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Caso 2 - homem de 20 anos com insuficiência cardíaca por Síndrome Restritiva

CORRELAÇÃO ANATOMO-CLÍNICA

Caso 2 – homem de 20 anos com insuficiência cardíaca por Síndrome Restritiva

Nilson Tavares Poppi; Marta Vidigal de Andrade Reis; Vera Demarchi Aiello

Instituto do Coração (InCor) HC-FMUSP, São Paulo - Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 – São Paulo, SP E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Insuficiência cardíaca, Pericardite constrictiva; cardiomiopatia restritiva; sarcoidose, amiloidose.

Homem de 20 anos de idade (data de nascimento 16/10/1985), natural de Dona Inês (PB), foi internado por dispnéia desencadeada por mínimos esforços (2006).

O paciente apresentou falta de ar desencadeada por esforços a partir dos 13 anos de idade (1998); ocorreu nessa mesma época um episódio de síncope durante corrida. Desde então houve progressão lenta da dispnéia. Sentia cansaço e tonturas ao caminhar cerca de 100 m no plano e houve aparecimento de edema de membros inferiores.

Queixou-se também de dores articulares difusas. Foi feito o diagnóstico de sopro cardíaco. Recebeu a informação diagnóstica de febre reumática aos 16 anos de idade (2001).

Aos 18 anos de idade (setembro de 2004) apresentou quadro de tosse e expectoração amarelada, quadro que foi tratado como pneumonia, após o qual procurou atendimento hospitalar.

O exame físico (2004) revelou peso de 60 kg, altura 1,76 m, pulso 102 batimentos por minuto, pressão arterial 96 x 74 mmHg. A semiologia pulmonar foi normal. O exame do precórdio revelou choque da ponta palpado no 5º espaço intercostal, na linha hemiclavicular esquerda. As bulhas foram normais. Havia sopro sistólico ++ em área mitral. No exame do abdome, o fígado foi palpado a 9 cm do rebordo costal direito. Havia edema de membros inferiores.

Foram mantidas as medicações já em uso pelo paciente: 25 mg de hidroclorotiazida, 40 mg de furosemida, 50 mg de captopril, 25 mg de atenolol diários e administração mensal de penicilina benzatina por via intramuscular.

O eletrocardiograma (23 set 2004) revelou taquicardia sinusal (107 bpm), sobrecarga atrial esquerda e eixo QRS a 90° paralelo ao plano frontal, além de ondas R pouco proeminentes e não progressivas em derivações V5 e V6, que sugerem sobrecarga de ventrículo direito (Figura1).


Os ecocardiogramas (2004, 2005 e 2006) revelaram dilatação bi-atrial, prolapsos de valvas mitral e tricúspide. O exame com Doppler assinalou insuficiências mitral e tricúspide moderadas. O último exame ecocardiográfico mostrou (2006) dilatação e hipocinesia de ventrículo direito (Tabela 1).

A tomografia de tórax ( jun 2005), por sua vez, revelou espessamento pleural bilateral com calcificações esparsas, que se apresentava mais acentuado à esquerda, onde se notava conteúdo heterogêneo e loculado, com áreas de atelectasia do parênquima pulmonar adjacente. Foram identificados linfonodos mediastinais e axilares à esquerda, em número aumentado. O coração apresentou morfologia e dimensões normais. A aorta possuía calibre normal e contornos regulares, sem sinais de dissecção. Foram também diagnosticadas hepatomegalia e ginecomastia bilateral.

Depois de dois anos, o cansaço permanecia e, além da ocorrência de edema escrotal, houve piora do edema de membros inferiores, que atingiu a raiz da coxa. O paciente procurou atendimento médico de emergência. Feito o diagnóstico de fibrilação atrial, aumentou-se a dose de diuréticos, associados a varfarina. Duas semanas depois, em consulta médica ambulatorial, foram observadas persistência do edema e elevação do INR para 11,1. O paciente foi, então, hospitalizado.

O exame físico (7 mar 2006) revelou pulso de 80 bpm, pressão arterial 100 x 80 mmHg. A semiologia pulmonar foi normal. O exame do coração revelou sopro sistólico ++ em área mitral. O fígado foi palpado a 5 cm do rebordo costal direito. Havia edema de membros inferiores, o qual comprometia coxas e escroto.

Os exames laboratoriais da última internação são apresentados na tabela 2.

Não houve crescimento de micro-organismos nas hemoculturas ou na urocultura.

A ultrassonografia venosa de membros inferiores não identificou sinais sugestivos de trombose venosa.

Durante a evolução (31 Março 2006), apresentou choque de instalação súbita, não responsivo à administração de volume. Foram administradas drogas vasoativas. Houve necessidade de intubação orotraqueal. O paciente foi transferido para unidade de terapia intensiva.

Feito o diagnóstico presuntivo de choque séptico, iniciou-se o tratamento antibiótico com cefepime e vancomicina (1 abr 2006), posteriormente modificados para meropenem, vancomicina e azitromicina.

A angiotomografia de artérias pulmonares (4 abr 2006) não revelou falhas de enchimento na artéria pulmonar e seus ramos. As dimensões do tronco pulmonar e seus ramos, por sua vez, eram normais. Havia derrames pleurais bilaterais - um maior, à esquerda - e calcificações pleurais e atelectasias sub-segmentares em lobos superiores e inferiores de ambos os pulmões.

O ecocardiograma transesofágico (4 abr 2006) não ofereceu imagens sugestivas de trombos intracavitários ou vegetações valvares. Foi diagnosticado forame oval patente com fluxo esquerda-direita; além de intenso autocontraste em átrio e ventrículo direitos e átrio esquerdo. A valva mitral era espessada, com prolapso de sua cúspide anterior. O estudo com Doppler revelou insuficiência mitral excêntrica de grau moderado. Havia insuficiência tricúspide discreta.

Instalou-se insuficiência renal e anúria. Foi iniciada a hemodiálise (9 abr 2006).

A ultrassonografia de tórax (6 abr 2006) não revelou derrame pleural.

A tomografia de abdome (10 abr 2006) revelou fígado de contornos lobulados com hiperatenuação do parênquima, ectasia das veias hepáticas e também da veia cava inferior, além de ascite moderada.

Durante a evolução houve nova piora hemodinâmica com choque e febre (20 abr 2006).

O ecocardiograma (20 abr) estava inalterado em relação ao exame anterior.

Foram trocados todos os cateteres; o meropenem foi substituído por tazobactam, com associação de sulfametoxazol-trimetoprima.

Apesar da terapêutica, o paciente evoluiu com bradicardia e hipotensão, tendo apresentado parada cardíaca em assistolia, inicialmente revertida (21 abr 2006). Evoluiu, entretanto, com choque persistente,sofrendo outra parada cardíaca em assistolia, sem resposta às manobras de ressuscitação, vindo a falecer (23 abr 2006).

Aspectos clínicos

Trata-se de caso de insuficiência cardíaca congestiva em um indivíduo jovem, com sintomas iniciados aos 13 anos de idade, de curso progressivo, acompanhada, durante a evolução, por achados de acometimento de outros órgãos e sistemas: artralgia, hepatopatia crônica (ginecomastia bilateral, ascite e fígado de contornos lobulados com hiperatenuação do parênquima), evidência de acometimento inflamatório pleuropulmonar crônico (derrame pleural, com espessamento e calcificações, precedido por um quadro de tosse produtiva) e linfonodomegalia mediastinal e axilar.

Os achados clínicos de edema ascendente progressivo e hepatomegalia, assim como os exames subsidiários (eletrocardiograma e ecocardiograma), apontaram para acometimento predominante de ventrículo direito, sobrecarga e dilatação de ambos os átrios, com função sistólica e dimensão do ventrículo esquerdo normais. Estas características corroboram com o diagnóstico de cardiopatia com restrição diastólica. Diante deste quadro, a pericardite constritiva é um importante diagnóstico diferencial a ser considerado, especialmente porque o tratamento é radicalmente diferente. A distinção pode ser difícil, pois estas condições possuem características semelhantes.

Diversos processos inflamatórios podem causar pericardite constritiva, mas as etiologias mais frequentes são: infecciosa, pós-cirúrgica ou devido à exposição à irradiação. Pode ter também origem idiopática, autoimune/inflamatória (artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico, esclerodermia, sarcoidose) e neoplásica1. A tuberculose era a causa mais comum nos países desenvolvidos antes do surgimento de tratamento medicamentoso eficaz.

A fibrose pericárdica impede o enchimento de todas as câmaras cardíacas. Ocorre congestão venosa sistêmica e redução do índice cardíaco, devido ao comprometimento do enchimento ventricular. A congestão sistêmica pode levar a cirrose cardíaca. Há também elevação das pressões venosas pulmonares, podendo ocorrer dispneia, ortopneia e tosse. Pode ocorrer, ainda, fibrilação atrial e regurgitação tricúspide. O ECG revela, habitualmente, alterações inespecíficas da onda T e redução da voltagem, além de sinais de sobrecarga atrial esquerda ou fibrilação atrial. A radiografia de tórax mostra aumento atrial direito. O ecocardiograma, em pequeno número de pacientes, pode revelar calcificações pericárdicas e derrame pericárdico.

A pericardite constritiva pode apresentar diversos sintomas: pulso paradoxal em um terço dos casos, batimento pericárdico, equalização das pressões de enchimento dos lados esquerdo e direito, além de abaulamento septal na protodiástole e espessura pericárdica aumentada à ecocardiografia. Em um quadro de cardiomiopatia restritiva, em contraposição à pericardite constritiva, podemos encontrar: espessura da parede ventricular aumentada, pressão sistólica de artéria pulmonar comumente superior a 50 mm Hg, além de ictus cordis palpável, pressões de enchimento mais elevadas - comumente superiores a 25 mm Hg, e pelo menos 3-5 mm Hg mais elevada à esquerda do que à direita - e aumento biatrial proeminente2,3. Estas três últimas características fazem com que o diagnóstico de cardiomiopatia restritiva seja mais provável neste caso. No entanto, exames de imagem como a tomografia computadorizada ou a ressonância magnética seriam mais definitivas na diferenciação, uma vez que avaliam melhor a ocorrência de espessamento ou calcificação pericárdica.

O paciente apresentou como achado no ecocardiograma um forame oval patente (FOP). A maioria dos pacientes com forame oval patente é assintomática. A mais importante manifestação clínica em potencial é o acidente vascular cerebral isquêmico devido à embolia paradoxal4. O FOP com shunt direita-esquerda também pode associar-se a enxaqueca. O shunt esquerda-direita não ocorre no FOP, desde que o septo primum permaneça competente. Os pacientes nos quais o forame se torna patente, para propósitos práticos, são considerados como tendo uma comunicação interatrial (CIA) pequena. Na CIA, o grau de shunt esquerda-direita depende do tamanho do defeito e das propriedades relativas de enchimento dos dois ventrículos. Doenças que causem redução da complacência ventricular ou aumentem a pressão atrial esquerda tendem a aumentar o shunt. No caso apresentado, o shunt esquerda-direita através do forame oval patente poderia ser justificado por pressões de enchimento mais elevadas à esquerda, característica da cardiomiopatia restritiva.

A maioria das crianças com CIA são assintomáticas e o diagnóstico é feito após a descoberta de um sopro. Quando o aumento do fluxo pulmonar é muito intenso ocorre insuficiência cardíaca congestiva, podendo ocorrer infecções respiratórias recidivantes. Já em adultos os sintomas mais comuns são intolerância ao esforço e palpitações (principalmente por fibrilação atrial ou flutter). Em pacientes mais velhos, o sintoma de apresentação pode ser a insuficiência ventricular direita. Considerando que o paciente em questão tem apenas um FOP, o baixo fluxo esquerda-direita não justifica todas as alterações hemodinâmicas descritas, tampouco as alterações sistêmicas.

O acometimento de outros órgãos e sistemas, conforme exposto anteriormente, favorece a hipótese de que o processo restritivo seja causado por doença sistêmica que infiltre o miocárdio por depósito de conteúdo anômalo, ou inflamatório, sendo a variante idiopática menos provável. Conforme o exposto, as principais hipóteses diagnósticas são: sarcoidose, amiloidose, hemocromatose e doença de Fabry. Outra possibilidade de cardiomiopatia restritiva é a endomiocardiofibrose.

O primeiro diagnóstico que o paciente recebeu - febre reumática -, apesar de ser a causa mais comum de doença cardíaca adquirida em crianças e adultos jovens no mundo, não se aplica a este caso. Além de não haver evidência clínica ou laboratorial de infecção antecedente pelo estreptococo do grupo A, a artralgia, possível manifestação menor de febre reumática, ocorreu três anos após o início dos sintomas de insuficiência cardíaca. Na febre reumática o acometimento articular é precoce na história natural da doença, ocorrendo cerca de três semanas após a infecção estreptocócica. O sopro de insuficiência mitral, com os achados da ecocardiografia, não deve ser atribuído ao acometimento reumático, mas sim ao prolapso da da valva mitraluma vez que o ecocardiograma realizado seis anos após o início dos sintomas teria revelado evidência de fibrose ou calcificação valvar. Portanto, não havendo evidência suficiente para atribuir esses achados à cardite reumática, afastamos esta possibilidade diagnóstica (ausência de dois critérios maiores de Jones ou um maior e dois menores)5,6.

A amiloidose é uma doença que resulta da deposição tecidual de fibrilas amiloides formadas por proteínas. Na sua forma primária, estas proteínas são imunoglobulinas de cadeia leve (forma AL) produzidas por uma população de plasmócitos, em geralcomo consequência de mieloma múltiplo. A forma secundária (AA), que ocorre por depósito de proteínas não imunoglobulinas, é encontrada em indivíduos com doenças inflamatórias ou infecciosas crônicas. Pode acometer qualquer órgão, mas os principais sítios de depósito amilóide clinicamente importantes são os rins, o fígado e o coração. São comumente encontrados: síndrome nefrótica, hepatomegalia, neuropatia periférica, macroglossia e nódulos subcutâneos. A forma mais comum de apresentação da amiloidose cardíaca é a cardiomiopatia restritiva. No entanto, o início dos sintomas da doença cardíaca é raro antes dos 40 anos7,8. No caso que aqui apresentamos não há evidência de acometimento renal ou neuropático, com predomínio outras manifestações sistêmicas. Além disso, os achados eletrocardiográficos e ecocardiográficos mais característicos de amiloidose também não ocorrem: presença de complexos QRS de baixa voltagem e espessamento das paredes ventriculares, respectivamente8. Estes dados tornam este diagnóstico menos provável para este caso.

A hemocromatose caracteriza-se pelo depósito excessivo de ferro nos tecidos parenquimatosos (coração, fígado, gônadas e pâncreas). Pode ocorrer como um distúrbio autossômico recessivo ou idiopático, em associação com defeitos na síntese de hemoglobina devidos a eritropoese ineficiente, doença hepática crônica e ingestão oral ou infusão parenteral excessiva de ferro por muitos anos9. O envolvimento cardíaco leva ao padrão combinado de cardiomiopatia dilatada e cardiomiopatia restritiva com disfunção sistólica e diastólica. O dano miocárdico é atribuído principalmente à toxicidade direta do ferro livre e não simplesmente à infiltração tecidual. Ocorre dilatação cardíaca, com aumento da espessura ventricular. Os achados são mais proeminentes no miocárdio ventricular do que no atrial e é comum o acometimento do sistema de condução cardíaco. Este paciente não apresenta aumento da espessura ventricular, nem dilatação ventricular, tornando esta hipótese improvável.

A Doença de Fabry é um distúrbio hereditário com herança recessiva ligada ao X, resultante de anormalidades ligadas à deficiência da enzima lisossômica alfagalactosidase A, deficiência esta causada por mais de 160 mutações10. Algumas delas resultam em atividade não detectável da enzima, com manifestações por todo o corpo, enquanto outras produzem algum grau de atividade enzimática resultando em variantes com envolvimento limitado somente ao miocárdio. A doença se caracteriza por um acúmulo intracelular de glicoesfingolípides com envolvimento acentuado da pele, rins e miocárdio na forma clássica. Ocorre acometimento do endotélio vascular, do tecido de condução e das valvas, particularmente a mitral. As manifestações clínicas maiores resultam do acúmulo de glicoesfingolípides no endotélio celular com eventual oclusão das pequenas arteríolas. Ocorre angina pectoris e infarto do miocárdio, embora na maioria das vezes as artérias coronárias tenham aspecto angiográfico normal. Há aumento da espessura do ventrículo esquerdo, produzindo disfunção diastólica geralmente discreta, com função sistólica preservada e insuficiência mitral sem significância clínica. O envolvimento cardiovascular sintomático ocorre em quase todos os pacientes do sexo masculino, enquanto nas mulheres os sintomas são discretos ou ausentes. São achados comuns: hipertensão arterial, prolapso mitral e insuficiência cardíaca congestiva . A diferenciação de outros processos hipertróficos e restritivos pode não ser possível através da ecocardiografia. O paciente do caso em discussão não apresenta manifestação cutânea nem renal, e tampouco apresenta sintomas de isquemia miocárdicaou hipertrofia ventricular.

A endomiocardiofibrose, comum em países tropicais, ocorre com mais frequência em crianças e adultos jovens. Caracteriza-se por fibrose endocárdica da via de entrada de um ou ambos os ventrículos. Doença biventricular ocorre em quase metade dos casos; 40% apresentam acometimento isolado do ventrículo esquerdo e 10%, comprometimento isolado do ventrículo direito9,12. Há associação inconstante com eosinofilia. O comprometimento do ventrículo esquerdo resulta em sintomas de congestão pulmonar, enquanto o comprometimento do ventrículo direito pode apresentar características de uma cardiomiopatia restritiva e também simular um quadro de pericardite constritiva. Frequentemente ocorre insuficiência de uma ou ambas valvas atrioventriculares13. Os achados eletrocardiográficos e ecocardiográficos incluem: diminuição da voltagem dos complexos QRS, derrame pericárdico, obliteração apical e aumento da ecorrefletividade do endocárdio12. Estes últimos achados não foram encontrados no caso clínico em questão, e tampouco a endomiocardiofibrose explica o acometimento articular e pleuropulmonar.

A sarcoidose é uma doença granulomatosa sistêmica de etiologia desconhecida, caracterizada pelo envolvimento de diversos tecidos por granulomas não caseosos9,14. Tipicamente, afeta adultos jovens entre 10 e 40 anos de idade e se apresenta com os seguintes achados: adenopatia hilar bilateral, opacidades pulmonares reticulares, além de comprometimento articular, ocular e cutâneo (especialmente eritema nodoso). Ocorre derrame pleural ocorre em cerca de 5% dos casos e tem padrão exsudativo15. O envolvimento cardíaco primário é incomum, com manifestações clínicas presentes em menos de 5% dos pacientes. As manifestações clínicas incluem: distúrbios de condução, arritmias ventriculares, síncope e morte súbita. Insuficiência cardíaca decorre do envolvimento miocárdico direto pelos granulomas e tecido cicatricial, podendo manifestar-se em forma de cardiomiopatia dilatada ou restritiva, com curso progressivo16,17. O exame físico pode revelar sopro sistólico, compatível com insuficiência mitral ou tricúspide, por infiltração valvar ou dos músculos papilares, cuja disfunção pode levar ao prolapso18,19. O eletrocardiograma é inespecífico e pode revelar anormalidades da onda T, bloqueios ou ondas Q patológicas. Outros achados incluem: pericardite e cor pulmonale. O ecocardiograma pode revelar adelgaçamento das paredes ventriculares e aumento da ecogenicidade16,20. O caso clínico aqui exposto apresenta características clínicas e morfológicas compatíveis com o diagnóstico de sarcoidose cardíaca, tanto pelo aspecto do acometimento cardíaco quanto pelo sistêmico: indivíduo jovem, com manifestação de insuficiência cardíaca de curso progressivo, envolvimento articular, hepático, pleuropulmonar, com presença de adenomegalia mediastinal. Os achados morfológicos - aumento biatrial com função ventricular esquerda conservada, paredes ventriculares com espessura preservada, hipertensão pulmonar (que poderia ser explicada em parte por cor pulmonale) e prolapso valvar – também são compatíveis. Consideramos, portanto, a sarcoidose cardíaca a principal hipótese diagnóstica para o caso.

A evolução clínica foi marcadamente alterada depois de instalada a fibrilação atrial, o que agravou substancialmente o quadro clínico e precipitou a internação hospitalar, procedimento comum frente à cardiomiopatia restritiva, em função do agravamento da disfunção diastólica. O óbito ocorreu após complicações infecciosas decorrentes desta internação, através de choque séptico e disfunção de múltiplos órgãos e sistemas.

Dr. Nilson Tavares Poppi e

Drª. Marta Vidigal de Andrade Reis

Hipótese Diagnóstica: cardiomiopatia restritiva secundária à sarcoidose cardíaca.

Dr. Nilson Tavares Poppi e

Drª. Marta Vidigal de Andrade Reis

Necrópsia

O principal achado neste paciente foi uma polisserosite fibrosante, com comprometimento de pericárdio, pleuras em sentido bilateral e peritônio nas regiões do fígado, pâncreas e vesícula biliar, assim como no fundo da bexiga. Não existia fibrose retroperitonial.

O coração estava envolto por uma carapaça fibrosa densa ao redor de átrios e ventrículos, com aderências firmes entre os dois folhetos pericárdicos (Figura 2). A espessura do pericárdio era superior à do miocárdio em algumas regiões, sobretudo nos átrios e no ventrículo direito. No anel atrioventricular direito existia nódulo calcificado na margem lateral, com 0,4 cm de diâmetro. As valvas atrioventriculares e arteriais não apresentavam alterações macroscópicas significativas, exceto pela presença de pequenos espessamentos fibrosos no anel e na borda livre do folheto anterior da valva mitral (Figura 3). O forame oval era patente para 0,6cm.



As pleuras apresentavam espessamento difuso (Figura 4) áreas multiloculadas, principalmente nas bases pulmonares.


O diafragma estava firmemente aderido ao fígado e havia estreitamento do orifício da veia cava inferior no plano diafragmático. A vesícula biliar era pequena e estava encarcerada por densa fibrose do hilo hepático. A superfície de corte do fígado tinha aspecto nodular difuso (Figura 5). Também o baço estava envolto por densa fibrose, assim como o pâncreas na sua face anterior e o fundo da bexiga urinária.


Histologicamente, todas as serosas apresentavam fibrose densa com discretíssimo infiltrado inflamatório por mononucleares (Figura 2). Não havia sinais de atividade do processo, a não ser ao redor das áreas multiloculadas da pleura, que tinham exsudato fibrinoso.

Cortes do miocárdio mostraram atrofia de cardiomiócitos. A valva mitral apresentava discreta fibrose, sem sinais inflamatórios. O nódulo calcificado do anel atrioventricular direito tinha localização muito próxima à coronária direita, que parecia comprimida pela massa nodular (Figura 2).

O exame histológico do fígado era compatível com cirrose "cardíaca" (Figura 4), com a chamada "reversão dos lóbulos hepáticos", quadro em que os espaços-portais ficam situados no centro de nódulos fibróticos e as veias centro-lobulares, por sua vez, estão circundadas por fibrose parenquimatosa. Havia ainda, focalmente, raros nódulos fibróticos hialinos (Figura 5).

Ainda histologicamente, os pulmões exibiam congestão passiva crônica e múltiplos nódulos hialinos circundados por infiltrado inflamatório mononuclear de intensidade discreta, interpretados como granulomas antigos (Figura 6). Não encontramos restos de parasitas e nem bacilos álcool-ácido resistentes ou fungos nessas lesões, assim como nos nódulos hialinos do fígado.


Os linfonodos do mediastino revelavam congestão acentuada, sem sinais de inflamação granulomatosa nos cortes analisados.

Profª. Drª. Vera Demarchi Aiello

Diagnósticos anatomopatológicos: Polisserosite fibrosante crônica, com pericardite constritiva e sinais de insuficiência cardíaca congestiva de acentuada intensidade.

Granulomas antigos parcialmente hialinizados em pulmões e fígado.Cirrose "cardíaca".

Profª. Drª. Vera Demarchi Aiello

Comentários

Do ponto de vista anatomopatológico, os achados explicam a apresentação clínica do paciente. Todavia, não foi possível esclarecer a etiologia do processo fibrosante generalizado. O encontro de nódulos granulomatosos parcialmente hialinizados, embora apenas em pulmões e fígado, nos leva a imaginar que uma mesma doença ocasionou toda a reação fibrosa sistêmica. Neste contexto, a primeira hipótese seria a de tuberculose, que sabidamente é uma causa de pericardite constritiva. Por outro lado, ela não costuma cursar com fibrose densa de outras membranas serosas. Outra possibilidade seria tratar-se de esquistossomose mansônica, doença endêmica em certas regiões do nosso país, e que também apresenta granulomas hepáticos e pulmonares como reação aos ovos dos parasitas. Uma terceira possibilidade mais remota de doença granulomatosa seria a sarcoidose, porém a apresentação seria completamente atípica, em virtude da ausência de comprometimento ganglionar e miocárdico.

Na literatura são relatados alguns casos de reação fibrosante sistêmica associada a nódulos fibróticos/granulomas pulmonares21-23. A ligação patogenética entre os dois achados, no entanto, permanece não completamente esclarecida.

Profª. Drª. Vera Demarchi Aiello

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br) Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

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  • Correspondência:

    Vera D. Aiello
    InCor – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 – São Paulo, SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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