PONTO DE VISTA
Narciso e o ecocardiografista
Max Grinberg; Wilson Mathias Jr.
Instituto do Coração do HC, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) - São Paulo, SP - Brasil
Correspondência Correspondência: Wilson Mathias Junior Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 - Cerqueira César 05403-000, São Paulo, SP - Brasil E-mail: wmathias@cardiol.br, wmathias@incor.usp.br
Palavras-chave: Ética, mitologia, ecocardiografia.
Eco era o nome dela, a ninfa dos bosques e das fontes que se apaixonou por Narciso. Não correspondida, desesperou-se, definhou, morreu e se transformou num rochedo. Da vida ficou a voz (Eco) que respondia ao ser chamada.
Essa passagem da mitologia grega tem eco na cardiologia e sua pertinência exige a outra parte da história. Nemesis, guardiã do excesso de altivez que desperta a ira dos deuses por comprometer o equilíbrio do universo, resolveu vingar a mulher desprezada e puniu Narciso. Ela fez que ele permanecesse extasiado diante da beleza do seu rosto refletido na água. Indiferente a tudo, Narciso não conseguiu tirar o olhar da sua imagem até morrer; no lugar floresceu um narciso, essa flor ornamental muito cultivada no mundo.
O simbolismo do mito contribui para estruturar reflexões sobre os impactos da realidade da cardiologia ao nosso redor.
O mérito acadêmico associa-se ao ensino, pesquisa e extensão, conjuga-se à ciência e à tecnologia, fortalece-se na inter e na multidisciplinaridade e reconhece-se na pluralidade de métodos para satisfazer a diversidade de objetivos.
A ecocardiografia preenche esses quesitos. Ela nos faz aprender anatomia, fisiologia, fisiopatologia e outras disciplinas; ela contribui para desenvolver a expansão das fronteiras do conhecimento em vários temas da cardiologia; ela é imprescindível como tecnologia médica, mas gera tensões no ordenamento propedêutico.
A ecocardiografia é multíplice pela reunião de métodos desde o unidimensional e plural para o cardiologista acompanhar história natural, construir diagnóstico, ajustar terapêutica, projetar prognóstico, orientar-se na excelente ou na má-qualidade de vida, tomar decisões na eletividade, urgência e emergência e conduzir-se por momentos estratégicos tão distintos quanto ciclo gravídico-puerperal, endocardite infecciosa e trans-operatório.
A ninfa Eco não foi valorizada por Narciso. O coletivo dos ecocardiografistas, portanto, não deve exceder a chamada forma benigna do narcisismo, em que o justificável orgulho da competência tecnocientífica em nível de capacitação para o estado da arte é equilibrado com atitudes de profundo interesse quanto às realidades do processo de trabalho a subespecialidade integrada às demais e do objeto das ações o paciente em sintonia com o médico solicitante.
Esse realismo deve acontecer de modo congênito na formação "transduterina" do ecocardiografista. O iniciante precisa ser conscientizado de que o exame é uma ferramenta para a objetividade, o raciocínio crítico e a atitude clínico-científica1,2; ademais, ele necessita ser prontamente alertado sobre a ilusão da onipotência e da onisciência, até porque a percepção varia de observador para observador.
Saber ecocardiografia não é a mesma coisa que saber interpretar imagens, é preciso mentalizar um "diálogo" com a pluralidade das expressões clínicas dos cardiologistas.
O goldstandard da interpretação do ecocardiograma como um todo transcende a reiteração do acúmulo de exames. Os ajustes da expertise beneficiam-se das correlações anatomopatológicas ou cirúrgicas e devem ser estimuladas.
A ecocardiografia é um bem propedêutico com finalidade universalmente definida, espaço circunscrito pelo cumprimento de excelência e passível de virar malefício caso interpretada de modo dissociado da realidade clínica. No contraponto, cabe ao clínico o endosso contextual do laudo do exame e o transformar, de modo equilibrado, em sua convicção. Pois, em condições normais de raciocínio clínico, a tomada de decisão pós-exame, na verdade, já está estruturada no pré-exame.
A noção de ecocardiografia como indissociabilidade entre ciência, tecnologia e humanismo deve permear as lições elementares e avançadas para o aprendizado dessa subespecialidade. É essencial comprometer-se mais com a informação que realizo do que com o método que tenho. Faz parte dos princípios da Responsabilidade Estou ciente do que fiz e da Prudência o compromisso com o amanhã (do paciente e dos cardiologistas).
O reconhecimento das realidades além das nossas significa respeito aos demais métodos. A paixão pela técnica não deve fazer que ela prevaleça a ponto de extrapolar a limitação do campo de visão que dispõe.
A expressão A Clínica é soberana, o Eco é poderoso3 traduz o reconhecimento que a ecocardiografia tem competências de documentação (D) de dados já identificadas pela propedêutica física, interpretação (i) esclarecimento de um quadro clínico (etiopatogenia de edema agudo de pulmão, por exemplo) com dificuldades de avaliação cardíaca conjuntiva (c), pela qual acresce dados úteis, como o porcentual de encurtamento ventricular esquerdo e a área valvar estenótica e atributiva (a), em que a ecocardiografia reina soberana e dá poder clínico, invertendo a expressão acima como a vegetação da endocardite infecciosa. Dica, portanto.
Enxergar a realidade do ser paciente individualmente e da equipe de saúde coletivamente é missão de quem trabalha com imagem e se preocupa com a auto-imagem corporativa4.
Eliminar qualquer tendência de hiper-insuflação do Narciso é lema humanístico aplicável a todos os centros de formação de ecocardiografista.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação Acadêmica
Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
Artigo enviado 11/12/07; revisado recebido em 04/01/08; aceito em 04/01/08.;
- 1. Popp RJ, Smith SC Jr, Adams RJ, Antman EM, Kavey RE, De Maria AN, et al. ACCF/AHA Consensus Conference Report on professionalism and ethics. Circulation. 2004; 110: 2506-49.
- 2. Otto CM. Textbook of clinical of echocardiography. 2nd ed. Philadelphia: WB Saunders; 2002.
- 3. Grinberg M. Acaso da beira do leito, causo da bioética. Arq Bras Cardiol. 2006; 87 (6): e257-e261.
- 4. Grinberg M. Fidelidade ao bom senso. Arq Bras Cardiol. 1997; 69 (6): 373-4.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Jul 2008 -
Data do Fascículo
Jul 2008