Acessibilidade / Reportar erro

Ponte miocárdica multiarterial: apresentações clínica e anatômica incomuns

Resumos

Homem de 42 anos, sem fatores de risco para doença arterial coronariana, internado com precordialgia atípica. Eletrocardiograma após a introdução de nitrato endovenoso evidenciou supradesnivelamento do segmento ST de V1 a V4. Cineangiocoronariografia demonstrou ponte miocárdica nas três artérias coronárias além de extensão incomum na descendente anterior (80 mm). A evolução foi satisfatória com a suspensão do nitrato e instituição de betabloqueador e antagonista de canais de cálcio.

Ponte de artéria coronária; angiografia coronária; nitroglicerina; isquemia miocárdica


We report the case of a 42-year-old man with no risk factors for coronary artery disease admitted with atypical chest pain. The electrocardiogram performed after intravenous injection of nitrate revealed ST-segment elevation in leads V1 to V4. The coronary angiography showed myocardial bridges in the three coronary arteries, besides an unusual length of the left anterior descending artery (80 mm). The patient progressed well following the discontinuation of nitrate use and introduction of beta-blockers and calcium channel antagonists.

Coronary artery bypass; coronary angiography; nitroglycerin; myocardial ischemia


RELATO DE CASO

Ponte miocárdica multiarterial: apresentações clínica e anatômica incomuns

Luciano de Moura Santos; Edmur Carlos de Araújo; Luciano Nogueira Liberato de Sousa

Hospital do Coração do Brasil – Brasília, DF

Correspondência Correspondência: Luciano de Moura Santos SQN 305 Bloco L ap.306 70737-120 – Brasília, DF E-mail: lucmoura@iname.com

RESUMO

Homem de 42 anos, sem fatores de risco para doença arterial coronariana, internado com precordialgia atípica. Eletrocardiograma após a introdução de nitrato endovenoso evidenciou supradesnivelamento do segmento ST de V1 a V4. Cineangiocoronariografia demonstrou ponte miocárdica nas três artérias coronárias além de extensão incomum na descendente anterior (80 mm). A evolução foi satisfatória com a suspensão do nitrato e instituição de betabloqueador e antagonista de canais de cálcio.

Palavras-chave: Ponte de artéria coronária, angiografia coronária, nitroglicerina, isquemia miocárdica.

Introdução

Apesar de várias casuísticas relatadas sobre a evolução clínica de pacientes com ponte miocárdica, pouco se sabe ainda acerca da condição benigna ou não dessa entidade1. Há inclusive grande discrepância sobre a sua própria incidência, com valores díspares quando se avalia o diagnóstico angiográfico versus patológico2. Muito se avançou em relação aos mecanismos de isquemia por meio de ferramentas como o ultra-som e o doppler intracoronários, embora ainda não exista uma completa elucidação3. Pretendemos relatar um caso de ponte miocárdica com apresentações clínica e anatômica incomuns.

Relato do Caso

Paciente do sexo masculino, 42 anos, admitido em pronto-socorro de cardiologia com história de precordialgia iniciada há 12 horas, de leve intensidade, sem irradiação, desencadeada por esforço físico, contínua e sem alívio com analgésico comum. Não apresentava fatores de risco para doença arterial coronariana. Encontrava-se com pressão arterial de 135/85 mmHg e freqüência cardíaca de 82 bpm. Não havia alterações no exame segmentar.

O eletrocardiograma apresentava ritmo sinusal com inversão de onda T em DI e aVL. A CK-MB atividade estava normal e a troponina discretamente elevada. Foram introduzidos enoxaparina 1mg/Kg/12h, aspirina 200 mg, clopidogrel 600 mg e foi iniciada nitroglicerina. Após o início da infusão do nitrato endovenoso, o paciente referiu piora do desconforto torácico, sendo realizado outro eletrocardiograma que demonstrou supradesnivelamento do segmento ST de V1 a V4.

A cineangiocoronariografia de urgência demonstrou estreitamento sistólico severo do calibre arterial em longo segmento da descendente anterior (80 mm), septais, porções distais de ramos diagonais e marginais da circunflexa, além de estreitamento sistólico discreto do calibre arterial em ramo agudo marginal da coronária direita (fig. 1). A ventriculografia esquerda demonstrou função contrátil preservada. Foi suspensa a nitroglicerina endovenosa e administrado betabloqueador endovenoso associado a antagonista de canal de cálcio via oral. O paciente evoluiu assintomático, com resolução do supradesnivelamento do segmento ST. Ecodopplercardiograma não demonstrou anormalidades anatômicas ou funcionais. O paciente recebeu alta em uso de aspirina 200 mg, metoprolol 100 mg e diltiazem 240 mg.


Posteriormente, o paciente foi submetido a angiotomografia de coronárias, a qual demonstrou feixes musculares envolvendo as artérias coronárias acima descritas, incluindo a grande extensão na descendente anterior (80 mm), porém com discreta profundidade (fig. 2).


Após 30 dias de início do tratamento clínico, foi realizada cintilografia de perfusão miocárdica associada ao teste ergométrico, sem obtenção de áreas isquêmicas. Em razão do duplo bloqueio, atingiram-se apenas 74% da freqüência cardíaca máxima, porém com excelente capacidade aeróbica.

O paciente foi mantido sob o tratamento clínico descrito e liberado para a prática de atividade física supervisionada.

Discussão

Acreditamos que este seja o primeiro relato de ponte miocárdica acometendo ramos diagonais e septais da descendente anterior, ramo marginal da circunflexa e marginal agudo da coronária direita associado à extensão bastante incomum na descendente anterior (80 mm) e manifesta por meio de angina instável de alto risco.

Em uma revisão de 2.000 cineangiocoronariografias consecutivas realizadas em nosso serviço, encontramos uma incidência de 8,2% de casos de ponte miocárdica. Acreditamos que essa alta incidência se deva ao uso rotineiro de nitrato nas coronariografias diagnósticas realizadas por via transradial, maioria na nossa casuística. Apesar da incidência média de ponte miocárdica nas coronariografias diagnósticas situar-se em 2%, quando se utiliza um teste provocador como a infusão de nitroglicerina, acetilcolina ou papaverina, essa incidência pode alcançar até 40% dos casos2. A extensão angiográfica das pontes miocárdicas na descendente anterior, em diversas séries, situa-se entre 11 e 44 mm3.

A fisiopatologia da síndrome clínica apresentada por esse paciente, à semelhança de outros casos já relatados, não é bem evidente. Uma suposição é a ligação entre ponte miocárdica e espasmos coronários. Em um estudo com a infusão de acetilcolina em coronárias esquerdas de pacientes com ponte miocárdica versus pacientes com coronárias normais observou-se a ocorrência de espasmos, mais freqüentemente no grupo de pacientes com ponte miocárdica (73% versus 40%, p=0.0006), podendo esses espasmos desencadear síndromes isquêmicas4. Fenômenos trombóticos transitórios ou prolongados como causa de síndrome coronária aguda também já foram descritos em pacientes com ponte miocárdica5. Entretanto, no presente caso, o mais provável é que o desbalanço entre a oferta e consumo de oxigênio tenha sido provocado pela infusão contínua da nitroglicerina. Hongo e cols.6 estudaram a reatividade à nitroglicerina de 39 pacientes com ponte miocárdica, utilizando o ultra-som intracoronariano. Demonstraram claramente a redução da área luminal coronariana sob a ponte miocárdica durante a sístole, com prolongamento dessa redução durante a fase inicial da diástole. Esse atraso na dilatação do lúmen coronário durante a fase diastólica pode contribuir para a ocorrência de isquemia miocárdica6.

Alguns estudos tentam correlacionar o grau acentuado do estreitamento sistólico e a maior profundidade intramiocárdica do segmento tunelizado como fatores de pior prognóstico em pacientes com ponte miocárdica, inclusive associando com morte súbita por meio de estudos de autópsia7,8. Em razão da incapacidade de demonstração da profundidade da coronária no miocárdio pela cineangiocoronariografia, foi realizada a angiotomografia de coronárias nesse paciente. Evidenciou-se que as coronárias estavam apenas parcialmente envolvidas pelas fibras miocárdicas, contrastando com o grande estreitamento sistólico observado.

Em pacientes sintomáticos é preconizado o tratamento clínico com betabloqueador e/ou antagonista de canais de cálcio2. A intervenção percutânea com o uso de stents9 ou o tratamento cirúrgico representados pela miotomia ou cirurgia de revascularização miocárdica10 é destinada apenas para a minoria de pacientes que persistem com sintomas ou com provas funcionais positivas em uso do tratamento clínico otimizado.

Os estudos retrospectivos existentes, todos com pequeno número de pacientes, direcionam para uma evolução benigna de pacientes portadores de ponte miocárdica. Entretanto, a documentação de angina, espasmo coronário, arritmias ventriculares, infarto agudo do miocárdio e morte súbita em pacientes com ponte miocárdica aponta para a provável existência de um subgrupo de pacientes com maior risco de eventos1. A ausência de estudos prospectivos, controlados, dificulta o estabelecimento definitivo dos fatores prognósticos dessa condição.

Nesse caso, a evolução assintomática associada à cintilografia de perfusão miocárdica negativa reforça o sucesso da terapêutica clínica até o momento.

Agradecimentos

Aos médicos Wing Lima, Chris Paulini, Euclides Timóteo e Wagner Diniz, pela execução de exames complementares.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Artigo recebido em 07/04/06; revisado recebido em 14/07/06; aceito em 05/10/06.

  • 1. Hayashi T, Ishikawa K. Myocardial bridge: harmless or harmful. Intern Med. 2004; 43 (12): 1097-8.
  • 2. Mohlenkamp S, Hort W, Ge J, Erbel R. Update on myocardial bridging. Circulation. 2002; 106 (20): 2616-22.
  • 3. Bourassa MG, Butnaru A, Lesperance J, Tardif JC. Symptomatic myocardial bridges: overview of ischemic mechanisms and current diagnostic and treatment strategies. J Am Coll Cardiol. 2003; 41 (3): 351-9.
  • 4. Teragawa H, Fukuda Y, Matsuda K, Hirao H, Higashi Y, Yamagata T, et al. Myocardial bridging increases the risk of coronary spasm. Clin Cardiol. 2003; 26 (8): 377-83.
  • 5. Bauters C, Chmait A, Tricot O, Lamblin N, Van Belle E, Lablanche JM. Images in cardiovascular medicine: coronary thrombosis and myocardial bridging. Circulation. 2002; 105 (1): 130.
  • 6. Hongo Y, Tada H, Ito K, Yasumura Y, Miyatake K, Yamagishi M. Aumentation of vessel squeezing at coronary-myocardial bridge by nitroglycerin: study by quantitative coronary angiography and intravascular ultrasound. Am Heart J. 1999; 138: 345-50.
  • 7. Vaz VD, Muñoz JS, Tanajura LF, Abizaid AA, Sousa JE, Santos LM, et al. Avaliação prognóstica tardia de pacientes com ponte miocárdica isolada através de um score de estreitamento sistólico. Arq Bras Cardiol. 2003, 81 (supl. 1): 27.
  • 8. Morales AR, Romanelli R, Tate LG, Boucek RJ, de Marchena E. Intramural left anterior descending coronary artery: significance of depth of the muscular tunnel. Hum Pathol. 1993; 24: 693-701.
  • 9. Klues HG, Schwartz ER, Vom Dahl J, Reffelman R, Minartz J, et al. Disturbed intracoronary hemodynamics in myocardial bridging: early normalization by intracoronary stent placement. Circulation. 1997; 96: 2905-13.
  • 10. Hill RC, Chitwood WR Jr, Bashore TM, Sink JD, Cox JL, Wechsler AS. Coronary flow and regional function before and after supraarterial myotomy for myocardial bridging. Ann Thorac Surg. 1981; 31: 176-81.
  • Correspondência:

    Luciano de Moura Santos
    SQN 305 Bloco L ap.306
    70737-120 – Brasília, DF
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007

    Histórico

    • Revisado
      14 Jul 2006
    • Recebido
      07 Abr 2006
    • Aceito
      05 Out 2006
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br