicárdio, com arranjo paralelo de fibras colágenas densamente compactadas, não havendo infiltrado inflamatório, vasos sangüíneos ou fibras elásticas (fig. 1B). Rosário chagásico foi caracterizado por pequenos grânulos esbranquiçados, arredondados, seqüencialmente dispostos ao longo dos vasos coronarianos. Medindo até 1 mm de diâmetro, foram detectados em 9 de 39 (23%) corações (fig. 1C). O rosário chagásico apresentava as mesmas características histológicas que a mancha láctea, mas ocorria apenas imediatamente acima de ramos arteriais coronarianos (fig. 1D). Placa vilosa, caracterizada por áreas bem definidas de espessamento exofítico do epicárdio, foi observada em 8 de 39 (21%) corações. Situada na ponta ou na face anterior do órgão, a lesão apresentava limites claramente definidos, podendo ser facilmente distinta do epicárdio normal vizinho (fig. 1E). Ao exame histológico, havia múltiplos focos de infiltrado inflamatório mononuclear e vasos sangüíneos proliferados em meio à deposição de colágeno (fig. 1F). O epicárdio de praticamente todos os casos apresentava células inflamatórias mononucleares esparsas, com agrupamentos focais, fora das lesões descritas anteriormente.


Discussão

Manchas lácteas são consideradas lesões cicatriciais de epicardite crônica. Foram descritas em pacientes portadores de diversas doenças cardíacas, particularmente cardiopatia valvar crônica5,7. Apesar de acometer classicamente o miocárdio na cardiopatia chagásica crônica1,3-6, o infiltrado inflamatório também está presente no epicárdio, ocasionando epicardite crônica. Nas manchas lácteas, a ausência de células inflamatórias e de proliferação vascular e a presença de fibras colágenas densamente agrupadas sugerem que tais lesões são realmente cicatrizes, não havendo mais atividade inflamatória local. No presente estudo, verificou-se alta incidência de manchas lácteas na cardiopatia chagásica crônica (80%).

Rosário chagásico esteve presente em 23% dos corações examinados. Considerando-se que sua estrutura histológica era idêntica à da mancha láctea, o rosário apresenta provavelmente a mesma patogenia, ou seja, trata-se de lesão cicatricial de epicardite crônica. Entretanto, sua localização característica, acima de ramos arteriais coronarianos, é muito intrigante, não havendo explicação satisfatória para tal particularidade. Apesar de não termos encontrado relatos de lesões similares em outras cardiopatias, a presença de "rosário" ao longo das artérias coronárias epicárdicas é considerada característica, mas não lesão patognomônica de etiologia chagásica3,5.

Placa vilosa esteve presente em 21% dos corações na cardiopatia chagásica crônica. Sua estrutura histológica, com múltiplos focos de infiltrado inflamatório e numerosos vasos sangüíneos, além da deposição de colágeno, é característica de epicardite em organização. A causa de sua localização bem definida e o aspecto exofítico não são claros, mas pode-se especular que havia previamente adesão pericárdica naquela região.

Assim, as três categorias de lesões epicárdicas na cardiopatia chagásica crônica, ou seja, mancha láctea, rosário chagásico e placa vilosa, apresentam provavelmente a mesma patogênese: reação do epicárdio ao processo inflamatório crônico. A placa vilosa é provavelmente mais recente que as outras duas lesões e estaria relacionada à adesão pericárdica prévia focal. A causa da localização característica do rosário chagásico, imediatamente acima de ramos arteriais coronarianos, é desconhecida.

Artigo recebido em 06/09/06 - revisado recebido em 24/12/06; aceito em 24/12/06.

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  • 6. Lopes ER, Prata A, Chapadeiro E, Tafuri WL, Rocha A. Patologia das principais doenças tropicais no Brasil Doença de Chagas. In: Brasileiro Filho G (ed.). Bogliolo Patologia. 7ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p. 1320-37.
  • 7. El-Maraghi NRH. Diseases of the pericardium. In: Silver MD (ed.). Cardiovascular pathology. New York: Churchill Livingstone; 1983. p. 125-70.
  • Correspondência:

    Luiz Alberto Benvenuti
    InCor – Laboratório de Anatomia Patológica
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007

    Histórico

    • Aceito
      24 Dez 2006
    • Recebido
      06 Set 2006
    • Revisado
      24 Dez 2006
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