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Caso 6/2008: homem de 54 anos com hemiparesia e convulsões desde a infância evoluindo com insuficiência cardíaca 10 anos após dor precordial com coronariografia normal

Dor precordial; insuficiência cardíaca; paresia; convulsões

CORRELAÇÃO ANATOMO-CLÍNICA

Caso 6/2008 - homem de 54 anos com hemiparesia e convulsões desde a infância evoluindo com insuficiência cardíaca 10 anos após dor precordial com coronariografia normal

Gustavo Freitas Feitosa; Ricardo D'Oliveira Vieira; Paulo Jorge Moffa; Reynaldo Amato; Sérgio Rosemberg; Vera Demarchi Aiello

Instituto do Coração (InCor) HC-FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 – São Paulo, SP E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Dor precordial, insuficiência cardíaca, paresia, convulsões.

Introdução

Paciente masculino de 54 anos encaminhado ao atendimento médico de emergência em razão de dispnéia intensa.

De acordo com história clínica, o paciente era portador de seqüelas de anóxia perinatal. Apresentava dificuldade de fala, déficit motor e convulsões. Era portador de hipotireoidismo.

Aos 40 anos de idade, apresentou dor precordial súbita e intensa em pontada de 2h de duração. Em sua primeira consulta (janeiro de 1993), o exame físico de pulmões, coração e abdome foi normal. Havia diminuição de força e hipotrofia de muscultura de hemicorpo direito e dificuldade de deambulação.

O Eletrocardiograma (ECG) (6 de janeiro de 1993) revelou ritmo sinusal, freqüência de 68 bpm, intervalo PR de 120 ms, duração do QRS 120 ms, com lentidão inicial. O complexo era orientado a – 40º para trás. Havia bloqueio da divisão ântero-superior do ramo esquerdo e presença de supradesnivelamento em V1 e V2, a que foi interpretado como repolarização precoce. Havia infradesnivelamento em derivações esquerdas (V6) e inversão de onda T em I e aVL (Fig 1).


Os exames laboratoriais (janeiro de 1993) revelaram colesterol 215 mg/dl, triglicérides 150 mg/dl, glicemia 150 mg/dl, creatinina 1,1 mg/dl.

O paciente foi submetido a teste ergométrico, considerado sugestivo de isquemia, e a cinecoronariografia (janeiro de 1993), a qual não revelou alterações nas artérias coronárias. Na ventriculografia, diagnosticou-se hipocinesia discreta com aspecto hipertrófico de ventrículo esquerdo.

O ecocardiograma (maio de 1993) foi normal (Tab 1).

O holter de 24 horas revelou 387 extra-sístoles ventriculares, com 2 taquicardias ventriculares não sustentadas, sem sintomas.

A tomografia de crânio (1994) revelou hipoplasia de hemisfério cerebral esquerdo e assimetria de ventrículos laterais.

O paciente continuou a apresentar dores torácicas intensas, sem relação com esforço e foi medicado com amitriptilina.

Evoluiu sem queixas e sem registro de atendimentos médicos, até ser internado duas vezes em abril e junho de 2006, em razão de palpitações acompanhadas de mal estar geral e dispnéia. Após esses episódios, evoluiu com dispnéia aos esforços habituais e foi encaminhado ao InCor para reavaliação.

A investigação clínica incluiu ecocardiograma que revelou disfunção moderada de ventrículo esquerdo com fração de ejeção de 41%. A cinecoronariografia (25 de maio de 2006) não revelou lesões obstrutivas, diagnosticou-se hipocinesia difusa moderada na ventriculografia esquerda.

O exame físico (29 de agosto de 2006) revelou peso 45,3 kg, altura de 1,55m, freqüência cardíaca de 76 bpm e pressão arterial de 100x70 mmHg. O exame de pulmões, coração e abdome foi normal.

O eletrocardiograma (agosto de 2006) revelou bloqueio AV de primeiro grau, sobrecarga atrial esquerda, bloqueio de ramo esquerdo, grau de bloqueio divisional ântero-superior e área inativa ínfero-látero-dorsal.

O eletrocardiograma de alta resolução revelou QRS Standard 191.00 ms; QRS Filtrado: 71.00 ms (normal <100-114) e Abaixo 40 uV: 3.00 ms ( normal <35); 40 ms finais: 123.90 µV (> 20).

Os exames laboratoriais (agosto de 2006) revelaram creatinina de 1,32 mg/dl; glicose de 89 mg/dl; hemoglobina de 17,3 g/dL; hematócrito de 53%; VCM de 95 fl; leucócitos de 5.600/mm3 (neutrófilos 65%, eosinófilos 1%, basófilos 1%, linfócitos 25%, monócito 8%); plaquetas de 263.000/mm3; potássio de 5,8 mEq/l, sódio de 139 mEq/l; peptídeo natriurético atrial tipo b de 1.899 pg/ml; aspartato aminotransferase de 35 U/l, alanina aminotrasnferase de 50 U/l; colesterol total de 235 mg/dl; triglicérides de 123 mg/dl; HDL-colesterol de 37 mg/dl, LDL-colesterol de 173 mg/dl; potássio de 5,6 mEq/l; TSH de 21,4 µUI/ml e T4 livre de 1,2 ng/dl.

O ecocardiograma (agosto de 2006) revelou comprometimento difuso e acentuado do ventrículo esquerdo e acinesia da parede inferior. Havia também hipocinesia moderada do ventrículo direito tinha (Tab. 1).

Foram feitos os diagnósticos de cardiomiopatia dilatada com prováveis episódios de taquicardia ventricular e hipotireoidismo.

As medicações já em uso foram ajustadas com redução da espironolactona para 25 mg/dia, aumento do captopril para 75 mg e manutenção da medicação restante: carvedilol (6,25 mg), amiodarona (200 mg) e levotiroxina (25 µg diários).

Na evolução, o paciente foi encaminhado à emergência do InCor com respiração ruidosa, dispnéia e diminuição da consciência (26 de outubro de 2006).

O exame físico revelou paciente taquipneico, freqüência cardíaca de 68 bpm, pressão arterial inaudível e diminuição intensa da perfusão de extremidades, constataram-se ainda roncos difusos em ambos hemitórax. O paciente foi submetido à intubação orotraqueal para suporte respiratório, e administraram-se inicialmente dopamina e depois noradrenalina endovenosas contínuas.

O eletrocardiograma (26 de outubro de 2006) revelou taquicardia atrial com bloqueio A-V 2:1, sobrecarga atrial esquerda, baixa voltagem dos complexos QRS no plano frontal, área eletricamente inativa em parede lateral e lateral alta, QT longo (450 ms),ondas T altas e muito alargadas (fig. 2).


Os exames laboratoriais (26 de outubro de 2006) revelaram hemoglobina de 16,3 g/dl; hematócrito de 50%; VCM de 100 fl; leucócitos de 16.300 /mm3 (neutrófilos 82%, eosinófilos 0%, linfócitos 9%, monócitos 9%); creatinina de 2,53 mg/dl (filtração glomerular de 28 ml/min/1,73 m2); amilase de 150 U/l; bilirrubinas total de 3,18 mg/dl, direta de 1,20 mg/dl; creatinofosfoquinase de 168 u/l; aspartato aminotransferase de 2.783 U/l e alanina-aminotransferase de 2.260 U/l.

O ecocardiograma (outubro de 2006) revelou hipocinesia acentuada de ventrículo esquerdo e moderada do ventrículo direito e aumento de átrio esquerdo com imagem de trombo fixo com 13 / 12 mm (Tab. 1)

Não houve melhora da pressão arterial, e o paciente faleceu depois de parada cardíaca em assistolia horas após a internação.

Aspectos clínicos

Trata-se de paciente do sexo masculino, com seqüelas de anóxia perinatal (dificuldade de fala, deambulação e convulsões) e hipotireoidismo. Iniciou o acompanhamento cardiológico aos 40 anos em razão de queixa de dor precordial, que teve início súbito, em pontada, com duas horas de duração.

O exame físico de coração, pulmões e abdome foi referido como normal.

O eletrocardiograma (ECG) de doze derivações revelou-se francamente anormal. Embora o bloqueio divisional ântero-superior (BDAS) possa ser encontrado em ECG de pacientes sem doença cardíaca subjacente, o achado de inversão de onda T em D1 e AVL e infradesnivelamento de ST em V6 denotam situação patológica. A duração do QRS em 120 ms pode ser decorrente do próprio BDAS, já que o ECG exposto não preenche critério morfológico para bloqueio de ramo esquerdo ou direito. O intervalo PR encontrava-se no limite inferior da normalidade.

Laboratorialmente, chamou a atenção uma glicemia de jejum de 150 mg/dL, revelando um provável diagnóstico de diabetes.

Optou-se pela realização de teste ergométrico que, segundo relato, foi sugestivo de isquemia. O critério de positividade não foi mencionado. A dificuldade de deambulação e as alterações do eletrocardiograma de base são duas limitações que tornam o teste ergométrico menos acurado como método não-invasivo para pesquisa de isquemia miocárdica. Nesse caso, duas boas opções seriam o ecocardiograma sob estresse farmacológico e a cintilografia miocárdica.

Nesse contexto, o paciente foi submetido a cineangiocoronariografia, a qual evidenciou coronárias sem lesões obstrutivas. Na ventriculografia, verificou-se hipocinesia discreta com aspecto hipertrófico do ventrículo esquerdo.

A discussão neste momento é sobre um paciente com dor precordial atípica (talvez por dificuldade de expressão decorrente da seqüela anóxica), eletrocardiograma patológico, teste ergométrico sugestivo de isquemia e coronárias angiograficamente normais com ventriculografia sugestiva de hipertrofia ventricular esquerda. As alterações do ECG, do teste ergométrico e da ventriculografia reforçam a idéia de origem cardíaca da dor precordial, em vez de origem psicológica, neuromuscular, pulmonar ou gastrointestinal.

No que tange à dor de origem coronariana não-aterosclerótica, sua origem pode ser nas coronárias epicárdicas (espasmo coronariano, ponte miocárdica) ou na microcirculação (secundária a hipertensão, cardiomiopatia dilatada ou hipertrófica, doenças infiltrativas, doença valvar, ou idiopática)1. A ausência de história de hipertensão e o exame físico cardiológico normal tornam a miocardiopatia dilatada, a doença valvar e a própria hipertensão causas pouco prováveis para explicar a dor. A cineangiocoronariografia não revelou compressão sístólica das coronárias epicárdicas (ponte miocárdica).

O paciente realizou ecocardiograma três meses após a primeira consulta, o qual foi normal. Esse exame afasta a possibilidade de miocardiopatia dilatada ou doença valvar e torna muito pouco provável a hipótese de miocardiopatia hipertrófica.

Afastadas essas possibilidades, mantêm-se as seguintes hipóteses que poderiam teoricamente justificar isquemia em pacientes com coronárias angiograficamente normais e ecocardiograma inalterado: Espasmo coronariano ou angina de Prinzmetal, doenças de depósito (amiloidose, doença de Fabry) e isquemia microvascular idiopática ou síndrome X.

Na seqüência do acompanhamento, o paciente realizou Holter de 24 horas que evidenciou 387 extra-sístoles ventriculares (16,2/h), com dois episódios de taquicardia ventricular não-sustentada (TVNS), o que, segundo a literatura, é um fator independente de risco, quando associado à presença de doença cardíaca isquêmica ou de outra etiologia2.

O paciente mantinha-se com queixa de dores torácicas intensas, sem relação com esforço e foi medicado com amitriptilina. Neste ponto, são necessários dois comentários: Em primeiro lugar, não se deve perder de mente que, mesmo o paciente apresentando-se com angina atípica, existia forte evidência de que o paciente apresentava doença cardíaca subjacente (alteração do eletrocardiograma, teste ergométrico e ventriculografia). Nesse sentido, seria útil prosseguimento da investigação etiológica. Em segundo lugar, embora o uso de anti-depressivo tricíclico possa ser usado para tratamento de dores precordiais de origem neuropsiquiátricas (o paciente em questão talvez tivesse este componente associado), deve-se ter cuidado com a sua prescrição em pacientes que já tenham evidência de arritmias ventriculares devido ao seu efeito pró-arrítmico nestes casos com possível prolongamento do intervalo QT.

Permaneceu por 12 anos sem registros de atendimentos médicos e sem queixas, tendo sido internado em 2006, em duas ocasiões, com palpitações, dispnéia e mal-estar, após o que evoluiu com dispnéia aos esforços habituais e foi encaminhado para o InCor para reavaliação.

Em maio de 2006, a investigação incluiu ecocardiograma que revelou disfunção moderada do VE com FE de 41%. A cineangiocoronariografia não revelou lesões obstrutivas, enquanto a ventriculografia esquerda evidenciou hipocinesia difusa moderada. Chama a atenção nesse caso o longo período de latência (12 anos) após o que o paciente retornou ao acompanhamento médico não mais com dor torácica, e sim com dispnéia, palpitações e mal-estar, além de deterioração da função ventricular, mantendo coronárias angiograficamente normais.

O exame físico em agosto de 2006 revelava índice de massa corpórea de 18,8kg/m2, freqüência cardíaca de 76bpm, pressão arterial de 100x70mmHg, mantendo propedêuticas cardíaca, pulmonar e abdominal normais.

O ECG em agosto de 2006 mostrava bloqueio atrioventricular de primeiro grau, bloqueio do ramo esquerdo, grau de BDAS e área inativa ínfero-látero-dorsal. O ECG de alta resolução não evidenciou potenciais tardios.

Em agosto de 2006, realizou exames laboratoriais que revelaram grande aumento do peptídeo natriurético tipo B e do TSH, e aumento moderado de colesterol e LDL-colesterol. O ecocardiograma dessa mesma época revelou dilatação, acinesia de parede inferior e hipocinesia das demais paredes do ventrículo esquerdo e acentuada diminuição de fração de ejeção, além de hipertensão pulmonar e hipocinesia de ventrículo direito (Tab. 1)

Nesse momento, optou-se por alterar a receita médica, reduzindo-se a dose de espironolactona para 25mg/dia, aumentando o captopril para 75mg/dia e mantiveram-se as demais medicações: carvedilol (6,25mg/dia), amiodarona (200mg/dia) e levotiroxina (25 mcg/dia).

Temos, então, um paciente que apresentou há 13 anos evidências de cardiopatia com "suposta" isquemia miocárdica e coronárias angiograficamente normais, tendo permanecido assintomático pelos 12 anos seguintes. Evoluiu com disfunção e dilatação ventricular e sintomas de insuficiência cardíaca aparentemente precipitados por taquiarritmia ventricular.

Analisaremos agora as hipóteses inicialmente levantadas.

O paciente com angina de Prinzmetal ou angina variante costuma apresentar-se com dor precordial quase sempre em repouso, sem precipitação por esforço físico ou estresse emocional. Habitualmente há associação com elevação do segmento ST no ECG3. Há também associação com taquicardia e fibrilação ventricular, bem como morte súbita. Os pacientes costumam ser mais jovens que aqueles com doença aterosclerótica. Existe também associação com uso de tabaco. O ECG geralmente se manifesta com elevação episódica de segmento ST durante a dor que pode acontecer em qualquer derivação. O Holter pode revelar isquemia silenciosa. A coronariografia pode revelar espasmo "espontâneo" das coronárias epicárdicas ou por meio de testes provocativos. A fase aguda costuma ocorrer no período médio de 6 meses, com episódios recorrentes. Em uma série de 277 pacientes acompanhados por 7 anos e meio, angina recorrente ocorreu em 39%, morte em 3,5% e infarto em 6,5%4. Doença aterosclerótica associada tem impacto prognóstico negativo importante. Os pacientes costumam ter redução de recorrência após 6 meses, e, naqueles que voltam a apresentar sintomas, o bloqueador de canal de cálcio pode ser útil. Por razões desconhecidas, alguns pacientes podem apresentar um período latente de meses a anos e apresentar recrudescência com episódios freqüentes de isquemia grave, que costumam responder a bloqueadores de canais de cálcio e nitratos.

No caso em questão não houve evidência de elevação de segmento ST associada ao quadro anginoso, assim como não foi demonstrado espasmo coronariano em nenhuma das coronariografias. A evolução para quadro de miocardiopatia dilatada pode estar associada a infartos prévios decorrentes do espasmo, apesar da história ter poucos elementos que corroborem esta hipótese.

Os pacientes com diagnóstico de disfunção microvascular idiopática ou síndrome X costumam ser do sexo feminino na pré-menopausa5, que se apresentam na maioria das vezes com angina atípica. Dois terços dos pacientes com dor precordial e coronariografia normal têm distúrbios psiquiátricos associados6. O ECG pode ser normal ou apresentar alterações inespecíficas do segmento ST e onda T. Dentre os pacientes com dor precordial e coronárias angiograficamente normais, 20 % apresentam teste ergométrico positivo. Esses pacientes costumar ter boa evolução a longo prazo (semelhante a indivíduos saudáveis da mesma faixa etária, exceto se forem fumantes ou hipertensos). É um diagnóstico de exclusão e pouco provável para o caso em questão que teve evolução com piora progressiva de função ventricular.

Quanto à amiloidose - outra hipótese inicialmente levantada - essa doença é decorrente do depósito de proteínas amilóides que podem ser, na forma primária, compostas por porções das cadeias leves das imunoglobulinas (designado AL), enquanto na forma secundária recebe o designação AA e a proteína amilóide tem outra origem. Doença cardíaca manifesta-se em um terço dos pacientes enquanto está virtualmente sempre presente no estudo anatomopatológico de pacientes com este diagnóstico7. As manifestações clínicas do acometimento cardiovascular nesta doença se fazem de quatro formas, as quais podem se sobrepor: cardiomiopatia restritiva com disfunção diastólica e predomínio de sintomas de insuficiência cardíaca direita; insuficiência cardíaca congestiva, que costuma ser lentamente progressiva e pouco responsiva ao tratamento medicamentoso, podendo ocorrer angina com coronárias angiograficamente normais; hipotensão ortostática, que ocorre em cerca de 10% dos casos; distúrbios de condução e arritmia.

A alteração eletrocardiográfica mais característica é a baixa voltagem dos complexos QRS de forma difusa. Os bloqueios de ramo são comuns, bem como os desvios de eixo. Ondas R pequenas ou ausentes em derivações precordiais direitas às vezes simulam área de infarto, o que ocorre de forma menos freqüente em derivações inferiores com o surgimento de ondas Q8. Arritmia ventricular complexa é freqüente.

Nos casos avançados, comumente se observa espessamento de septo e parede com cavidades ventriculares de tamanho normal e átrios aumentados. A função ventricular esquerda pode estar deprimida, embora geralmente ela esteja surpreendentemente normal9. De forma precoce, o ecocardiograma pode estar "falsamente" normal no paciente com amiloidose cardíaca.

O diagnóstico pode ser feito de forma segura através da biópsia de tecido gorduroso periumbilical, e em alguns casos, na permanência da suspeita, mesmo com resultado negativo, pode-se lançar mão da biópsia endomiocárdica.

Esse diagnóstico, que pode ter apresentações heterogêneas, deve ser considerado possível na discussão do caso exposto, embora os ecocardiogramas realizados não apontassem nesse sentido.

A doença de Fabry é caracterizada por herança recessiva ligada ao cromossomo X na qual existe deficiência da enzima alfa-galactosidase A. A doença é caracterizada pelo depósito de glicoesfingolípides nos rins, na pele e no miocárdio na forma clássica, embora possa ser limitada ao coração. A doença manifesta-se clinicamente com quadros de angina e infarto, apesar de coronárias angiograficamente normais. Hipertensão, prolapso de valva mitral e insuficiência cardíaca congestiva são comuns. Alterações eletrocardiográficas incluem intervalo PR curto, anormalidades do segmento ST e onda T, bloqueio atrioventricular, sobrecarga ventricular esquerda e alargamento do QRS10. O ecocardiograma costuma apresentar aumento de espessura de parede ventricular esquerda, o que não ocorreu no caso relatado, tornando este diagnóstico pouco provável. A confirmação do diagnóstico seria feito por biópsia endomiocárdica.

Outra hipótese que não foi ainda mencionada, mas que merece destaque é a de miocardite. Pela evolução com disfunção ventricular esquerda, o diagnóstico seria de miocardite viral subaguda

Clinicamente, o paciente pode apresentar quadro sugestivo de infecção viral com porta de entrada em trato respiratório superior ou trato gastrointestinal que precede habitualmente em dias a semanas os sintomas cardíacos de insuficiência cardíaca, embolia ou arritmia. O quadro da infecção viral inicial pode passar despercebido11.

O ECG pode demonstrar alterações inespecíficas de segmento ST e onda T e arritmias atriais ou ventriculares. Pode haver também atraso de condução atrial, ventricular ou intraventricular. A ecocardiografia pode demonstrar espessamento da parede ventricular esquerda, mais evidente em miocardite fulminante12. O diagnóstico é feito por biópsia endomiocárdica. O tipo de dor na apresentação inicial do caso relatado não é característico dessa doença. No entanto, esse diagnóstico deve ser levado em consideração, haja em vista que o paciente apresentou uma evolução, após quadro inicial de dor torácica, para um quadro de insuficiência miocárdica com dilatação ventricular.

É importante ressaltar que nesse momento a ressonância nuclear magnética seria de grande valia para ajudar a elucidar melhor o diagnóstico etiológico do caso em questão.

O paciente então apresentou nova internação em outubro de 2006 com quadro de diminuição de consciência e respiração ruidosa. Estava em choque hemodinâmico. Foi intubado e iniciou-se o uso de drogas vasoativas. Chamavam atenção as alterações das enzimas hepáticas com AST de 2.783U/l e ALT de 2.260U/l, bilirrubinas totais de 3,18 mg/dl e bilirrubina direta de 1,2 mg/dl; e renais com creatinina de 2,53mg/dl.

O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal com freqüência cardíaca de 65bpm, sobrecarga atrial esquerda, baixa voltagem dos complexos QRS no plano frontal, área eletricamente inativa em parede lateral, QT longo e ondas T altas e alargadas.

Este eletrocardiograma não mais evidencia bloqueio de ramo esquerdo como mencionado anteriormente. Além disso existe uma baixa voltagem de QRS em plano frontal que pode ser decorrente de doenças infiltrativas ou da própria miocardiopatia dilatada avançada. Existia nesse momento uma área inativa em região lateral, correspondente a uma região que já se encontrava alterada eletrocardiograficamente havia 12 anos. O QT longo pode ser decorrente do quadro de hipotireoidismo.

O paciente realizou um ecocardiograma que foi semelhante ao anteriormente realizado, exceto pelo fato de existir trombo móvel no átrio esquerdo.

O paciente evoluiu com parada cardiorrespiratória em assistolia algumas horas após a internação.

Realizadas essas ponderações, em resumo, concluímos que a causa mortis foi choque cardiogênico secundário à miocardiopatia dilatada.

Dr. Gustavo Freitas Feitosa e

Dr. Ricardo D'Oliveira Vieira

Hipótese diagnóstica

A principal hipótese etiológica foi a miocardite viral com evolução para miocardiopatia com dilatação miocárdica

Dr. Gustavo Freitas Feitosa e

Dr. Ricardo D'Oliveira Vieira)

Comentários - eletrocardiograma

O eletrocardiograma de 06 de janeiro de 2003, revelou ritmo sinusal, freqüência cardíaca de 68 bpm, intervalo PR de 120ms, duração QRS de 120m, SÂQRS orientado para cima (- 500) e para trás. Verificaram-se também bloqueio divisional ântero-superior esquerdo e inversão da onda T em DI, aVL e V6.

O eletrocardiograma de 26 de outubro de 2006, revelou ritmo de taquicardia atrial com bloqueio AV, 2:1 com freqüência ventricular 65 bpm e sobrecarga atrial esquerda nas derivações V3 a V6. Observa-se deflexão negativa, profunda quando comparada a ondas de repolarização da onda P seguida de QRS (dispersão da repolarização atrial). Verificou-se complexo QRS de baixa amplitude no plano frontal, nas derivações V5 e V6 e ondas R amplas de V1 a V3, correspondendo a área eletricamente inativa em regiões inferior lateral e dorsal. Constataram-se intervalo QT prolongado e ondas T altas que se somam as ondas P com sua repolarização.

Dr. Paulo Jorge Moffa

Comentários - grupo de coronariopatias crônicas

Este caso clínico, cujas possibilidades diagnósticas foram relatadas pelo residente e que sugerem diagnóstico de miocardiopatia, mostra a dificuldade de se estabelecer um diagnóstico com base em informações não confiáveis e obtidas em paciente com seqüela motora e dificuldade de expressão. Para o diagnóstico de dor torácica, o paciente foi submetido a dois procedimentos invasivos com intervalo de 3 anos e com padrão angiográfico dentro da normalidade.

Dr. Reynaldo Amato

Necropsia

O exame anatomopatológico do coração demonstrou extenso infarto cicatrizado, comprometendo todo o septo ventricular e a parede anterior do ventrículo esquerdo, além da porção parasseptal da parede ântero-superior do ventrículo direito (fig. 3). Além disso, existiam trombos murais pequenos em ambas as cavidades ventriculares. O átrio esquerdo estava dilatado e mostrava grande trombo (3,5x2,5cm) aderido à sua face septal (fig. 4). O exame histológico mostrou ausência de infartos miocárdicos recentes.



Na interface entre o trombo e o endocárdio atrial havia pequenos e múltiplos vasos neoformados, indicando início de organização do trombo, compatível com aproximadamente duas semanas de evolução. As artérias coronárias epicárdicas foram dissecadas, e, em estudo histológico, encontramos oclusão da luz por placas de ateroma predominantemente fibrocalcificadas, sem inflamação da parede e com pouco acúmulo de lípides. O maior grau de obstrução apareceu no quarto centímetro do ramo interventricular anterior (70%) (fig. 5). Os demais segmentos mostravam estenoses variando de 20 a 50%. Na coronária direita distal havia tromboembolismo recente não completamente oclusivo. Os pulmões apresentavam congestão passiva crônica e edema alveolar (edema agudo- fig. 6), que foi a causa terminal do óbito do paciente.



O cérebro pesou 1.140g. O hemisfério esquerdo mostrou acentuada redução volumétrica em relação ao direito, porém sem atrofia notável. Os cortes vértico-frontais confirmaram essa hipotrofia sem evidências de lesões clásticas (fig. 7). À microscopia, o achado mais conspícuo foi o de uma redução moderada dos neurônios do isocórtex em todas as regiões examinadas. Essa redução parecia interessar todas as camadas indistintamente. Associada a esse achado, observou-se uma gliose astrocitária reativa.


Observou-se também, de modo importante, gliose subpial de Chaslin acompanhada de abundantes corpos amiláceos, que, aliás, estavam presentes na substância branca subcortical. Dilatações dos espaços de Virchow-Robin sem reação tissular adjacente estavam presentes nos gânglios da base e na substância branca. Não se observaram anomalias no hipocampo (fig. 8).


Diagnósticos anatomopatológicos

Doença isquêmica do coração caracterizada por extenso infarto transmural cicatrizado em septo e parede anterior. Aterosclerose coronariana. Trombose maciça do átrio esquerdo. Edema agudo dos pulmões. Alterações cerebrais compatíveis com hipóxia crônica.

Profª. Dra. Vera Demarchi Aiello,

Prof. Dr. Sérgio Rosemberg

Comentários sobre os achados cardiovasculares

O estudo anatomopatológico demonstrou inequivocamente a existência de doença isquêmica do coração. Apesar de as lesões obstrutivas coronarianas não serem críticas, elas tampouco podem ser consideradas desprezíveis, uma vez que existiam placas ateroscleróticas calcificadas. A principal hipótese para o desenvolvimento do infarto miocárdico é o vasoespasmo coronariano. A possibilidade de trombose ou tromboembolismo ter causado o infarto antigo é remota, uma vez que não encontramos vestígio da organização de trombos na árvore coronariana.

Em relação à discrepância entre o dado de angiografia coronariana (sem obstruções) e o dado anatomopatológico, são bem conhecidos estudos que demonstram a possibilidade de que o remodelamento positivo do vaso (aumento do diâmetro externo), na presença de placa aterosclerótica, pode resultar em luz vascular pouco ou não obstruída à angiografia13-15.

Profª. Dra. Vera Demarchi Aiello

Comentários sobre os achados neuropatológicos

Na falta de uma história pré, peri ou pós-natal confiável, a interpretação dos achados neuropatológicos é aleatória. O tipo de redução volumétrica e os achados histológicos não falam a favor de uma etiologia hipóxico-isquêmica nesse período, os quais se caracterizam seja por um quadro ulegírico, isto é, circunvoluções cicatriciais com perda neuronal quase completa, gliose fibrosa e cavitações, seja pela encefalomalácia multicística, a qual, como o nome indica, é caracterizada por múltiplos cistos geralmente localizados na substância branca.

As anomalias encontradas falam a favor de um processo eminentemente hipóxico sim, mas de instalação mais crônica, progressiva. Uma das possibilidades que se aventam nessas circunstâncias é que tenha ocorrido o que se chama síndrome HHE (hemicolvulsão, hemiplegia, epilepsia). Nesses casos, as crianças geralmente abaixo dos dois anos, por um motivo qualquer (febre, por exemplo), apresentam um estado de mal epiléptico dimidiado. Em conseqüência, ocorre morte neuronal no hemisfério contralateral com gliose e conseqüente gênese de uma cicatriz epiléptica que gera a epilepsia crônica.

Os achados neuropatológicos (perda neuronal difusa, gliose reativa não-fibrosa e gliose de Chaslin) justificariam plenamente a hipótese aventada.

Prof. Dr. Sérgio Rosemberg

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br) Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

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  • Correspondência:

    Vera D. Aiello
    InCor – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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