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Caso 5/2007: mulher de 71 anos de idade, portadora de hipertensão arterial e diabete melito, com hipertrofia ventricular esquerda e dor epigástrica

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 5/2007 - mulher de 71 anos de idade, portadora de hipertensão arterial e diabete melito, com hipertrofia ventricular esquerda e dor epigástrica

Luciana Freitas Feitosa; André Coelho Marques; Luiz Alberto Benvenuti

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 – São Paulo, SP E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Hipertensão, idoso, diabete melito, hipertrofia ventricular esquerda, dor abdominal.

Paciente do sexo feminino, de 71 anos de idade, procurou atendimento médico por desconforto epigástrico de um dia de duração.

A paciente foi examinada neste Hospital pela primeira vez aos 68 anos de idade (jun. 2002). Na ocasião, queixou-se de dispnéia desencadeada por esforços habituais havia um ano, acompanhada de desconforto precordial e sudorese. Também queixou-se de dor em panturrilhas desencadeada por esforços habituais.

A paciente sabia ser portadora de hipertensão arterial, diabete melito e dislipidemia. Aos 38 anos de idade havia sido submetida a gastrectomia por úlcera péptica.

O primeiro exame físico (jun. 2002) mostrava peso 93 kg; altura 1,62 m; índice de massa corpórea 35,5 kg/m2; freqüência cardíaca 88 batimentos por minuto; pressão arterial 170/110 mmHg. O exame pulmonar foi normal, e o cardíaco revelou sopro sistólico +++/4+, de caráter ejetivo, em área aórtica, irradiando-se para a região do choque da ponta do coração. O exame do abdome foi normal. Havia diminuição de pulsos em membros inferiores.

O eletrocardiograma (29/05/2002) revelou ritmo sinusal, freqüência cardíaca 66 batimentos por minuto, bloqueio atrioventricular de 1º grau, sobrecarga de câmaras esquerdas, distúrbio de condução intraventricular do estímulo, tipo bloqueio ramo esquerdo e alteração do segmento ST e da onda T (fig. 1).


A avaliação laboratorial (maio 2002) revelou hemoglobina 13,4 g/dl, hematócrito 40%, creatinina 0,9 mg/dl, sódio 139 mEq/l e potássio 4,8 mEq/l.

O cateterismo cardíaco (17 maio 2002) revelou pressões normais de ventrículo esquerdo (140/0/14 mmHg) e de aorta (140/70 mmHg). A cinecoronariografia e a ventriculografia esquerda foram normais.

Foram feitos os diagnósticos de cardiopatia hipertensiva, diabete melito tipo II, hipertensão arterial sistêmica, obesidade e dislipidemia. Foi formulada também a hipótese diagnóstica de cardiomiopatia hipertrófica e indicado o ecocardiograma.

Foi recomendado o tratamento com ácido acetilsalicílico 200 mg, enalapril 10 mg, hidroclorotiazida 25 mg, ranitidina 300 mg, sinvastatina 40 mg, atenolol 100 mg e insulina 65 U via subcutânea de manhã e 15 U à noite.

Avaliação laboratorial subseqüente (jan. 2003) revelou colesterol 302 mg/dl (HDL-colesterol 39 mg/dl, LDL-colesterol 195 mg/dl), triglicérides 338 mg/dl; glicemia jejum 176 mg/dl, hemoglobina glicada 13,8%. A depuração de creatinina era 89 ml.kg –1.min-1.

A paciente foi atendida ambulatorialmente (27/06/2002, 4/02/2003, 28/10/2003, 3/08/2004) e evoluiu com melhora dos sintomas com a medicação que usava, permanecendo, entretanto, com falta de ar desencadeada por esforços grandes. Todavia, a paciente não chegou a ser submetida a ecocardiograma.

Três anos depois do primeiro atendimento, procurou socorro médico por desconforto epigástrico de um dia de duração, acompanhado de pré-síncope, náuseas, vômitos e sudorese. Não houve piora da dispnéia.

O exame físico (9.6.2005) revelou pulso regular, 68 batimentos por minuto, pressão arterial 120/80 mmHg. O exame físico de pulmões, coração e abdome foi normal.

A paciente fazia uso de enalapril 20 mg, hidroclorotiazida 50 mg, atenolol 100 mg, omeprazol 20 mg, sinvastatina 10 mg e metformina 850 mg diários.

O eletrocardiograma mostrou (12h, 09/06/2005) ritmo sinusal, freqüência cardíaca 56 bpm, bloqueio atrioventricular de 1° grau, duração de QRS de 140 ms. Havia distúrbio de condução intraventricular do estímulo, tipo bloqueio ramo esquerdo (fig. 2).


Ao ecocardiograma (09/06/2005) o septo interventricular mediu 17 mm; a parede posterior do ventrículo esquerdo, 15 mm; o ventrículo esquerdo (diástole/sístole), 44/26 mm; a aorta, 27 mm; e o átrio esquerdo, 47 mm. A valva mitral apresentava movimento anterior sistólico e insuficiência moderada. Foi diagnosticado gradiente de pressão intraventricular esquerdo, não aferido por dificuldade técnica. Havia insuficiência tricúspide moderada. A pressão sistólica de ventrículo direito foi estimada em 56 mmHg. Não havia alterações pericárdicas, nem de valvas aórtica e pulmonar.

Novo eletrocardiograma revelou (5h, 10/06/2005) flutter atrial com bloqueio atrioventricular 5:1, alargamento de QRS (127 ms) e alterações de repolarização ventricular (fig. 3).


A avaliação laboratorial (09/06/2005) mostrava creatinina 3 mg/dl; uréia 150 mg/dl; hemoglobina 12,2 g/dl; hematócrito 37%; leucócitos 22.600 (bastonetes 10%, segmentados 80%, linfócitos 4% e monócitos 5%); o exame de urina revelou leucocitúria 260.000/ml e hematúria 60.000/ml, além de glicosúria 27 g/l.

A paciente evoluiu com choque séptico, atribuído a foco infeccioso urinário, rebaixamento de consciência necessitando intubação orotraqueal para suporte respiratório. A manobra foi de difícil consecução e a paciente apresentou parada cardiorrespiratória em bradicardia, que passou a assistolia sem que houvesse resposta às manobras de ressuscitação (7h, 10/06/2005).

Aspectos clínicos

Trata-se de paciente do sexo feminino, idosa, hipertensa, diabética, dislipidêmica e obesa, que iniciou o acompanhamento médico aos 68 anos de idade, com queixa de dispnéia aos esforços habituais, desconforto precordial e sudorese. As inúmeras comorbidades apresentadas pela paciente constituem fatores de risco bem estabelecidos da doença arterial coronariana¹, devendo ser essa a principal suspeita clínica inicial.

Apesar de a doença arterial coronariana ser tão prevalente no mundo inteiro, há grande dificuldade diagnóstica em pacientes idosos, principalmente pelas diferentes formas de manifestação nesse grupo específico¹. Nos idosos, a típica angina relacionada aos esforços ocorre em menos da metade dos portadores de doença arterial coronariana. A manifestação da angina pode ser menos intensa, ou até mesmo não ocorrer, sendo muito freqüente a presença de equivalentes anginosos, como a dispnéia. Até a idade de 65 anos, a prevalência da doença arterial coronariana sintomática é maior no sexo masculino que no feminino, tornando-se equivalente em ambos os sexos após essa idade.

Ainda com relação à história da paciente, a manifestação de dispnéia aos esforços, além de equivalente isquêmico, poderia tratar-se de manifestação inicial de insuficiência cardíaca. Devemos lembrar, ainda, que a paciente apresentava múltiplos fatores de risco para doença aterosclerótica, o que pode justificar a presença de placas ateromatosas em vasos periféricos, explicando sintomas compatíveis com claudicação intermitente.

Ao exame físico, havia obesidade grau II e hipertensão arterial sistêmica estágio III, com pressão arterial diastólica de 110 mmHg. É importante lembrar que dor precordial pode ocorrer em pacientes com hipertensão arterial não controlada, em razão de aumento da tensão da parede ventricular esquerda, redução da reserva coronariana e elevação da pressão diastólica final do miocárdio²-4. Foi descrita ainda, durante o exame físico, a presença de um sopro sistólico grau III/VI de caráter ejetivo em foco aórtico, com irradiação para região da ponta do coração. Sabe-se que é muito comum nessa faixa etária a presença de calcificações em valva aórtica, justificando a presença do sopro, além de ser a causa mais comum de estenose aórtica no idoso, compartilhando os mesmos fatores de risco da doença aterosclerótica5. No entanto, a irradiação classicamente descrita nesses casos faz-se em direção às carótidas e não para a ponta do coração. Tal característica, numa paciente hipertensa, faz-nos suspeitar de hipertrofia miocárdica importante, com componente de obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo.

O eletrocardiograma inicial revelava, como esperado, sinais de hipertrofia ventricular esquerda.

Em razão da alta probabilidade de doença arterial coronariana, foi solicitada, na ocasião, cineangiocoronariografia. De forma surpreendente, o exame não revelou obstrução arterial ou gradientes pressóricos entre ventrículo esquerdo e aorta, o que torna improváveis os diagnósticos de doença arterial coronariana e estenose aórtica. Os sintomas seriam então todos atribuídos à presença da hipertrofia ventricular esquerda.

A paciente foi corretamente medicada com ácido acetilsalicílico (AAS), inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA), hidroclorotiazida, estatina, betabloqueador, insulina e protetor gástrico.

É importante ressaltar que, mesmo na ausência de evidência de doença arterial coronariana estabelecida, o uso do AAS é imperativo pela multiplicidade de fatores de risco apresentados pela paciente, associados ao diabete, conforme preconizado pelas diretrizes da American Diabetes Association. Quanto aos agentes anti-hipertensivos empregados, também estão de acordo com as normas estabelecidas pelas diretrizes nacionais de tratamento de hipertensão, que preconizam o uso de diuréticos tiazídicos associados ao IECA como boas opções para uso inicial em pacientes com hipertensão grave, além dos já conhecidos benefícios do uso de IECA para pacientes diabéticos2.

Pacientes portadores de hipertrofia miocárdica beneficiam-se com o uso de beta bloqueadores, pois esses agentes, ao reduzirem a freqüência cardíaca, prolongam o tempo de enchimento ventricular3.

A avaliação subseqüente da paciente, no entanto, mostrou que as metas de controle de perfil lipídico e glicemia de jejum não foram alcançadas, a despeito de medicação apropriada. Apesar disso, houve melhora significativa dos sintomas cardiovasculares no retorno ambulatorial.

Durante o acompanhamento dessa paciente foram levantadas as suspeitas de miocardiopatia hipertensiva e de miocardiopatia hipertrófica primária.

Três anos após a consulta inicial, a paciente retornou ao hospital com sintomas de desconforto epigástrico, pré-síncope, náuseas, vômitos e sudorese, sem piora associada da dispnéia. O exame físico mostrava, além de controle adequado da pressão arterial, exame físico segmentar normal. O eletrocardiograma dessa ocasião mostrava um bloqueio atrioventricular do primeiro grau, além de distúrbio de condução intraventricular tipo bloqueio de ramo esquerdo, preexistente.

Nesse momento foi realizado então o ecocardiograma, que mostrou hipertrofia ventricular simétrica, ventrículo esquerdo de dimensões normais e aumento do átrio esquerdo; havia ainda presença de movimento anterior sistólico da valva mitral, insuficiência mitral moderada e gradiente de pressão intraventricular esquerdo.

O resultado do ecocardiograma confirmou a suspeita já existente de hipertrofia ventricular. No entanto, permanecia a dúvida da etiologia da hipertrofia, sendo a causa mais provável a própria HAS, mas devendo-se também considerar outras causas, como a miocardiopatia hipertrófica primária e as doenças infiltrativas do miocárdio, como amiloidose.

A hipertrofia miocárdica é uma alteração inicial no curso do desenvolvimento da insuficiência cardíaca. A hipertensão arterial sistêmica provoca alterações estruturais do ventrículo esquerdo, que se manifestam como hipertrofia e rigidez. A partir daí, uma variedade de disfunções se segue, como diminuição da capacidade vasodilatadora coronariana, aumento da demanda metabólica do miocárdio sem aumento correspondente da oferta, disfunção diastólica, e, por fim, disfunção sistólica do ventrículo esquerdo4. Até 40% dos casos de insuficiência cardíaca nos pacientes hipertensos são relacionados a disfunção diastólica isolada do ventrículo esquerdo. O ecocardiograma constitui um exame mais acurado e sensível para identificação de hipertrofia ventricular do que o eletrocardiograma. A principal causa de hipertrofia ventricular é a miocardiopatia hipertensiva; a hipertrofia ventricular nesses pacientes é tipicamente simétrica e concêntrica, como descrito na paciente em questão.

A cardiomiopatia hipertrófica primária é uma doença caracterizada por hipertrofia do miocárdio, que determina aumento da espessura das paredes sem dilatação ventricular, na ausência de outras condições que possam justificar a hipertrofia, como hipertensão arterial sistêmica, estenose aórtica, coarctação de aorta, entre outras6. É, portanto, um diagnóstico de exclusão. É transmitida de forma genética autossômica dominante, sendo a doença cardíaca mais comumente transmitida geneticamente. As mutações levam a modificações anatômicas que determinam disfunções, como alteração do relaxamento ventricular, isquemia e obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo. A doença costuma ser diagnosticada entre os 30 e 40 anos de idade, embora seja também encontrada desde natimortos a octogenários.

A maioria dos pacientes é assintomática (cerca de 80%), porém muitas vezes a morte súbita pode ser a única manifestação da doença, especialmente em pacientes jovens. Os sintomas são, por ordem de freqüência: dispnéia, precordialgia, palpitações, síncope e pré-síncope7. A intensidade de cada um deles depende da combinação dos quatro componentes fisiopatológicos, que são a disfunção diastólica, a isquemia, as arritmias e a obstrução. As palpitações são queixa comum e decorrem das arritmias ventriculares e supraventriculares freqüentes nessa doença. Nem sempre os sintomas da cardiomiopatia hipertrófica têm relação direta com o grau de obstrução da via de saída do VE, ou seja, alguns pacientes com hipertrofia grave podem permanecer assintomáticos por muitos anos; em outro extremo, a morte súbita pode ser sua manifestação inicial8. Em pacientes assintomáticos e sem obstrução na via de saída do ventrículo esquerdo, o exame físico costuma ser normal. Nas formas obstrutivas, muitas vezes o sopro da cardiomiopatia hipertrófica é similar ao da estenose aórtica, e uma das formas de diferenciá-los é pela irradiação, que se faz para a ponta do coração, ao invés do pescoço9. O eletrocardiograma de repouso está alterado em 90% dos pacientes, e não há um padrão característico da doença.

Os principais achados são sobrecarga de ventrículo esquerdo, com alteração do segmento ST e inversão da onda T, sobrecarga atrial esquerda e ondas Q anormais. É também freqüente a presença de bloqueios e atraso de condução intraventricular10-11. O ecocardiograma constitui exame fundamental para diagnóstico da cardiomiopatia hipertrófica, sendo os achados mais comuns: espessamento do ventrículo esquerdo, principalmente do septo interventricular, ou seja, do tipo assimétrico, maior que 15 mm, ou relação entre septo e parede posterior >1,3; a hipertrofia miocárdica é assimétrica em 2/3 dos casos; nos restantes, é difusa e concêntrica ou afeta um ou mais segmentos isolados do ventrículo esquerdo. Outras alterações sugestivas são movimento anterior sistólico da valva mitral, cavidade ventricular pequena e átrio esquerdo aumentado10. Apesar de o movimento anterior sistólico mitral ser um importante achado na doença, ele também pode ocorrer na hipertrofia de ventrículo esquerdo secundária à hipertensão arterial, no coração do atleta e em disfunção da valva mitral, principalmente quando a extensão do folheto posterior é excessivamente longa.

Os pacientes jovens assintomáticos devem ser acompanhados clinicamente e com controle ecocardiográfico anual. Nos pacientes sintomáticos, a seqüência proposta atualmente é de tratamento clínico (com betabloqueadores ou bloqueadores dos canais de cálcio), marcapasso atrioventricular, oclusão do ramo septal da artéria descendente anterior pelo álcool e cardiomiectomia8. Há ainda situações de indicação de cardiodesfibrilador implantável em pacientes com arritmias ventriculares complexas, ou em pacientes com vários fatores de risco para morte súbita, como morte recuperada, síncope recorrente, idade menor que 20 anos e espessura miocárdica maior que 35 mm9.

Na paciente em questão, alguns aspectos apontam a favor do diagnóstico de miocardiopatia hipertrófica: sintomas de dispnéia e dor precordial, presença de sopro sistólico em foco aórtico, com irradiação para região da ponta do coração, evidência de sobrecarga de VE e distúrbios de condução no eletrocardiograma, melhora importante dos sintomas com o uso do betabloqueador, além dos achados ecocardiográficos: septo de 17 mm, cavidades ventriculares pequenas, átrio esquerdo aumentado, movimento anterior sistólico da valva mitral e gradiente de pressão intraventricular.

Outros aspectos, no entanto, falam contra esse diagnóstico, como: idade, história de hipertensão - outra causa que justifica a hipertrofia - e o fato de ela ser simétrica (relação septo/parede livre = 1,1).

Por fim, devem-se ainda considerar as causas infiltrativas de espessamento da parede ventricular na relação de diagnósticos diferenciais, como a cardiomiopatia da amiloidose, que é a mais comum.

O acometimento cardíaco da amiloidose deve-se à infiltração miocárdica por proteínas amilóides, que têm baixo peso molecular e são consideradas subunidades protéicas derivadas de proteínas normais ou aberrantes12. A classificação da amiloidose é baseada na estrutura química das fibrilas amilóides; a forma primária é decorrente do depósito de imunoglobulinas de cadeia leve; a secundária decorre de depósito reativo de imunoglobulinas denominadas de amilóide A e é associada a doenças crônicas, infecciosas e inflamatórias. As formas familiar e senil são entidades distintas e não devem ser confundidas com amiloidoses secundárias. O envolvimento cardíaco na amiloidose ocorre independentemente da etiologia da infiltração amilóide, geralmente associada a acometimentos de outros órgãos. Depósitos de substância amilóide podem ocorrer nos elementos contráteis, sistema de condução, valvas e artérias coronárias. O acometimento cardíaco ocorre em até 1/3 dos casos de amiloidose, sendo a maioria dos casos da forma primária.

As formas de apresentação clínica são variadas, desde insuficiência cardíaca congestiva, cardiomiopatia restritiva, cardiomiopatia hipertrófica, fibrilação atrial, distúrbios de condução, taquicardia ventricular, angina, disfunções valvares, síncope e até morte súbita por fibrilação ventricular12. No ECG observam-se baixa voltagem de complexo QRS, alterações de repolarização e distúrbios de condução. O ecocardiograma mostra pontos de hiper-refringência disseminados pelo músculo cardíaco e aparelho valvar. A valva mitral é a mais acometida. A biópsia endomiocárdica de ventrículo direito é o método diagnóstico que permite a caracterização histológica da substância amilóide. A evolução clínica individual é imprevisível. A deposição de substância amilóide é mais rápida em pacientes jovens com amiloidose primária, e mais lenta nos casos de amiloidose senil. O tratamento da amiloidose baseia-se na detecção da desordem subjacente e controle dos sintomas.

Alguns aspectos no caso descrito favorecem o diagnóstico, tais como idade avançada da paciente, propensão a arritmias como fibrilação atrial e flutter, presença de bloqueios atrioventriculares, sintomas como dispnéia e dor precordial, e aumento da espessura ventricular ao ecocardiograma. No entanto, aspectos que falam contra esse diagnóstico são: os critérios de alta voltagem no ECG, ausência de achados sugestivos ao ecocardiograma.

A paciente em questão deu entrada ao hospital com dor epigástrica, náuseas, vômitos e sudorese, sem sinais de congestão pulmonar. No novo ECG foi identificado flutter atrial. Na avaliação laboratorial houve piora importante da função renal e leucocitose de 22.600, com desvio à esquerda (10% de bastões). O resultado da análise da urina nos faz suspeitar de choque séptico de foco urinário. A freqüência cardíaca de 68 bpm nessa situação, em que esperaríamos taquicardia, é justificada pelo uso de betabloqueadores. É importante ainda lembrar que em pacientes idosos os quadros infecciosos costumam manifestar-se na ausência de febre, como no caso descrito. Na tentativa de intubação, a paciente apresentou bradicardia provavelmente secundária a hipóxia, e conseqüente assistolia, evoluindo então para óbito.

(Dra. Luciana Freitas Feitosa, Dr. André Coelho Marques)

Hipótese diagnóstica

Causa do óbito: choque séptico de foco urinário.

Doença circulatória: hipertensão arterial com miocardiopatia hipertensiva; com menor probabilidade miocardiopatia hipertrófica primária e, mais remotamente, miocardiopatia infiltrativa.

(Dra. Luciana Freitas Feitosa, Dr. André Coelho Marques)

Necropsia

O coração mostrava-se moderadamente aumentado de volume, tendo pesado 552 g, e exibia hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo (fig. 4). A parede livre dessa câmara e o septo ventricular (região basal) apresentavam espessura de 20 e 27 mm, respectivamente. Havia espessamento endocárdico irregular, com aspecto de placa esbranquiçada na via de saída do ventrículo esquerdo e correspondente espessamento fibroso da cúspide anterior da valva mitral (fig. 5). O exame histológico do miocárdio evidenciou hipertrofia dos cardiomiócitos do ventrículo esquerdo, que apresentavam extensas áreas de desarranjo dessas células, tanto na parede livre como no septo ventricular, perfazendo cerca de 15% a 20% da área amostrada (fig. 6). Havia ainda discreta miocardioesclerose e focos de miocitólise liquefativa no miocárdio do ventrículo esquerdo, predominando em região subendocárdica, além de nítido espessamento da parede de arteríolas intramurais (fig. 6). As artérias coronárias epicárdicas não apresentavam lesões ateroscleróticas significativas.




Havia cálculo único impactado na pelve do rim esquerdo, medindo 12 mm. O rim esquerdo pesou 206 g, mostrando ao exame histológico pielonefrite aguda caracterizada por extenso infiltrado inflamatório neutrofílico intratubular e intersticial, presente na cortical e medular, com formação de microabcessos (fig. 7).


A aorta exibia aterosclerose discreta, com raras placas calcificadas. Havia esteatose hepática, assim como aspecto reacional desse órgão e também do baço. Encontrou-se cálculo único preenchendo a vesícula biliar, medindo 55 mm.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Diagnósticos anatomopatológicos

Cardiomiopatia hipertrófica, com discreta assimetria septal; calculose urinária; calculose da vesícula biliar; pielonefrite aguda à esquerda (causa do óbito).

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Comentários

Caso de mulher com 71 anos de idade, apresentando hipertensão arterial sistêmica, diabete melito, dislipidemia, obesidade e evidências de hipertrofia ventricular esquerda aos exames subsidiários. Apresentou melhora dos sintomas com medicação, e três anos após o primeiro atendimento foi internada com infecção urinária, evoluindo com choque hemodinâmico e óbito.

A necropsia revelou hipertrofia ventricular esquerda concêntrica, ou seja, sem dilatação, que à primeira vista poderia ser secundária à hipertensão arterial sistêmica. Entretanto, o diagnóstico diferencial entre cardiopatia hipertensiva e cardiomiopatia hipertrófica foi necessário nesse caso, concluindo-se pelo último. Assim, temos que o espessamento fibroso da cúspide anterior da valva mitral, com lesão "em espelho" no endocárdio da via de saída do ventrículo esquerdo, presente no atual caso, apesar de sugestivo, não é patognomônico da cardiomiopatia hipertrófica13. Da mesma forma, a discreta assimetria septal encontrada, com relação septo/parede livre de 1,35, também pode ocorrer na cardiopatia hipertensiva13. Entretanto, o exame histológico do miocárdio, revelando extenso desarranjo de cardiomiócitos, presente em 15% a 20% da área amostrada do ventrículo esquerdo, selou o diagnóstico da cardiomiopatia. É importante notar que o desarranjo pode ocorrer na hipertrofia miocárdica secundária, como na cardiopatia hipertensiva; porém, nesses casos, ele não é exuberante, ocorrendo no máximo em 5% da área ventricular13-15. Outro achado histológico interessante descrito na cardiomiopatia hipertrófica e presente no caso apresentado é o acentuado espessamento da parede de arteríolas coronárias intramurais, que pode contribuir para a gênese de isquemia miocárdica16.

A causa terminal do óbito foi infecção urinária com pielonefrite aguda, devendo-se salientar a presença de obstrução fixa, com grande cálculo impactado na pelve renal esquerda. Além disso, a paciente era portadora de diabete melito, que sabidamente é fator predisponente a complicações infecciosas. Interessante notar que apesar da presença de vários fatores de risco, não havia aterosclerose grave da aorta ou das artérias coronárias epicárdicas, que apresentavam luz ampla.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Referências

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Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br) Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

  • Correspondência:

    Vera D. Aiello
    InCor – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 – São Paulo, SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2007
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