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Corrente If e o controle da freqüência cardíaca

ATUALIZAÇÃO CLÍNICA

Corrente If e o controle da freqüência cardíaca

Luiz Antonio Machado César

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP – São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Luiz Antonio Machado César Rua Constantino de Souza, 1580 04605-004 – São Paulo, SP E-mail: dcllucesar@incor.usp.br

Palavras-chave: Freqüência cardíaca, arritmia.

Introdução

O entendimento dos mecanismos que geram a despolarização espontânea da membrana celular de células cardíacas, seja das células do nó sinusal seja daquelas que podem ter essa capacidade, como as células das fibras de Purkinje no feixe de His, sempre foi importante, pois é a despolarização espontânea durante a fase 4 do potencial de ação que permite que essas células tenham a capacidade de determinar um batimento cardíaco, ou seja, funcionando como um marcapasso natural do coração. Além disso, é por essa via que o sistema nervoso autônomo atua na regulação da Freqüência Cardíaca (FC)1. Já se sabia da existência de uma corrente iônica de despolarização nas células das fibras de Purkinje, mas essa foi erroneamente suposta como uma corrente pura de K+2, e que deixava de existir durante todo o tempo do potencial de ação, voltando a estar ativa no momento do menor potencial de membrana, na fase 4. Quando se descobriu a corrente If no nó sinusal, houve dúvidas sobre a presença de duas diferentes correntes responsáveis pela mesma capacidade de possibilitarem existir um marcapasso natural no coração. Em 1981, as dúvidas se resolveram e foi demonstrado que, na verdade, ambas as correntes eram iguais3,4. Assim, entendeu-se a capacidade da geração espontânea da despolarização da membrana das células cardíacas, e, desde então, estuda-se essa corrente com o interesse de se verificar seus componentes iônicos, cinéticos e de modulação5.

Com a biologia molecular foi possível identificar subunidades moleculares que compõem as proteínas, que são os canais por onde passam os íons dessa corrente, permitindo novas avaliações através da clonagem dessas subunidades. Foi quando se descreveu uma nova classe de canais iônicos, e se pôde clonar a família dos nucleotídeos cíclicos de entrada (HCN) ativados na hiperpolarização6-8. Essa nova família é formada por quatro isoformas que estão distribuídas pelas várias células cardíacas e também nas neurais (incluídas as células da retina), e nestas últimas são responsáveis pelo controle da excitabilidade neuronal9. Como as correntes de sódio são mais importantes na fase I da despolarização celular, o fato de haver uma corrente desse tipo na fase IV e que é ativada durante a hiperpolarização da membrana celular fez com que ela fosse chamada de funny. E assim passou a ser conhecida como If, I de corrente e f de funny.

Exceto pelo interesse dos eletrofisiologistas, essa corrente não era conhecida da maioria dos cardiologistas, até que se conseguiu um fármaco que podia bloqueá-la, e que era suficientemente seguro e eficaz em humanos, tendo ultrapassado a fase II de estudos clínicos. Dessa forma, é interessante rever os mecanismos eletrofisiológicos da despolarização celular para se entender o funcionamento da corrente If ; depois, como se pode bloqueá-la e o que já há de estudos com esse bloqueio.

A corrente If

A despolarização celular do nó sinusal é voltagem dependente, acontecendo na fase I da despolarização da membrana ao atingir o limiar de despolarização, por volta de -60 mV, momento em que se abrem os canais de cálcio (fig. 1). E durante esse processo também se abrem os canais de sódio, que são ativados em níveis de potenciais bem mais próximos de zero, diferentemente dos canais de sódio das células de Purkinje, que se ativam em níveis bem baixos (entre -90 e -70 mV) e deflagram a rápida fase I de despolarização dessas células. As fases II e III da repolarização são de ativação de vários canais, basicamente com a entrada de potássio para o intracelular e a saída de sódio e cálcio para o extracelular, fazendo que o potencial de membrana celular retorne ao seu gradiente eletroquímico de repouso.


Na fase IV, acontece uma progressiva e lenta despolarização da célula até atingir o limiar a partir do qual os canais de cálcio novamente se ativam e a despolarização acontece. É a corrente If, dependente de canais iônicos com correntes de sódio e potássio, a responsável por esse evento espontâneo da despolarização da membrana (fig. 2 A e B). Claro que essa corrente sofre a ação de vários estímulos que atuam nesses vários canais iônicos, como o simpático e parassimpático (fig. 3). Assim, a estimulação de receptores beta-1 aumenta a intensidade da corrente If enquanto a estimulação vasovagal, através dos terminais colinérgicos muscarínicos, a diminui7. Esta corrente, diferentemente das outras conhecidas, ativa-se a partir de -40 a -50 mV e atinge o máximo de ativação entre -100 a -110 mV, e é uma corrente de entrada de íons para dentro da célula. Sua ativação acontece de forma lenta na hiperpolarização da membrana (fase IV), e sua velocidade de fluxo iônico aumenta, quanto mais negativa estiver a diferença de potencial da membrana. A constante de tempo dessa corrente é de um segundo aos -55 mV, ficando mais curta, em 0,5 segundo aos -75 mV, desativando-se rapidamente após a despolarização da membrana, entre +15 e +30 mV, no momento do plateau do potencial de ação (fig. 2B).



Várias interferências no funcionamento dessa corrente já foram descritas, mas de todas elas as mais importantes são: 1) a modulação que o sistema simpático tem sobre o comportamento dessa corrente, alterando a velocidade do fluxo dessa e, portanto, modificando a freqüência de despolarização da membrana celular (fig. 3)8; 2) o bloqueio dos canais responsáveis pela If altera a velocidade de despolarização diastólica espontânea da membrana celular.

Bloqueio da corrente If

A existência de uma corrente iônica implica a presença de canais de passagem para íons na membrana celular. O bloqueio desses canais responsáveis pela corrente If foi demonstrado em modelos animais com células do nó sinusal de coelhos10-13. A intensidade desse bloqueio, e portanto a capacidade de diminuir a freqüência de despolarização da membrana, varia com o potencial de membrana. Especificamente com a zetabradina12, um bloqueador razoavelmente específico da corrente If, o bloqueio é maior em voltagens mais negativas, exatamente quando é maior a corrente de influxo de íons, fazendo com que a capacidade de redução da freqüência seja maior quando essa é maior, e vice-versa. Também está demonstrado que esse bloqueio acontece somente quando os canais estão abertos. Esse agente diminui a freqüência de despolarização do nó sinusal e, portanto, é redutor da FC.

Ivabradina

Essa molécula, um derivado benzocicloalcano, tem uma especificidade muito grande para bloquear a corrente If e exerce intensamente a ação de reduzir a FC isoladamente14 (fig. 4). É muito mais seletiva do que a zetabradina e outros bloqueadores da corrente If, necessitando de muito menor concentração na solução para exercer seu efeito13-15. Tal qual a zetabradina, a ivabradina age na parte interna da membrana15 e requer que os canais estejam abertos para poderem atuar. Em voltagens próximas a zero, quando os canais estão fechados, não se observa nenhuma ação desse fármaco. Também se verificou, experimentalmente, que a ação é muito maior quando há correntes de dentro para fora da célula, sendo discreta a ação quando há correntes de fora para dentro. Com essa demonstração fica evidente que o bloqueio que a ivabradina promove não é só dependente de voltagem ou do estado de abertura do canal.


O efeito da ivabradina despertou interesse para o seu uso em humanos, pois a redução da FC é objetivo maior em algumas situações, especialmente na doença coronariana, por ser a FC determinante principal do consumo de oxigênio pelo miocárdio. Além disso, a possibilidade de proteção cardiovascular pela redução da FC também trouxe perspectivas para sua utilização, principalmente por não apresentar nenhum efeito inotrópico nem qualquer outro efeito sistêmico hemodinâmico, diferentemente dos betabloqueadores. Entretanto, o seu efeito permanece mesmo em situações de estimulação adrenérgica, embora não exerça nenhuma ação em receptores beta-adrenérgicos. Em modelos de experimentação, com células isoladas de átrio de ratos, a capacidade de redução da FC foi de até -34%.

Em coelhos, essa redução ficou na faixa de -24%. Nesses estudos não se verificou praticamente nenhuma variação nem no tempo de duração nem na amplitude do potencial de ação da membrana celular. Considerando os achados avaliados em células de Purkinje e no nó sinusal, todos corroboram com a inexistência de qualquer efeito do tipo bloqueio dos canais de cálcio, pela ivabradina. Além disso, em modelos experimentais utilizando-se cachorros caminhando em esteira não há interferência da ivabradina sobre o aumento natural do débito cardíaco e da contratilidade durante exercício, e nem há alteração da capacidade de vasodilatação coronariana, ao contrário do propranolol utilizado como comparação nesses experimentos16.

Tendo em vista esses resultados, desenvolveu-se um programa clínico de avaliação desse fármaco em humanos, dentro do rigor necessário para esse tipo de avaliação em estudos para qualquer novo medicamento, nos dias de hoje.

Estudos clínicos na angina estável

Após estudos de fase I17, um grande estudo de fase II foi desenvolvido e confirmou o efeito da ivabradina na redução da FC tanto em repouso quanto durante exercício18. Nesse estudo, avaliaram-se 360 pacientes com angina do peito estável, com comprovação de doença coronariana, randomizados de maneira duplo-cego e comparando ivabradina em várias dosagens (2,5; 5 e 10 mg duas vezes ao dia) contra placebo.

O objetivo principal do estudo foi avaliar, pelo teste de esforço em esteira, o tempo de início da depressão do segmento ST no eletrocardiograma (ECG) e o tempo para ocorrer angina limitante no momento do "vale", ou seja, o momento de menor ação do fármaco 12 horas após a tomada. Como objetivos secundários foram feitas avaliações da FC e do duplo produto, ambas em repouso e nos momentos de valores máximos durante o exercício, bem como os dados do ECG 4 horas após a dose da medicação e a freqüência de angina e do consumo de nitrato sublingual. O delineamento do estudo foi de duas semanas de tratamento em um dos quatro grupos detalhados, e, depois, de forma aberta, por mais dois a três meses de seguimento todos receberam ivabradina na dose de 10 mg duas vezes ao dia. A segurança foi avaliada por avaliações laboratoriais de rotina, pela freqüência de ocorrência de eventos adversos e pelos sinais vitais, além da análise do ECG de 24 horas pelo sistema Holter.

Houve aumento expressivo no tempo para o aparecimento da depressão do segmento ST com a ivabradina. Foi de 44 s e 46 s, para a dose de 5 mg e 10 mg duas vezes ao dia, respectivamente, contra 9 s do grupo placebo (p< 0,005) nas duas semanas de tratamento. O efeito da dose também foi significante (p= 0,005), e a dose de 2,5 mg não foi diferente do placebo. Na análise da fase estendida de dois a três meses, aqueles que estavam no grupo placebo inicialmente tiveram também expressiva redução do número de angina e na isquemia e aumento do tempo de angina limitante com p< 0,001. Os benefícios observados tiveram relação com o grau de redução na FC proporcionado pela ivabradina. Além disso, o perfil de tolerabilidade foi bom, e o único evento adverso de maior importância foi a alteração visual informada por até 27% dos pacientes em uso de ivabradina somente na dose de 10 mg duas vezes ao dia, na maioria das vezes descrita como discreta e passageira e como sendo uma variação na intensidade de percepção da luz.

Outros estudos já realizados, mas ainda não publicados, compararam a eficácia da ivabradina com dois antianginosos padrão, o betabloqueador atenolol19 e o antagonista de canais de cálcio amlodipino20. Nesses dois estudos, demonstrou-se a equivalência da ivabradina com ambos, no que se refere ao controle dos sintomas anginosos e na melhora do tempo para aparecimento de isquemia durante o teste de esforço. Atualmente está em desenvolvimento um estudo para avaliar a eficácia e segurança do uso da ivabradina em pacientes já em uso de terapêutica de base com atenolol, e um outro com o intuito de avaliar o impacto da redução da FC em pacientes com insuficiência cardíaca decorrente de doença isquêmica do coração ou por cardiomiopatia dilatada, para testar se a redução a mais da FC pode levar a benefícios quanto a eventos cardiovasculares e morte.

Com todas essas informações e sabendo do número razoavelmente grande de indivíduos que apresentam contra-indicação para o uso de betabloqueadores ou, com muito mais freqüência, aqueles que podem ter intolerância ao seu uso, tais como portadores de doença pulmonar crônica pulmonar, asma, insuficiência vascular periférica, diabete melito, alterações gastrintestinais, ceratite, bem como intolerância ao uso de antagonistas de cálcio que reduzem a FC, tais como obstipação intestinal, edema de membros inferiores e hipotensão entre outros, a ivabradina é uma opção bastante atrativa para ser usada como antianginoso, especialmente por proporcionar uma redução da FC sem efeitos hemodinâmicos e com um perfil de tolerabilidade muito bom.

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Artigo recebido em 15/5/06; artigo revisado recebido em 5/10/06; aceito em 5/10/06.

  • Correspondência:

    Luiz Antonio Machado César
    Rua Constantino de Souza, 1580
    04605-004 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007
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