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Caso 1 - Homem de 59 anos com obesidade acentuada, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca e submetido a anticoagulação para fibrilação atrial, apresentou acidente vascular cerebral e septicemia

CORRELAÇÃO ANATOMO-CLÍNICA

Caso 1 - Homem de 59 anos com obesidade acentuada, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca e submetido a anticoagulação para fibrilação atrial, apresentou acidente vascular cerebral e septicemia

Pedro Veronese; Luiz Alberto Benvenuti

Instituto do Coração (InCor) HC-FMUSP, São Paulo

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Obesidade,hipertensão, insificiência cardíaca, acidente vascular cerebral, sepse.

Homem obeso de 59 anos de idade foi internado com hemiplegia esquerda.

O paciente foi atendido pela primeira vez no Hospital aos 54 anos de idade, em razão de crise de dispneia intensa e hipertensão arterial.

Recebeu o diagnóstico de hipertensão arterial aos 44 anos de idade, quando apresentou quadro de dispneia intensa e hipertensão arterial com níveis tensionais de 220/120 mmHg. Procurou atendimento médico de emergência e foi medicado. Evoluiu com dispneia acompanhada de sudorese profusa e aperto retroesternal desencadeados por esforços moderados. Fez tratamento irregular. Na evolução apresentou episódios de ronco intenso durante o sono com sensação de sufocamento ao despertar. O paciente sabia ser obeso desde a juventude, contudo houve maior ganho de peso desde a idade de 48 anos.

O exame físico (12 mar 2001) revelou peso 163,8 kg, altura 1,74 m, índice de massa corpórea de 54,1 kg/m2, pulso de 84 bpm, pressão arterial 200/110 mmHg. A semiologia pulmonar foi normal. O choque da ponta do coração foi palpado no 6º espaço intercostal, para fora da linha hemiclavicular esquerda, e a ausculta não revelou bulhas acessórias. Havia sopro sistólico ++/4+ em área mitral e borda esternal esquerda. O abdome era volumoso, em avental, sem visceromegalias. Havia edema discreto de membros inferiores e os pulsos nesses membros estavam diminuídos.

A radiografia de tórax (7 mar 2001) revelou cardiomegalia +++/4+ com aumento global do coração;

O eletrocardiograma (7 mar 2001) revelou ritmo sinusal, frequência cardíaca 77 bpm, intervalo PR 172 ms, duração de QRS 96 ms, intervalo QT 372 ms, o eixo de QRS a -300 para trás, havia entalhe inicial com onda QS III e aVF, onda R não progressiva de V1 a V3 e perda de potenciais em derivações esquerdas (Figura1).


Os exames laboratoriais (8 mar 2001) revelaram 14,4 g/dl de hemoglobina, hematócrito 43%, ácido úrico 9 mg/dl, creatinina 1,6 mg/dl, potássio 4,4 mEq/l, sódio 145 mEq/l, glicemia de jejum 148 mg/dl, colesterol total 121 mg/dl, triglicérides 57 mg/dl; o exame de urina revelou proteinúria de 0,25 g/l, sem outras alterações. O nível de TSH foi 5,28 U/ml, T4 livre 1,1 ng/dl, leptina 31 ng/ml (normal 3,8±1,8 ng/ml), testosterona 336 ng/ml, FSH 2,6 UI/l, LH 2,0 UI/l, estradiol 40,2 pg/ml, insulina 7,9 Ul/ml, cortisol urinário 261 g/24 h e sulfato de hidroepiandrostenediona 1.457 ng/ml.

O ecocardiograma (26 abr 2001) revelou espessura de septo e de parede posterior de 10 mm, diâmetro de aorta de 32 mm, de átrio esquerdo de 52 mm, diâmetro diastólico de ventrículo esquerdo de 70 mm e o sistólico 57 mm, com fração de ejeção de 46%, por hipocinesia difusa acentuada. Havia insuficiência mitral moderada.

A ultra-sonografia de rins revelou-os de tamanho normal, ambos com 12,1 cm de comprimento; enquanto que o fígado apresentava esteatose: e havia sinais sugestivos de litíase biliar.

O paciente foi medicado com 40mg de enalapril, 40 mg de furosemida, 25 mg de clortalidona, 5 mg de anlodipina, 500 mg de metildopa, 25 mg de espironolactona, 100 mg de ácido acetilsalicílico e 1.700 mg de metformina diários, além de recomendação de dieta pobre em sal, hipocalórica e para diabete. Com essas medidas o paciente perdeu 28 kg de peso, houve melhora dos sintomas e a pressão arterial reduziu-se para 150/90 mmHg.

Três anos após pesou 149 kg, a pressão arterial foi 180/130 mmHg.

O fundo de olho revelou retina com exsudatos em região temporal, cruzamentos arteriovenosos anormais com estase venosa e estreitamento do reflexo arterial, compatíveis com retinopatia hipertensiva

Os exames laboratoriais (fev 2004) revelaram colesterol 172 mg/dl, HDL-colesterol 41 mg/dl, LDL-colesterol 114 mg/dl, triglicérides 87 mg/dl, creatinina 1,1 mg/dl, ureia 29 mg/dl e glicemia 126 mg/dl.

Houve aumento da dose diária de metformina para 2.550 mg e da furosemida para 80 mg/dia e foi indicada cirurgia bariátrica.

Vinha evoluindo pouco sintomático até que em abril de 2006 apresentou síncope e ficou internado em hospital próximo à sua residência e recebeu alta com prescrição de 75 mg de captopril, 40 mg de furosemida, 0,25 mg de digoxina, 100 mg de ácido acetilsalicílico e 5 mg de warfarina. Uma semana após a alta apresentou confusão mental, disartria, desvio de rima oral para direita e hemiplegia esquerda e foi trazido ao Hospital para atendimento médico de emergência (16 mai 2006).

O exame físico revelou paciente sonolento, Glasgow 12/13, pupilas fotorreagentes e sem sinais de irritação meníngea, a frequência de pulso 100 bpm, a pressão arterial 130/80 mmHg e hemiplegia esquerda.

O eletrocardiograma revelou fibrilação atrial, frequência cardíaca média de 142 bpm, com frequentes extrassístoles ventriculares, provável área eletricamente inativa em parede inferior, diminuição de forças septais e de potenciais esquerdos.

A tomografia de crânio revelou hematoma parietoccipital direito e hemorragia subaracnoidea.

O tempo de protrombina (INR) foi de 12 e foram administradas 5 unidades de plasma fresco gelado e vitamina K 10 mg . Devido à alteração da coagulação foi indicado tratamento clínico com prescrição de dexametasona e fenitoína.

Nova tomografia (18 mai) não revelou alteração significativa em relação ao exame prévio.

No terceiro dia da internação (19 mai) houve piora do nível de consciência e o paciente necessitou intubação orotraqueal para suporte ventilatório. Foi novamente cogitada a intervenção neurocirúrgica.

Os exames laboratoriais (19 mai) revelaram hemoglobina 11,5 g/dl. Leucócitos 12.000/mm3, plaquetas 219.000/3, creatinina 0,8 mg/dl, RNI 1,94.

Foi realizada drenagem de hemorragia intraparenquimatosa (20 mai). O paciente evoluiu com quadro de febre e choque séptico, atribuído a broncopneumonia, pois havia drenagem de secreção purulenta pela sonda endotraqueal.

Apresentou hipertermia (38,5°C) em 20, 21 e 22 maio e foram administrados 4g de cefepime e 1 g vancomicina diários a partir de 21 set.

Foi isolada Burkholderia cepacia na hemocultura (21 mai 2006), sensível a ceftazidima, meropenen e sulfametoxazol-trimetoprin. Os exames laboratoriais revelaram leucocitose e piora progressiva da função renal (Tabela 1) Apesar do uso de drogas vasoativas e de antibióticos não houve melhora do quadro. O paciente apresentou parada cardiorrespiratória em assistolia não responsiva às medidas de ressuscitação, e faleceu (22 mai 2006).

Aspectos clínicos

O caso relata a história de um homem de 59 anos, obeso desde a juventude e que aos 44 anos de idade teve o diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica (HAS), quando deu entrada em um serviço de emergência com dispneia intensa e pressão arterial de 220x120 mmHg. Devido à má aderência ao seu tratamento, começou a apresentar dispneia aos moderados esforços, acompanhada de sudorese profusa e aperto retroesternal. Aos 54 anos, quando foi atendido pela primeira vez no hospital, apresentava-se com IMC 54,1 kg/m², FC 84 bpm, novamente hipertenso com pressão de 200x110 mmHg e já manifestava sinais de lesões em órgãos alvos. Tinha coração dilatado revelado por um íctus desviado em relação à linha hemiclavicular e palpável no 6º espaço intercostal e sopro sistólico regurgitativo no foco mitral (+2/4), compatível com insuficiência mitral. A área cardíaca era aumentada à radiografia de tórax (+3/4) e o ecocardiograma transtorácico mostrava dilatação de ventrículo esquerdo com disfunção moderada e hipocinesia difusa e dilatação de átrio esquerdo além de insuficiência mitral moderada, provavelmente secundária à dilatação cardíaca. Tinha lesão renal evidenciada por proteinúria (0,25 g/l) e três anos mais tarde já apresentava retinopatia hipertensiva caracterizada por exsudatos em região temporal da retina, cruzamentos arteriovenosos anormais com estase venosa e estreitamento do reflexo arterial.

Os fatores que sugerem que a HAS do paciente acima seja primária são: o início tardio da mesma, aos 44 anos, e o fato de que aproximadamente 90% das HAS sejam primárias segundo registrado na V Diretriz Brasileira de Hipertensão Arterial1 e no The Seventh Report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation and Treatment of High Blood Pressure2. Porém na história clínica do paciente existem alguns elementos que obrigatoriamente levam a pensar em causas secundárias de HAS, como: hipertensão arterial estágio três (caracterizada por pressão sistólica > 180 mmHg e/ou pressão diastólica > 110 mmHg) e episódios de ronco intenso durante o sono com sensação de sufocamento ao despertar, altamente sugestivo da síndrome da apneia/hipopneia do sono, hoje sabidamente causa de HAS secundária. Porém investigação adicional deve ser feita para a confirmação deste diagnóstico.

O paciente, durante sua história clínica, apresentou quadro de dispneia progressiva até ser desencadeada aos moderados esforços, edema de membros inferiores e com ecocardiograma mostrando disfunção sistólica, todos esses, sinais de insuficiência cardíaca devido à cardiopatia hipertensiva. Corroborando esse diagnóstico temos HAS estágio três de difícil controle, lesões causadas pela HAS em outros órgãos alvo como rins e retina, além da ausência de comprometimento segmentar do ventrículo esquerdo. Porém a investigação de doença arterial coronariana (DAC) neste paciente foi bastante pobre, não sendo possível descartar causa isquêmica da cardiopatia dilatada. O racional para esta afirmação está no fato dos inúmeros fatores de risco que o paciente apresentava para DAC, entre eles: HAS e diabetes melito tipo II, pois segundo o Consenso da Sociedade Brasileira de Diabetes3, apresentou duas glicemias de jejum > 126 mg/dl (respectivamente 148 mg/dl e 126 mg/dl); apesar de não ser dislipidêmico, como na presença de diabete, o seu LDL alvo deveria ser pelo menos < 100 mg/dl, conforme recomendado pela IV Diretriz Brasileira Sobre Dislipidemia e Prevenção da Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia4; obesidade grau III (índice de massa corpórea > 40 kg/m²) e síndrome metabólica caracterizada nesse caso por: circunferência abdominal > 94 cm, pressão arterial > 130x85 mmHg e glicemia de jejum > 100 mg/dl de acordo com os critérios da Federação Internacional de Diabetes, publicados na IV Diretriz Brasileira Sobre Dislipidemia e Prevenção da Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia4. Outros comemorativos que reforçam o racional para cardiopatia isquêmica são dados da história clínica tais como aperto retroesternal e dispneia (equivalente isquêmico); além das alterações eletrocardiográficas, como a zona eletricamente inativa em parede inferior e a má progressão de R na parede anterior.

Durante a evolução do paciente foi indicada realização de cirurgia bariátrica. As recomendações atuais para indicação deste procedimento que foram publicadas no Consenso Latino Americano de Obesidade5 são: IMC > 40 kg/m² ou IMC > 35 kg/m² associado a comorbidade como apneia do sono, diabetes melito tipo II, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, dificuldade de locomoção entre outras. Os pacientes devem ter pelo menos 5 anos de evolução da obesidade, com fracasso dos métodos convencionais para emagrecimento realizados por profissionais qualificados. Portanto o paciente do caso em questão tinha sólida indicação para ser submetido à cirurgia bariátrica.

Aos 59 anos o paciente teve um episódio de síncope necessitando de internação hospitalar em outro serviço. Não há relato na história das características da síncope, nem sobre sua investigação, tampouco se houve traumatismo crânio-encefálico. Pelas medicações da alta hospitalar provavelmente foi feito o diagnóstico de um primeiro episódio de fibrilação atrial nesta internação, pois o paciente foi para casa anticoagulado com varfarina e digoxina para possível controle da resposta ventricular. Uma semana após a alta foi trazido novamente ao hospital com quadro neurológico compatível com acidente vascular cerebral. O eletrocardiograma confirmou o achado de fibrilação atrial, além de frequência cardíaca média de 142 bpm, frequentes extrassístoles ventriculares, provável área eletricamente inativa em parede inferior, diminuição das forças septais e de potenciais esquerdos. A tomografia de crânio mostrou hematoma parietocciptal e hemorragia subaracnoide. O tempo de protrombina na admissão estava alargado com INR de 12.

Este paciente, conforme as Diretrizes para Atendimento de Pacientes com Fibrilação Atrial da ACC/AHA6 , apresentava fibrilação atrial persistente (duração > 7 dias) e um alto risco para fenômenos tromboembólicos. Existem vários escores que tentam predizer o risco de fenômenos tromboembólicos em pacientes com fibrilação atrial não valvar. Um dos mais usados atualmente é o score CHADS2, que dá pontos a cinco fatores de risco para eventos embólicos, a saber: insuficiência cardíaca, hipertensão arterial, idade > 75 anos, diabetes, acidente vascular cerebral/ataque isquêmico transitório - os quatro primeiros critérios recebem 1 ponto cada e o último critério 2 pontos. Aceita-se que pacientes com escores > 2 devam ser anticoagulados. O escore CHADS2 do paciente em questão é de 3 pontos e portanto há indicação formal do uso de antagonista da vitamina K. Porém, também é bem documentado na literatura médica que a anticoagulação com a warfarina aumenta o risco de hemorragia intracraniana em 2 a 5 vezes7,8. Metade dos pacientes com sangramento cerebral pela warfarina morrem dentro dos primeiros 30 a 90 dias do evento9, mostrando a gravidade desta complicação. São fatores de alto risco para sangramento cerebral em usuários de anticoagulante oral: uso concomitante com AAS, queda com trauma na cabeça, consumo importante de álcool, HAS, idade > 75 anos, história de doença cerebrovascular, intensidade da anticoagulação, angiopatia amilóide, uso de tabaco e etnia mexicana ou asiática10,11. Porém, segundo alguns artigos12,13, o risco de hematoma subdural decorrente de queda em pacientes anticoagulados, é tão pequeno, que pacientes que somem 3 pontos no score de CHADS2 (risco de AVC 5%/ano sem anticoagulação) precisariam cair 300 vezes em um ano para que o risco da anticoagulação fosse maior que o seu benefício.

O nosso paciente estava recebendo 100mg de AAS em associação a warfarina, era hipertenso, teve uma síncope uma semana antes da hemorragia cerebral não ficando claro se houve trauma craniano e tinha um INR 12 na admissão hospitalar. Portanto apresentava uma série de fatores de risco para sangramento cerebral.

Postos esses aspectos, quais seriam os mecanismos pelos quais os anticoagulantes aumentam a incidência de sangramento cerebral? Atualmente se sabe que com o passar da idade pequenas arteríolas dentro do cérebro se fragilizam e se rompem com uma certa frequência. A maioria das rupturas forma focos de sangramentos autolimitados e subclínicos, chamados microssangramentos, que podem ser demonstrados em autópsias ou pelo uso de sequências específicas de ressonância magnética14. Este fenômeno é bastante prevalente em hipertensos e em indivíduos acima dos 75 anos. Ocasionalmente, o vazamento de sangue decorrente desta fragilidade e ruptura arteriolar pode não ser contido pelos mecanismos hemostáticos e pelos tecidos adjacentes e produzir sangramento maior com repercussões clínicas. Esta é a fisiopatologia da hemorragia intracraniana espontânea. Os anticoagulantes aumentam a probabilidade de que essas rupturas espontâneas se transformem em sangramentos maiores e com manifestações clínicas. Em outras palavras, os anticoagulantes desmascaram os microssangramentos cerebrais assintomáticos, transformando-os em sangramentos maiores e com clínica exuberante. Por isso os fatores de alto risco para sangramento cerebral espontâneo são os mesmos para sangramento pelo uso de anticoagulantes15.

Outro fato que chama a atenção em relação à história clínica do paciente são os elevados níveis de leptina no sangue. A leptina é um hormônio secretado pelos adipócitos, que tem a função de produzir a sensação de saciedade, além de participar da regulação do balanço energético corporal. Em 1950, Ingalls e cols.16 descreveram uma nova espécie de ratos obesos mutantes que se caracterizavam por importante hiperfagia e pela diminuição no gasto energético. Posteriormente foi descrito que a substância que não era produzida pelos ratos ob/ob, era a leptina. Hoje se sabe que a elevação da leptina sérica é comum em humanos obesos e caracteriza uma resistência à leptina encontrada nessa população. Essa elevação se associa com a síndrome da resistência insulínica e portanto com doenças cardiovasculares.

Em 1999, Söderberg e cols17. descreveram que a leptina plasmática está fortemente associada ao risco aumentado de um primeiro evento de acidente vascular cerebral hemorrágico, independente de outros marcadores de risco cardiovascular, sendo a leptina um importante elo no desenvolvimento de doenças cardiovasculares em obesos. Portanto, a resistência à leptina pode ser uma interface da desregulação metabólica com a inflamação na patogênese da obesidade, suas comorbidades e por último, das doenças cardiovasculares.

Após o sangramento cerebral, o paciente, evoluiu com síndrome de hipertensão intracraniana, rebaixamento do nível de consciência e necessidade de intubação orotraqueal. Após a drenagem da hemorragia intraparenquimatosa evoluiu com pneumonia associada à ventilação mecânica, caracterizada por secreção purulenta pela cânula, febre e leucocitose. A incidência de pneumonia associada à ventilação mecânica descrita pela literatura é de 3%/dia na primeira semana de intubação, 2%/dia na segunda e 1%/dia na terceira semana18, portanto constitui complicação bastante frequente. No dia 20 de maio de 2006 o paciente encontrava-se em choque séptico, devido à pneumonia por Burkholderia cepacia, evoluindo rapidamente para disfunção de múltiplos órgãos e morte no dia 22 de maio de 2006.

Dr. Pedro Veronese

Hipóteses diagnósticas

Obesidade grau III; HAS primária e/ou secundária a possível síndrome da apneia/hipopneia do sono; Diabetes mellitus tipo II; síndrome metabólica; hipotireoidismo subclínico; retinopatia hipertensiva; cardiopatia dilatada hipertensiva e/ou isquêmica; fibrilação atrial crônica persistente; intoxicação warfarínica; síndrome hemorrágica cerebral: hematoma intraparenquimatoso e hemorragia subaracnóide com síndrome de hipertensão intracraniana; e choque séptico por pneumonia hospitalar devido a B. cepacia

Dr. Pedro Veronese

Necrópsia

Cadáver de paciente apresentando acentuada obesidade, notando-se incisão cirúrgica recente de craniotomia temporoparietal direita. O coração era volumoso e pesou 866 g. Apresentava hipertrofia e dilatação das quatro câmaras, com múltiplos pequenos focos de fibrose intersticial em ambos os ventrículos (Figura 2). Havia vegetações na face atrial da cúspide posterior da valva mitral, medindo 1,5cm de extensão, e nas semilunares da valva pulmonar (a maior medindo 0,8cm), notando-se ao exame histológico a presença de numerosas colônias de cocos Gram positivos (Figura 3). As valvas cardíacas não apresentavam sequela de doença reumática ou evidência de quaisquer alterações anatomopatológicas prévias. As coronárias epicárdicas apresentavam aterosclerose discreta, assim como a aorta, não havendo lesões obstrutivas. Havia microabscessos e colônias bacterianas no miocárdio, rins e baço, com infartos macroscópicos focais nesses dois últimos órgãos (Figura 4). O encéfalo pesou 1.428g, havendo edema do hemisfério cerebral direito, ademais de extenso infarto hemorrágico acometendo córtex e substância branca desse lado e hemorragia nos ventrículos laterais (Figura 5). A pesquisa histoquímica de bactérias foi negativa nesse órgão. Os pulmões apresentavam congestão, edema e áreas de acúmulo de macrófagos contendo pigmento hemossiderótico nos espaços alveolares. O fígado apresentava dilatação sinusoidal centrolobular, com áreas de necrose hemorrágica recente. Os rins apresentavam focos de esclerose glomerular e fibrose intersticial. Havia grandes cálculos esverdeados na vesícula biliar, medindo de 1 a 2 cm cada.





Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Diagnósticos anatomopatológicos

Obesidade mórbida; hipertensão arterial sistêmica; diabetes mellitus; calculose da vesícula biliar; cardiopatia hipertensiva em fase dilatada; endocardite infecciosa das valvas mitral e pulmonar; infarto cerebral hemorrágico; septicemia (causa do óbito).

Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Comentários

Caso de homem de 59 anos de idade, apresentando como doença principal a obesidade mórbida, acompanhada de hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e calculose da vesícula biliar, comorbidades frequentemente a ela associadas19. A hipertensão era de difícil controle e o paciente evoluiu com cardiopatia hipertensiva descompensada e insuficiência cardíaca congestiva progressiva. Apesar da existência de fatores de risco, não desenvolveu aterosclerose significativa em nenhum território arterial, e não havia coronariopatia. A causa do óbito foi septicemia bacteriana secundária à endocardite infecciosa das valvas mitral e pulmonar, por cocos Gram positivos. A bactéria Burkholderia cepacia, identificada na hemocultura pouco antes do óbito é agente Gram negativo, e portanto não imputamos à mesma a etiologia da endocardite. Além do comprometimento simultâneo da valva pulmonar, outro aspecto não habitual é que ambas as valvas acometidas (mitral e pulmonar) eram previamente normais, ou seja, não apresentavam sequela de doença anterior. A manifestação clínica inicial da endocardite foi neurológica, devido ao extenso infarto cerebral hemorrágico de provável natureza embólica. Na necrópsia encontramos indiscutíveis evidências de embolização séptica, com presença de microabscessos e colônias bacterianas no baço, rins e miocárdio. Apesar do diabetes mellitus ser genericamente considerado fator predisponente para infecção, o mesmo não tem sido classicamente considerado como fator de risco para o desenvolvimento de endocardite infecciosa. Entretanto, esse conceito tem se modificado mais recentemente, devido a relatos de associação entre essas duas entidades, como no presente caso, e da maior gravidade da endocardite em pacientes diabéticos dependentes de insulina20, 21.

Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

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  • Correspondência:
    Vera D. Aiello
    InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 - São Paulo, SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010
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