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Implante de marcapasso definitivo em gestante portadora de valvopatia mitral reumática

Resumos

Descrevemos um caso raro de implante de marcapasso definitivo em gestante, portadora de valvopatia mitral reumática, previamente submetida à valvoplastia percutânea por cateter-balão. A paciente apresentava bloqueio atrioventricular de grau avançado, de causa não-reversível, sintomático e manifesto no 3º trimestre da gestação.

Marcapasso artificial; estenose da valva mitral; gestação; bloqueio atrioventricular


Describimos un caso raro de implante de marcapaso definitivo en gestante, portadora de valvulopatía mitral reumática, previamente sometida a valvuloplastia percutánea por catéter balón La paciente presentaba bloqueo atrioventricular en grado avanzado, de causa irreversible, sintomático y manifiesto en el 3º trimestre de gestación.

Marcapasso artificial; estenose da valva mitral; gestação; bloqueio atrioventricular


We describe a rare case of permanent pacemaker implantation in a pregnant woman with rheumatic mitral valve disease previously undergoing percutaneous balloon valvuloplasty. She presented symptomatic advanced atrioventricular block of non-reversible cause and manifest in the third trimester of gestation.

Pacemaker, artificial; mitral valve stenosis; pregnancy; atrioventricular block


RELATO DE CASO

Implante de marcapasso definitivo em gestante portadora de valvopatia mitral reumática

Rodrigo Barbosa Esper; Remo Holanda de Mendonça Furtado; Flávio Tarasoutchi; Guilherme Sobreira Spina; Max Grinberg; Walkiria Samuel Ávila

Instituto do Coração (InCor), Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Guilherme Sobreira Spina Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 - Cerqueira César Unidade Clinica de Valvopatia 05403-000 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: guilherme.spina@incor.usp.br

RESUMO

Descrevemos um caso raro de implante de marcapasso definitivo em gestante, portadora de valvopatia mitral reumática, previamente submetida à valvoplastia percutânea por cateter-balão. A paciente apresentava bloqueio atrioventricular de grau avançado, de causa não-reversível, sintomático e manifesto no 3º trimestre da gestação.

Palavras-chave: Marcapasso artificial, estenose da valva mitral, gestação, bloqueio atrioventricular.

Introdução

A gestação é causa comum de descompensação cardíaca em pacientes portadoras de estenose mitral hemodinamicamente significativa, em razão da alta incidência da febre reumática em nosso meio.

A apresentação de bradiarritmias durante a gestação é incomum. Alguns casos podem necessitar do implante de marcapasso sob escopia, expondo o feto aos riscos da radiação.

O manejo clínico de gestante com estenose mitral, apresentando bloqueio atrioventricular (BAV) de grau avançado, sem causa potencialmente reversível, foi o objetivo deste relato de caso.

Relato de caso

Mulher de 39 anos, branca, procedente de São Paulo, na 36ª semana de gestação, desde o início do 2º trimestre gestacional com dispnéia aos esforços habituais (classe funcional III - NYHA), ortopnéia esporádica, palpitações e tosse seca noturna com episódios de hemoptise. Há 3 meses, ela apresentava episódios de pré-síncope. Há uma semana, apresentava melhora parcial da dispnéia, mantinha episódios de lipotimia, caracterizados por escurecimento visual esporádico, não relacionado aos esforços, sem palpitação ou precordialgia, duração de segundos a minutos, com sensação eminente de desmaio, sem perda da consciência e cessação espontânea.

Apresenta antecedentes de estenose mitral reumática diagnosticada há 4 anos, durante gestação prévia, quando então foi submetida a tratamento percutâneo com valvoplastia mitral por cateter-balão. Ex-etilista e ex-tabagista. Antecedente obstétrico de 14 gestações, com 1 abortamento espontâneo e 12 partos normais, sem intercorrências obstétricas durante o trabalho de parto. Fazia uso de propranolol 80 mg/dia, furosemida 40 mg/dia e sulfato ferroso.

À admissão, apresentava pressão arterial de 110 x 70 mmhg, FC de 100 bpm, FR de 16 ipm e estava afebril. Ao exame físico, sopro holossistólico de 2+/6 regurgitativo e sopro diastólico de +/6 em ruflar, ambos em área mitral. Pulmões sem ruídos adventícios. O exame do abdome mostrava útero gravídico, com altura uterina de 34 cm e batimento cardiofetal presentes, a 140 bpm. Membros inferiores sem edemas e pulsos periféricos presentes e simétricos.

A ultra-sonografia obstétrica mostrava feto sem alterações morfológicas e com movimentação normal, e a cardiotocografia, padrão reativo.

O eletrocardiograma apresentava ritmo sinusal, com extrassístoles atriais freqüentes (fig. 1). A radiografia de tórax, o hemograma, os eletrólitos, o coagulograma e a função renal estavam normais. As provas de atividade inflamatória foram normais.


O ecodopplercardiograma indicou os seguintes resultados: fração de ejeção de 67%, átrio esquerdo de 47 mm, diâmetros diastólico de 53 mm e sistólico de 33 mm, valva mitral com espessamento, fusão comissural, estenose mitral leve (área valvar de 1,7 cm2) e insuficiência mitral moderada. O gradiente diastólico máximo transmitral foi estimado em 13 mmHg e médio em 7 mmHg.

O Holter de 24 horas mostrava ritmo sinusal, com freqüência cardíaca entre 43 a 147 bpm e média de 100 bpm. Extrassístoles atriais freqüentes (307/h) e 141 períodos de taquicardia com no máximo 22 batimentos e freqüência máxima de 195 bpm. Houve episódios de bloqueio atrioventricular de grau avançado (BAV), com pausa máxima de 3,6 segundos. Após 7 dias de suspensão do betabloqueador, foi realizado novo Holter de 24 horas que identificou um episódio de BAV 2:1 e um de BAV 3:1 (fig. 2).


Implantou-se marcapasso definitivo atrioventricular, sob fluoroscopia, antes da resolução da gestação, com proteção da região abdominal por manta de chumbo. Após o implante de marcapasso, reintroduziu-se fármaco betabloqueador.

A paciente evoluiu com resolução espontânea da gestação, com 38 semanas e 2 dias, via parto vaginal com fórcipe de alívio, sem intercorrências. Recém-nascido com peso 2.940 g e Apgar 9/9. Alta no 3º dia de puerpério para seguimento ambulatorial.

Discussão

A gestação e o puerpério estão associados a importantes mudanças cardiocirculatórias, que podem levar à acentuada deterioração clínica nas mulheres com doença cardíaca: aumento do volume sangüíneo; anemia, pelo aumento do volume plasmático mais rápido que o da massa eritrocitária; aumento do débito cardíaco progressivo da 5ª a 24ª semana de gestação; e queda da pressão sangüínea com nadir no 2º trimestre de gestação associada à queda da resistência vascular sistêmica.

Estenose mitral é uma importante causa de descompensação hemodinâmica nas gestantes. A maioria das pacientes com estenose mitral de moderada a grave demonstra piora de uma ou duas classes funcionais da NYHA durante a gestação1.

A gestação está associada a uma maior incidência de arritmias em mulheres com e sem doença cardíaca estrutural2,3. Extrassístoles atriais e ventriculares podem ocorrer sem repercussões hemodinâmicas.

Bradicardias assintomáticas raramente ocorrem durante a gestação. Em alguns casos, são atribuídas à lentificação da freqüência do ritmo sinusal após a compressão uterina sobre a veia cava inferior. O BAV de grau avançado, manifestado durante a gestação, é geralmente assintomático durante a gravidez e o trabalho de parto. Pacientes sintomáticas com bloqueio bifascicular e BAV de grau avançado têm sido tratadas durante a gravidez com marcapassos temporários ou permanentes. O BAV de grau avançado foi encontrado em 0,02% de uma série de 92.000 gestações3,4. Pode ser diagnosticado em pacientes assintomáticas por meio de achado de exame eletrocardiográfico, solicitado por outros motivos, ou manifestar-se por queixas clínicas como dispnéia, lipotimia e síncope. Em pacientes assintomáticas, é possível que haja necessidade de passagem de marcapasso provisório antes do trabalho de parto ou mesmo de implante de marcapasso definitivo para casos sintomáticos e assintomáticos5.

Na revisão da literatura, não foi encontrado nenhum caso descrito de gestante com valvopatia mitral apresentando bloqueio atrioventricular avançado durante a gestação.

Por causa da sobrecarga de volume sangüíneo que ocorre durante a gestação, pacientes com estenose mitral reumática podem apresentar descompensação hemodinâmica. Freqüentemente, essas pacientes necessitam de medicações cronotrópicas negativas para controle de sintomas. O uso consagrado de betabloqueadores no manejo da estenose mitral estaria contra-indicado nesta situação clínica, em razão da presença do BAV. Após descartar causas potencialmente reversíveis de BAV, como efeito de drogas e atividade reumática inflamatória, optamos pela indicação de implante de marcapasso definitivo.

A exposição fetal à radiação deve ser evitada durante a gestação. O risco depende do estágio da gravidez e da dose recebida pelo feto. Todavia, alguns cuidados devem ser tomados em pacientes grávidas que serão expostas à irradiação, tais como usar protetores de chumbo sobre o abdome, colimar o feixe de raios X para a área de interesse e utilizar equipamentos permanentemente calibrados e aferidos.

Uma alternativa descrita para evitar exposição fetal à radiação é o implante de marcapasso definitivo guiado por ecocardiografia6,7. Nesse caso, optou-se pela utilização de técnica convencional guiada por fluoroscopia, em razão do baixo risco de dano fetal, já que a gravidez encontrava-se próximo ao termo. Além disso, a utilização do exame ecocardiográfico transesofágico traria o inconveniente adicional de necessidade de sedação e risco de aspiração em virtude do retardo no esvaziamento gástrico em fase avançada da gestação.

Este relato mostra a importância em avaliar corretamente os sintomas apresentados pela gestante cardiopata8, diferenciando os transtornos esperados de uma gravidez normal dos sinais de doença cardíaca em iminente descompensação. Lipotimia e tontura podem ocorrer na gravidez normal, mas, em pacientes com cardiopatia estrutural, o diagnóstico diferencial com bradi ou taquiarritmias deve ser sempre lembrado. A presença de BAV de alto grau sintomático, mesmo que intermitente, levou à indicação de marcapasso definitivo. Optou-se por não indicar reintervenção sobre a valva mitral, pois a paciente tinha área valvar estimada acima de 1,5 cm2. A insuficiência mitral quantificada como moderada pode ter sido superestimada por causa do aumento do volume plasmático que ocorre na gestação. Optamos por manter, após o implante do marcapasso, tratamento clínico com betabloqueador e diurético.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo enviado em 26/12/07; revisado recebido em 29/01/08; aceito em 04/03/08.

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  • 8. Avila WS, Grinberg M. Gestação em portadoras de afecções cardiovasculares: experiência com 1000 casos. Arq Bras Cardiol. 1993; 60: 5-11.
  • Correspondência:
    Guilherme Sobreira Spina
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 - Cerqueira César
    Unidade Clinica de Valvopatia
    05403-000 - São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Maio 2009

    Histórico

    • Recebido
      26 Dez 2007
    • Aceito
      04 Mar 2008
    • Revisado
      29 Jan 2008
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