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Freqüência da hipertensão arterial em chagásicos crônicos e sua repercussão no coração: estudo clínico e anatomopatológico

Resumos

FUNDAMENTO: Dados da literatura sobre a concomitância da doença de Chagas e hipertensão arterial são controversos e, quando presentes, não se referem à repercussão da simultaneidade na história natural da doença de Chagas ou na hipertensão. OBJETIVO: Avaliar a freqüência da concomitância entre a doença de Chagas e a hipertensão arterial e suas repercussões clínicas e anatomopatológicas. MÉTODOS: Selecionamos necropsias realizadas no Departamento de Anatomia Patológica do Hospital e Maternidade Celso Pierrô, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e as dividimos em três grupos: grupo CH + HAS - chagásicos hipertensos; grupo CH - chagásicos não-hipertensos; e grupo HAS - hipertensos não-chagásicos. Analisamos estatisticamente as variáveis sexo, idade, raça, formas clínicas da doença de Chagas, achados eletrocardiográficos e anatomopatológicos. RESULTADOS: Nessa avaliação, foram encontrados 101 (2,9%) casos de pacientes com doença de Chagas, sendo 33 (32,7%) deles também hipertensos. Houve discreto predomínio do sexo masculino, sendo a distribuição racial e a idade média semelhantes nos três grupos. Hipertensão arterial grave não foi encontrada com freqüência entre os chagásicos. Quando presente, a hipertensão não alterou os achados clínicos ou anatomopatológicos compatíveis com a doença de Chagas. CONCLUSÃO: A freqüência da hipertensão arterial nos chagásicos foi semelhante à observada na população geral. A hipertensão arterial, quando presente nos chagásicos, ocorreu em pacientes com maior média de idade. A concomitância de hipertensão arterial e doença de Chagas não alterou a história natural de ambas as doenças.

Hipertensão; cardiomiopatia chagásica; coração


BACKGROUND: Data from the literature on the frequency of concomitant Chagas’ disease and hypertension are controversial and, when available, do not mention the consequences of this concomitance in the natural history of either Chagas’ disease or of hypertension. OBJECTIVE: To assess the frequency of concomitant Chagas’ disease and hypertension and the clinical and anatomopathological consequences of this association. METHODS: The cases were selected from necropsies performed in the Department of Pathological Anatomy of Hospital e Maternidade Celso Pierrô of Pontifícia Universidade Católica de Campinas and divided into three groups: CH + SH group, of patients with Chagas’ disease plus hypertension; CH group, of patients with Chagas’ disease without hypertension; and SH group, of patients with hypertension without Chagas’ disease. The variables of gender, age, race, clinical forms of Chagas’ disease, and electrocardiographic and anatomopathological findings were statistically analyzed. RESULTS: In this assessment, a total of 101 (2.9%) cases of patients with Chagas’ disease was found, and 33 (32.7%) of them also had hypertension. A slight predominance of the male gender was observed; racial distribution and mean age were similar in the three groups. Severe hypertension was not frequently found among chagasic patients. When present, hypertension did not change the clinical and anatomopathological findings compatible with Chagas’ disease. CONCLUSION: The frequency of hypertension in chagasic patients was similar to that observed in the general population. Hypertension, when present in chagasic patients, occurred in those with a higher mean age. The concomitance of hypertension and Chagas’ disease did not change the natural history of either one of the two diseases.

Hypertension; Chagas’ cardiomyopathy; heart


ARTIGO ORIGINAL

Freqüência da hipertensão arterial em chagásicos crônicos e sua repercussão no coração: estudo clínico e anatomopatológico

Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel; Eros Antonio de Almeida

Hospital e Maternidade Celso Pierrô da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - Campinas, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel Rua MMDC, 47/101 13025-130 Campinas, SP - Brasil E-mail: cbfmgurgel@ig.com.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Dados da literatura sobre a concomitância da doença de Chagas e hipertensão arterial são controversos e, quando presentes, não se referem à repercussão da simultaneidade na história natural da doença de Chagas ou na hipertensão.

OBJETIVO: Avaliar a freqüência da concomitância entre a doença de Chagas e a hipertensão arterial e suas repercussões clínicas e anatomopatológicas.

MÉTODOS: Selecionamos necropsias realizadas no Departamento de Anatomia Patológica do Hospital e Maternidade Celso Pierrô, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e as dividimos em três grupos: grupo CH + HAS - chagásicos hipertensos; grupo CH - chagásicos não-hipertensos; e grupo HAS - hipertensos não-chagásicos. Analisamos estatisticamente as variáveis sexo, idade, raça, formas clínicas da doença de Chagas, achados eletrocardiográficos e anatomopatológicos.

RESULTADOS: Nessa avaliação, foram encontrados 101 (2,9%) casos de pacientes com doença de Chagas, sendo 33 (32,7%) deles também hipertensos. Houve discreto predomínio do sexo masculino, sendo a distribuição racial e a idade média semelhantes nos três grupos. Hipertensão arterial grave não foi encontrada com freqüência entre os chagásicos. Quando presente, a hipertensão não alterou os achados clínicos ou anatomopatológicos compatíveis com a doença de Chagas.

CONCLUSÃO: A freqüência da hipertensão arterial nos chagásicos foi semelhante à observada na população geral. A hipertensão arterial, quando presente nos chagásicos, ocorreu em pacientes com maior média de idade. A concomitância de hipertensão arterial e doença de Chagas não alterou a história natural de ambas as doenças.

Palavras-chave: Hipertensão, cardiomiopatia chagásica, coração/fisiopatologia.

Introdução

A doença de Chagas é uma zoonose de natureza endêmica e de evolução crônica, habitualmente transmitida ao homem por meio da picada de insetos triatomíneos. Apresenta ampla distribuição geográfica nas Américas, estendendo-se desde o centro-oeste mexicano até o extremo sul do Chile e da Argentina1. Seu diagnóstico na fase crônica baseia-se na presença de anticorpos anti-Trypanosoma cruzi no soro de indivíduos infectados e seu polimorfismo clínico é patente.

A doença pode se apresentar sob as seguintes formas: forma indeterminada, caracterizada pela ausência de sintomas e sinais significativos de comprometimento orgânico; forma digestiva, secundária a lesão do plexo mioentérico, que gera incoordenação motora e, em casos avançados, dilatação do órgão acometido (megas); e forma cardíaca, considerada a mais freqüente em nosso meio.

As diferentes manifestações cardíacas, resultantes de extensões e intensidades heterogêneas de inflamação, dificultam uma classificação clínica única. Os portadores podem apresentar a forma miopática quando houver sintomas e sinais compatíveis com insuficiência cardíaca, a forma dromopática na presença de distúrbios de condução cardíaca, a forma batmopática quando há distúrbios de automatismo ou a forma mista, presente quando há concomitância de duas ou mais apresentações clínicas2. À literatura atual, tais manifestações são apresentadas de maneira simplificada como congestivas, arrítmicas e/ou embólicas.

A hipertensão arterial essencial é, na maioria dos casos, assintomática e basicamente foi definida pelo III Consenso Brasileiro de Hipertensão Arterial como presente quando ocorrem níveis pressóricos sistólicos iguais ou superiores a 140 mmHg e diastólicos iguais ou superiores a 90 mmHg3. Sua prevalência depende da população estudada e da extensão da avaliação efetuada, podendo ser influenciada por diversas variáveis, como sexo, idade, obesidade, raça, alcoolismo e fatores ambientais (dieta, condições sociais, conflitos psicológicos), entre outros fatores. A hipertrofia cardíaca secundária a altos níveis pressóricos é responsável por maior freqüência de arritmias graves, predisposição a infarto do miocárdio e instalação de insuficiência cardíaca4.

São poucos os dados na literatura sobre a associação da doença de Chagas a outras moléstias crônicas ou agudas. Dentre elas, há controvérsia quanto à freqüência da concomitância da tripanossomíase e da hipertensão arterial e quanto a sua repercussão para o paciente5-8.

O presente estudo teve como objetivo avaliar a repercussão da coexistência da doença de Chagas e da hipertensão arterial, clínica e anatomopatologicamente, com especial ênfase na cardiopatia.

Métodos

Foram estudados no Hospital e Maternidade Celso Pierrô da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, os prontuários de pacientes submetidos a necropsia, assim como seus dados anatomopatológicos. Para o diagnóstico da doença de Chagas, considerou-se, além da epidemiologia fortemente positiva, a positividade de pelo menos duas reações sorológicas diferentes realizadas em vida (fixação de complemento com título superior a 1/4, e/ou imunofluorescência indireta com título igual ou superior a 1/40, e/ou hemaglutinação passiva com título igual ou superior a 1/32, e/ou ELISA reagente).

A hipertensão arterial, definida segundo os critérios do III Consenso Brasileiro de Hipertensão Arterial3, foi classificada como: leve, quando os níveis diastólicos encontravam-se entre 90 mmHg e 99 mmHg; moderada, entre 100 mmHg e 109 mmHg; e grave, quando os níveis eram maiores ou iguais a 110 mmHg. Os níveis pressóricos foram obtidos mediante esfigmomanômetro com coluna de mercúrio, disponibilizado em enfermarias, ambulatórios e unidades de urgência e emergência hospitalares. Foram incluídos os casos de pacientes que apresentassem pelo menos três medidas iguais ou superiores às estabelecidas como critério para hipertensão arterial.

Foram excluídos todos os casos que apresentassem achados que pudessem influenciar os resultados, tais como presença de valvopatias, cardiomiopatia hipertrófica, amiloidose e demais doenças de depósito, assim como os casos diagnosticados como critério de hipertensão arterial secundária.

A partir da avaliação dos prontuários, foram coletados dados gerais como cor, sexo, idade, forma clínica da doença de Chagas, quadro clínico final e resultado da eletrocardiografia. Para o critério cor, foram definidas duas variáveis: raça branca e raça não-branca.

Para facilitar o estudo de diversas variáveis, os casos foram subdivididos em três grupos: grupo CH + HAS, chagásicos hipertensos; grupo CH, chagásicos não-hipertensos; e grupo HAS, hipertensos não-chagásicos. Os grupos CH e HAS foram considerados como controle da doença de Chagas e da hipertensão arterial. Os casos do grupo HAS foram selecionados pareando-se o sexo e a idade com os demais grupos, com a finalidade de homogeneizar a amostra.

As necropsias ocorreram rotineiramente em todos os casos. Para atender aos objetivos deste trabalho, foram analisadas especificamente as seguintes variáveis: 1) peso cardíaco, para avaliação de presença de hipertrofia, utilizando-se o critério de Fulton9, que considera elevado peso igual ou superior a 250 g; 2) análise da ponta ventricular, para verificação da presença de lesão apical (recesso no ápice ventricular); 3) análise das coronárias, para verificação de aterosclerose, quantificada como leve – obstrução luminar igual ou inferior a 50%, moderada – lesão variando entre 50% e 75%, e grave – obstrução maior que 75% (a alteração da camada íntima por presença de material gorduroso, sem oclusões, foi designada como lipoidose); 4) análise da presença macroscópica de infarto do miocárdio, caracterizado por fibrose densa, quando antigo, e por miomalácia, quando recente; 5) análise de trombose intracardíaca macroscópica; 6) presença de infartos cerebrais (isquêmicos ou hemorrágicos); e 7) avaliação da causa mortis após análise do quadro clínico final e à necropsia, pela presença de compressão bulbar por herniação das amídalas cerebelares, arritmia cardíaca, choque de diversas etiologias, insuficiência respiratória, hipoglicemia, caquexia e indeterminada, quando não é possível estabelecer a causa do óbito.

Para a análise estatística, foi utilizada a média aritmética e o desvio padrão para cada uma das variáveis quantitativas que necessitaram de seu cálculo10. Para a análise inferencial, foram utilizadas a análise de variância, o teste t de Student, o teste do qui-quadrado e o teste exato de Fischer, considerando-se p < 0,05 para nível de significância11. Para a comparação entre duas médias foi utilizado o teste t de Student, sendo a análise de variância ANOVA utilizada para comparações entre três ou mais médias amostrais. Quando houve diferença significativa entre as médias, foi aplicado o teste de Tukey-HSD para comparação múltipla de médias a fim de se localizar as diferenças significativas11,12. Para análise da relação entre variáveis quantitativas, foram utilizados o teste do qui-quadrado e o teste exato de Fischer, não-paramétricos, que não necessitam de suposição de normalidade entre as variáveis comparadas13.

Resultados

De um total de 3.464 necropsias, 101 casos correspondiam a chagásicos (2,9%). Foram excluídas nove observações por não obedecerem a algum critério de inclusão ou por estarem inseridas nos critérios de exclusão. Em 33 (32,7%) casos foi encontrada concomitância de hipertensão arterial. Nos grupos CH e HAS foram incluídos 59 e 46 casos, respectivamente.

Do total de 138 casos estudados, 58% eram do sexo masculino e 42% eram do sexo feminino, sem diferença estatística significante entre os grupos. Também não houve diferença quanto à freqüência das raças. Houve significância estatística em relação à idade nos três grupos estudados, observando-se diferença significativa entre o grupo de chagásicos com hipertensão e o grupo de chagásicos sem hipertensão (tab. 1).

Em relação às diferentes formas clínicas entre os dois grupos chagásicos, não houve diferença estatisticamente significativa quanto à freqüência de alguma delas entre os grupos (tab. 2).

Houve diferença estatística quanto aos graus de hipertensão arterial entre os chagásicos, o mesmo não ocorrendo entre os não-chagásicos. Nesses dois grupos, também foi constatado predomínio de hipertensão leve entre os chagásicos e de hipertensão grave entre os não-chagásicos (tab. 3).

As principais alterações eletrocardiográficas estão apresentadas na tabela 4.

Não houve diferença estatisticamente significativa quanto às alterações eletrocardiográficas entre os grupos estudados, exceto no que se refere às extra-sístoles ventriculares e à presença de sobrecarga ventricular esquerda. Quando um dos itens estudados não esteve presente em determinado grupo, especificamente no bloqueio divisional ântero-superior esquerdo com ou sem concomitância de bloqueio de ramo direito e na eletrocardiografia normal, os dois grupos restantes foram estudados comparativamente. Em nenhum dos casos, entretanto, foi revelada diferença estatisticamente significativa.

O estudo comparativo não demonstrou diferença estatisticamente significativa em relação ao peso cardíaco entre os grupos CH + HAS (peso mínimo de 250 g, peso máximo de 590 g, peso médio de 415,45 g, com desvio padrão de 94,15) e CH (peso mínimo de 155 g, peso máximo de 850 g, peso médio de 443,81 g, com desvio padrão de 155,53). Da mesma forma, quando o grupo HAS (peso mínimo de 150 g, peso máximo de 760 g, peso médio de 437,17 g, com desvio padrão de 133,03) foi adicionado ao estudo, também não foi obtida diferença significativa.

Os dados do estudo das alterações coronarianas estão apresentados na tabela 5. Não foi possível realizar o estudo coronariano em 4 casos no grupo CH + HAS (12,1%), em 5 casos no grupo CH (8,5%) e em 2 casos no grupo HAS (4,3%). O grau de aterosclerose não apresentou diferença estatística significativa para os pacientes dos grupos CH + HAS e HAS, mas no grupo CH houve predomínio da aterosclerose de grau leve (tab. 5).

De todos os infartos do miocárdio e cerebrais observados, nenhum foi recente. Não houve estudo de tecido encefálico em oito casos no grupo CH (13,6%) e em dois casos no grupo HAS (4,3%). Não houve diferença estatisticamente significativa em relação ao número de infartos isoladamente (tab. 6).

Não foi registrada diferença estatisticamente significativa no que se refere a idade e sexo em relação às complicações cardiovasculares no grupo CH + HAS, o mesmo ocorrendo nos grupos CH e HAS. Houve diferença significativa quando foi analisada a presença de infarto do miocárdio e o peso cardíaco. Para análise confirmatória, o teste de Tukey-HSD demonstrou que a significância estatística se encontrava entre os pesos cardíacos dos pacientes chagásicos sem hipertensão e entre aqueles só hipertensos (tab. 7).

No que se refere ao grau de hipertensão e às complicações apresentadas pelos sujeitos dos grupos CH + HAS e HAS, não foi observada diferença significativa em relação ao grupo CH + HAS, mas essa diferença existiu em relação ao grupo HAS (tab. 8).

De um total de 92 pacientes chagásicos, 57 (62%) apresentavam lesão apical, sendo 18 (54,5%) no grupo CH + HAS e 39 (66,1%) no grupo CH, não havendo diferença estatisticamente significativa entre os grupos. Mas a diferença de freqüência de trombose intracardíaca foi significativa entre o grupo de hipertensos e o de chagásicos, hipertensos ou não. Nos pacientes do grupo CH + HAS, em 7 casos (100%) a trombose estava localizada na lesão apical contra 11 casos (42,3%) no grupo CH. Do total de 37 pacientes que apresentavam trombose intracardíaca, 4 (10,8%) também sofreram infarto do miocárdio e 5 (13,5%), acidente vascular cerebral. Não houve diferença estatística significativa na freqüência de trombose em relação ao peso cardíaco no grupo CH + HAS. O mesmo não ocorreu no grupo CH (peso cardíaco médio de 489,23 g e desvio padrão de 133,90 nos indivíduos com trombose e peso cardíaco médio de 408,03 g e desvio padrão de 163,84 nos indivíduos sem trombose), demonstrando que, nesse grupo específico, os pacientes com maior peso cardíaco foram os que apresentaram maior freqüência de trombose.

O quadro clínico final foi comparado em relação à trombose intracardíaca. Houve diferença estatisticamente significativa apenas no item de insuficiência cardíaca, quando comparados os chagásicos (tab. 9). O pequeno número de casos que apresentaram fibrilação atrial, outro conhecido fator trombogênico, não possibilitou análise estatística adequada.

Em relação às causas de óbito entre os pacientes estudados, foi observada diferença significativa quanto à compressão bulbar, sendo mais freqüente no grupo de não-chagásicos. Em relação às causas cardíacas, a arritmia apresentou diferença significativa, assim como o choque cardiogênico, tendo em ambos ocorrido maior porcentual no grupo CH. Para as outras causas de óbito, não houve diferença estatisticamente significativa. Quando as causas de morte foram analisadas separadamente em cada grupo, foram observadas diferenças significativas nos três grupos, com predomínio da arritmia cardíaca (tab. 10).

Discussão

A pesquisa da concomitância de doença de Chagas e hipertensão arterial é pertinente, decorrendo da conhecida presença de comprometimento neuronal, principalmente do sistema parassimpático, nos chagásicos. Essa alteração determina o desequilíbrio do sistema nervoso autônomo, causando maior atividade simpática, que pode influenciar a gênese da hipertensão arterial. Tratar-se-ia, portanto, de hipertensão arterial secundária, tornando possível um elo fisiopatológico entre as duas afecções.

Não existem estudos abrangentes no Brasil sobre a prevalência de hipertensão arterial. As médias pressóricas regionais no país variam de 16,1% a 37,1%14-21. A maior porcentagem foi encontrada na região de Campinas, no Estado de São Paulo, e foi de especial interesse, pois a região apresenta peculiaridades em relação à hipertensão arterial que a diferencia do restante do país.

No presente estudo, a freqüência de hipertensão foi de 32,7%. Os dados são semelhantes aos encontrados em pacientes chagásicos estudados clinicamente por Fragata22 (26,5%), Guariento e cols.6,7 (26,1%) e Gurgel e cols.23 (33,3%), e diferem substancialmente dos encontrados na Argentina por Palmero e cols.5. Estes últimos autores encontraram a ocorrência de cifras pressóricas mais baixas nos chagásicos em comparação à população geral, independentemente da presença de insuficiência cardíaca.

Andrade e Andrade24,25, estudando o sistema nervoso autônomo da doença de Chagas em animais de experimentação, concluíram haver comprometimento tanto do simpático como do parassimpático, de distribuição esparsa e quantitativamente não-homogênea, o que talvez contribua para explicar a controvérsia dos achados de hipertensão ou hipotensão arterial nos chagásicos. As lesões simpáticas e parassimpáticas encontradas estão em sintonia com nossa própria averiguação de que o mecanismo neurológico pode ser o responsável pelo aparecimento de hipertensão arterial, porém este não deve ser suficiente para determiná-la no chagásico hipertenso. Embora o método utilizado no presente estudo não permita concluir pela relação ou não entre sistema nervoso autônomo e hipertensão no chagásico crônico, uma vez que não foram estudados os plexos mioentéricos e a cadeia simpática, pode-se inferir que as evidências encontradas na literatura são mais favoráveis à não-participação como fator unicausal desse mecanismo na gênese da hipertensão arterial nesses pacientes. A grande freqüência de hipertensão arterial encontrada nesse material deve ser decorrente dos múltiplos fatores que contribuem para a mesma na região estudada. Neste estudo não foi observada diferença estatisticamente relevante para as diferenças registradas quanto ao gênero, revelando também a paridade entre homens e mulheres no material estudado. Assim, essa variável não influenciou as demais, uma vez que, segundo a literatura, tanto a hipertensão arterial como a doença de Chagas podem adquirir maior gravidade em doentes do sexo masculino26,27.

Não foi registrada diferença significativa quanto à raça na freqüência de hipertensão arterial nos três grupos estudados. Tal constatação demonstra que, embora conhecidamente possa influenciar a freqüência da hipertensão arterial, essa variável não foi relevante neste estudo. Constatou-se predomínio significativo do grau leve de hipertensão arterial (48,5%) somente no grupo de hipertensos chagásicos. Esse fato, associado à faixa etária, aproxima os casos deste estudo aos da hipertensão arterial essencial, uma vez que aquela gerada por desequilíbrio catecolamínico talvez devesse assemelhar-se ao que se observa no feocromocitoma. O fato de haver elevação dos níveis sistólico e diastólico também favorece essa disposição, pois a hipertensão gerada associada à descarga adrenérgica, como as situações de estresse emocional, caracteriza-se por predomínio do componente sistólico. Esse dado fica difícil de ser comprovado no presente material do grupo CH + HAS, uma vez que a cardiopatia chagásica miopática grave pode falsear tal resultado.

Houve diferença significativa, também, nos demais graus de hipertensão arterial, sendo a hipertensão arterial grave verificada principalmente entre os não-chagásicos (36,9%). Isso pode ser explicado pelo critério de escolha dos casos nesse grupo de pacientes. Para avaliação das observações anatomoclínicas, esses casos foram escolhidos pelo seu diagnóstico principal, ou seja, aquele que levou o indivíduo ao óbito. Assim, a hipertensão arterial seria, obviamente, mais grave nesses indivíduos, pois permitiu que se instalassem alterações que levaram ao óbito. Tais formas de estudo impossibilitam valorizar a gravidade dos níveis tensionais como fator relevante na classificação dos diferentes grupos.

Os demais itens discutidos referem-se à provável influência que uma doença pode ter na evolução natural de outra enfermidade associada.

A presença de hipertensão arterial concomitante nos chagásicos não alterou a expressão da forma clínica da doença de Chagas. A diferença na apresentação das formas clínicas foi estatisticamente insignificante nos grupos CH + HAS e CH, sendo a forma mista (dromopatia, batmopatia e miopatia associadas) predominante tanto no grupo CH + HAS (33,3%) como no grupo CH (37,3%). Esse resultado era esperado, já que o material estudado foi o de necropsia, supondo-se que os doentes devam ter apresentado quadro clínico mais grave. Nesse sentido, não foi possível constatar que a concomitância de hipertensão arterial tenha sido responsável pela mudança na história natural da doença de Chagas.

À avaliação eletrocardiográfica, observou-se que as extra-sístoles ventriculares foram significativamente mais freqüentes na concomitância ou não de hipertensão arterial. O mesmo não ocorreu em relação às extra-sístoles supraventriculares e à fibrilação atrial, presentes nos três grupos em freqüência equivalente. A grande freqüência de fibrilação atrial nos chagásicos (29% nos hipertensos e 20,7% nos não-hipertensos) pode ser atribuída ao grave estado clínico desses pacientes. Ambulatorialmente, esses pacientes registram essa arritmia de 1,8% a 2,5%28-30 e estão associados a mau prognóstico26,31. O mau prognóstico também é atribuído à presença de bloqueio completo de ramo esquerdo. Neste estudo, não houve aumento do número de casos com esse bloqueio entre os chagásicos hipertensos, fato que pode significar que os mecanismos determinantes não influenciaram a evolução da doença de Chagas quando a mesma se associou à hipertensão arterial.

A média dos pesos cardíacos nos três grupos foi equivalente, mas o grupo CH apresentou média de peso ligeiramente maior em relação ao grupo CH + HAS, sem evidenciar diferença estatisticamente significativa. Pode-se concluir que a concomitância das duas moléstias não determinou acréscimo de alterações miocárdicas importantes, as quais poderiam justificar peso maior dos corações nos pacientes do grupo CH + HAS. No grupo HAS, entretanto, foi observado maior número de infartos do miocárdio naqueles que apresentavam maior peso cardíaco.

Neste estudo, no que se refere às obstruções coronarianas, não houve diferença significativa quanto ao grau de aterosclerose entre os grupos CH + HAS e HAS, porém no grupo CH houve predomínio significativo de aterosclerose leve. Sem o fator hipertensão, as coronárias estiveram significativamente livres de obstruções em 40 casos (74%). Esse dado demonstra que o fator hipertensão arterial teve influência decisiva no aparecimento da aterosclerose, tanto nos chagásicos como nos não-chagásicos.

Em relação às complicações de origem cardiovascular, não foi observada diferença significativa quanto ao número de infartos do miocárdio ou cerebrais, não havendo influência das variáveis sexo ou idade. O grau de hipertensão arterial foi primordial e estatisticamente significativo para o aparecimento dessas complicações apenas no grupo HAS, havendo maior freqüência de complicações naqueles indivíduos com a forma grave, o mesmo não ocorrendo nos chagásicos hipertensos. Aliás, hipertensão arterial grave não foi um achado freqüente entre os chagásicos que apresentaram alguma complicação cardiovascular. O mecanismo que leva ao infarto do miocárdio nos chagásicos parece diferir daquele observado nos hipertensos, à medida que pode decorrer de fenômenos embólicos originados, de maneira geral, na ponta do ventrículo esquerdo32. O acidente vascular cerebral também tem origem principalmente embólica33, tendo sido encontrado, neste estudo, em freqüência alta nos grupos CH + HAS e CH (30,3% e 11,9%, respectivamente), sem haver diferença estatisticamente significativa entre ambos. A ausência de significância estatística no número de infartos do miocárdio e cerebrais entre os grupos de chagásicos permitiu concluir que a concomitância de hipertensão arterial, mais uma vez, não mostrou influenciar a história natural da tripanossomíase.

Lesão apical chagásica esteve presente nos indivíduos dos grupos CH + HAS e CH de maneira semelhante (54,5% e 66,1%, respectivamente), a maior parte tendo sido encontrada no ventrículo esquerdo. Não houve, portanto, influência da hipertensão arterial na evolução da lesão apical, presente na cardiopatia chagásica. Esta deve continuar sendo importante para o diagnóstico de cardiopatia chagásica em hipertensos.

Dos 92 casos de chagásicos estudados, 33 (35,9%) apresentaram trombose intracardíaca comparativamente a apenas 8,7% dos hipertensos não-chagásicos. Em 100% dos casos no grupo CH + HAS, a trombose estava localizada na lesão apical. O mesmo achado foi observado em 42,3% dos casos no grupo CH e em 100% dos casos do grupo HAS a trombose estava localizada em uma das aurículas. Foi encontrada significância estatística apenas no grupo CH: quanto maior o peso cardíaco maior a freqüência de trombose. O quadro clínico final dos chagásicos foi a insuficiência cardíaca congestiva (63,6%), que, provavelmente, foi o fator preponderante para a maior freqüência de trombose intracardíaca, além da presença de lesão apical. A falência cardíaca foi, portanto, fator primordial para o aparecimento de trombose intracardíaca nos chagásicos, em especial nos não-hipertensos. A fibrilação atrial esteve presente principalmente no grupo de hipertensos, chagásicos ou não. A casuística, em decorrência do reduzido número de casos (três no grupo CH + HAS, quatro no grupo CH e dois no grupo HAS), não permitiu estatística adequada. Nos chagásicos, hipertensos ou não, as causas de óbitos que prevaleceram foram as cardíacas: no grupo CH + HAS, arritmia cardíaca; e no grupo CH, choque cardiogênico. No entanto, no grupo HAS, 62,2% dos pacientes morreram secundariamente à compressão bulbar.

Conclusão

Por meio deste estudo, pode-se concluir que: 1) a hipertensão arterial apresentou freqüência semelhante em chagásicos crônicos que faleceram e que foram submetidos a necropsia, quando comparados à população geral, conforme relato de literatura médica brasileira; 2) nos chagásicos crônicos submetidos a necropsia, a hipertensão arterial ocorreu nos casos de maior média de idade; e 3) a concomitância de hipertensão arterial e doença de Chagas não alterou a história natural de ambas as doenças.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Esse artigo é parte de tese de mestrado de Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel, pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.

Artigo recebido em 31/07/06; revisado recebido em 20/02/07; aceito em 13/03/07.

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  • Correspondência:
    Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Recebido
      31 Jul 2006
    • Revisado
      20 Fev 2007
    • Aceito
      13 Mar 2007
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