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Comportamento atípico da doença reumática no decurso da gravidez. A propósito de um caso

Resumos

Descreve-se o caso de uma mulher de 31 anos de idade que, no decurso da segunda gestação, apresentou quadro atípico de doença reumática na 28ª semana. Aspectos relacionados à prevenção da moléstia e ao tratamento no ciclo gravídico-puerperal são discutidos.

Febre reumática; insuficiência da valva tricúspide; gravidez


We report the case of a 31-year old woman presenting with atypical rheumatic disease in the 28th week of the second pregnancy. Questions related to prevention of the disease and its treatment during the pregnancy-puerperium cycle are discussed.

Rheumatic fever; pregnancy; tricuspid valve insufficiency


Se describe el caso de una mujer de 31 años de edad que, en el transcurso de la segunda gestación, presentó cuadro atípico de enfermedad reumática en la 28ª semana. Se discutirán los aspectos relacionados a la prevención de la molestia y al tratamiento en el ciclo grávido-puerperal.

Fiebre reumática; insuficiencia de la válvula tricúspide; embarazo


RELATO DE CASO

Comportamento atípico da doença reumática no decurso da gravidez. A propósito de um caso

Lurildo Cleano Ribeiro Saraiva; Aluísio Macedo; Ana Elizabeth M. Batista

Serviço de Cardiologia da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE - Brasil

Correspondência Correspondência: Lurildo Cleano Ribeiro Saraiva Estrada do Arraial, 2405/205 Tamarineira - 52051-380 Recife, PE - Brasil E-mail: lurildo@cardiol.br, lurildocleano@hotmail.com

RESUMO

Descreve-se o caso de uma mulher de 31 anos de idade que, no decurso da segunda gestação, apresentou quadro atípico de doença reumática na 28ª semana. Aspectos relacionados à prevenção da moléstia e ao tratamento no ciclo gravídico-puerperal são discutidos.

Palavras-chave: Febre reumática, insuficiência da valva tricúspide, gravidez.

Introdução

A persistência da doença reumática (DR) como endemia em Pernambuco faz que surjam formas clínicas incomuns em regiões mais desenvolvidas, como constitui exemplo a pneumonia reumática1.

O diagnóstico da moléstia no decurso da gravidez representa, hoje, evento clínico muito raro, com prevalência de 0,65%, permitindo ressaltar aspectos peculiares que dizem respeito ao seu tratamento e à sua prevenção2. A descrição de caso possivelmente recorrente no decurso do ciclo gravídico-puerperal constitui a razão desta publicação.

Relato do caso

Mulher de 31 anos, recifense, portadora de cardiopatia reumática, até então assintomática, referiu dispnéia de esforço progressiva e palpitações taquicárdicas a partir da 28ª semana da segunda gravidez. Mesmo usando regularmente penicilina benzatina de três em três semanas, em torno da 20ª semana teve dor de garganta e rouquidão durante quatro dias. Aos 13 anos apresentou artrite migratória de grandes articulações após estreptococcia da orofaringe, e aos 19 anos, no 14º dia de puerpério, queixou-se de recorrência da artrite, detectando-se sopro cardíaco. Na adolescência, a profilaxia secundária da DR foi feita com falhas.

Antes da atual gestação, tinha diagnóstico clínico-ecocardiográfico de dupla lesão mitral e insuficiência aórtica leves. Estudo radiográfico do coração (fig. 1A) mostrou área cardíaca normal, com índice cardiotorácico de 0,44.


Na consulta, nesse instante o exame físico demonstrou paciente grávida, taquipnéica, com discreto edema de membros inferiores. Constataram-se os seguintes dados: PA = 130 x 70 mmHg; freqüência cardíaca de 120 bat/min; ritmo cardíaco regular a três tempos (B3) com intenso sopro holossistólico em área mitral (AM) e sopro sistólico rude na área tricúspide (AT); e hepatomegalia dolorosa discreta. Ecodopplercardiograma foi compatível com insuficiência mitral importante e insuficiência tricúspide moderada. Hemograma detectou anemia hipocrômica (hemoglobina = 11,1 g/dl), leucocitose discreta (13.000/mm3) e hemossedimentação acelerada (37 mm/1ª hora). Os níveis de antiestreptolisina O (AEO) foram normais. Medicada com digital e diurético, obteve melhora até o parto cesariano, sendo a medicação suspensa após a alta hospitalar.

No 2º mês de puerpério, foi atendida no serviço em caráter de urgência com dispnéia, edema de membros inferiores, estase jugular proeminente, dinâmica do precórdio compatível com crescimento de ambos os ventrículos, ausculta cardíaca com ritmo de galope (B3) e intenso sopro holossitólico em AM e sopro sistólico musical em AT. O fígado era palpável a 8 cm da reborda costal direita. A radiografia de tórax mostrou cardiomegalia importante (fig. 1B), e o eletrocardiograma, sobrecarga das quatro câmaras cardíacas. O ecodopplercardiograma (fig. 2) revelou valvas mitral, aórtica e tricúspide espessadas, de aspecto reumático, com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE) de 64%. O diâmetro diastólico do VE mediu 6,0 cm e o sistólico, 3,8 cm. A pressão sistólica estimada da artéria pulmonar foi de 54 mmHg.


À exceção da proteína C reativa ultra-sensível elevada (1,72 mg/dl, normal até 0,50), todos os exames de atividade inflamatória foram normais. Os níveis de AEO foram de 59 UI/ml.

Com a administração de digoxina, furosemida e captopril, teve restaurada a capacidade física e queda da freqüência cardíaca. O uso oral associado de 30 mg de prednisona permitiu controle da insuficiência cardíaca (IC), com desaparecimento dos sinais congestivos após 20 dias.

Discussão

Doença reumática com aspectos agudos na gravidez é rara e, sobretudo, de difícil diagnóstico. As reações de atividade inflamatória, por si mesmas inespecíficas, o são ainda mais na gestação, que pode acentuá-las2. A hipervolemia e a anemia inerentes ao quadro podem simular IC em enferma com valvopatia reumática estabelecida. No caso presente, entretanto, a paciente se tornou gestante com lesão valvar de pequena monta e saiu da gestação com evidente agravamento da valvopatia mitral, acrescida de insuficiência tricúspide, que não existia. Gravidez não produz lesão anatômica (fig. 2) em valvas cardíacas humanas: o comum é que na presença de estenose mitral grave a doente se torne dispnéica paulatinamente e obtenha melhora após o parto - aqui, a IC se estabeleceu por volta do 7º mês, após inflamação de orofaringe, acompanhou-se de novo dano valvar e culminou no puerpério com cardiomegalia importante (fig. 1B).

Dois aspectos doutrinários emergem do estudo do caso. O primeiro deles se relaciona à recorrência reumática em duas ocasiões no ciclo gravídico-puerperal, e o segundo, à duração da profilaxia para a moléstia reumática, que mostrou recidiva aos 31 anos, idade em que para muitos já deveria ter cessado a profilaxia secundária da DR.

Não sabemos o porquê da vulnerabilidade da paciente na gestação à complicação estreptocócica da orofaringe, a julgar que o uso da penicilina benzatina se fez corretamente como preconizado entre nós, de 21 em 21 dias3. Como dado curioso, essa vulnerabilidade não se acompanhou de elevação dos níveis séricos de antiestreptolisina O, esperada na circunstância, considerando a gravidade crescente dos surtos recidivantes4.

São escassas publicações recentes da DR na gravidez, até porque se observa tênue decréscimo da incidência da doença no nosso meio. Na literatura são descritas séries de casos isolados2. Na revisão feita por Décourt2 há alguns anos, são enfatizados alguns aspectos que interessam ao caso presente, como a habitual ocorrência como recidiva, a dificuldade em caracterizar os próprios sinais de IC e a administração cautelosa de medicação antiinflamatória, entre outros.

É discutível o uso de prednisona na paciente até porque as provas de atividade inflamatória foram normais, regra geral, em oposição ao próprio estado gestacional, que pode alterar as reações de fase aguda do soro2. Entretanto, a riqueza de sinais clínicos, indicando gravidade da cardite, a cardiomegalia (fig. 1B), a proteína C reativa em níveis altos e o envolvimento valvar agudo, sobretudo da valva tricúspide, como detectado no ecodopplercardiograma (fig. 2), favoreceram o seu uso em dose parcimoniosa, em face do período de lactação e eventual malefício ao filho. O resultado foi bom, com restauração da capacidade física da paciente em pouco tempo, a qual está assintomática até o momento.

Agradecimento

Ao Professor Edward Kaplan, da University of Minnesota Medical School, pelas valiosas sugestões.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 12/05/08; revisado recebido em 22/06/08; aceito em 25/08/08.

  • 1. Saraiva LR. Rheumatic pneumonia (Letter to editor). Ann Rheum Dis. 2002; 61 (5): 477.
  • 2. Décourt LV. Doença reumática ativa durante a gravidez. In: Lopes AC; Delascio D. (eds). Cardiopatia e gravidez. São Paulo: Sarvier Editora; 1986. p.113-21.
  • 3. Décourt LV. Doença reumática. In. Décourt LV (ed). Medicina preventiva em cardiologia. São Paulo: Sarvier Editora; 1988. p. 101-17.
  • 4. Chopra P, Gulwani H. Pathology and pathogenesis of rheumatic heart disease. Indian J Pathol Microbiol. 2007; 50 (4): 685-97.
  • Correspondência:
    Lurildo Cleano Ribeiro Saraiva
    Estrada do Arraial, 2405/205
    Tamarineira - 52051-380
    Recife, PE - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Revisado
      22 Jun 2008
    • Recebido
      12 Maio 2008
    • Aceito
      25 Ago 2008
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